segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Cambada de Minas

 Por Ronaldo Faria


O vento do ventilador ventila na noite quente que aquece e aquiesce o homem que dedilha a sua própria sina. No quadrilátero mínimo e ínfimo que um espaço arquitetônico dá à tônica do espaço, a sorte que um sortilégio não antevê o fim para logo. Em solilóquios afônicos, a voz que quase não sai. Os dedos ainda dedilham em frenético arquétipo o tépido desenrolar frenético que esgota o tempo que ainda virá. Perto, sentado no bar que espera que a esquina vire uma reta sem fim, Sebastião, vulgo Tião, teoriza sobre a vida em Bogotá. “Será que lá é como aqui ou acolá?” Faltava na mesa um colombiano para a tese corroborar. O jeito é compor algo mais para caber no parágrafo seguinte, como um pedinte da poesia distante.

Ambos, antropofágicos seres que os frágeis ditames da vida enterram a uma eternidade inexistente e pertinente, divagavam e vagavam nas letras e pensamentos que só o tempo traz. Na performance que só o teatro sem palco e plateia dá, vão transitando o cotidiano de cada segundo que o coração ainda dá. Em copos cheios e anseios de verem um seio a cair nas bocas rotas, num lambe-lambe que só o fotógrafo retrógrado dá, vão descortinando veredas e ansiar. No oceano distante e equidistante do além-mar, os versos e reversos de algo que segue adiante. Na metamorfose depois da fimose de batom, um frígido ouvir de vozes a buscar um caminho que, no fim, vai ser o próprio e mesmo indelével e sofrido enfim.

“Amigo, traz mais uma pro tempo destemperar”, disse Tião, proscrito homem e trabalhador. “Porra, vou ter de levantar de novo para buscar a cerveja”, pensava o poeta asceta que apenas queria escrever, sorrir ou chorar. No meio de tudo, quase em luto temporão, a noite brilhava no seu escuro colorido. “Quanto tempo ainda falta para o tempo terminar?” – perguntaram os dois. No derredor, gente que não conhece o fundo de um poço vazio e sem água que espera uma chuva em torpor. Quem sabe um louvor que ignora o horror que os pesadelos, em desmazelo, trarão logo mais. Na imensidão que esmera a sofreguidão, os portais sem abrem e se fecham à espera de mais um igual e desigual torpe e lindo amanhecer.

sábado, 30 de dezembro de 2023

Agora vai...

 Por Ronaldo Faria


“Tá difícil virar o ano. E lá vai mais um texto para tentar cobrir o dia 30 de dezembro. Talvez o último do https://osmusicoolatras.blogspot.com/. Resistência firme, mas que deve se aposentar em 2024.” (Ronaldo Faria)

Da janela em mera procela, Maria olhava o que restava na paisagem inclemente que o calor declinava sobre a terra. Nas serras, antes verdes e floridas, o seco do mato crepitava aqui e ali. Um tanto de poeira, que o gado magro levantava na estrada de terra batida, voava no alpendre onde uma rede parada e corroída descansava ao tempo sem vento. Entre um suspirar e outro, o sussurro da boca molhada de água e desejo no ensejo da tardia melodia. Nas árvores, pássaros proclamavam a chegada da primavera. A quimera, a se querer florida, viajava na saudade de dias há muito atrás.

Sentado sobe o cavalo que galopava e arfava na imensidão de um nada qualquer, José ia até a cidade mais próxima e próspera na busca de um desejo da amada. “Quero pitomba pro nosso filho poder nascer”. Conhecida na língua dos índios tupis como sopapo, bofetada ou chute forte, a fruta era o desejo de Maria. “Imagina o nosso filho nascer com cara de pitomba... nem pensar”, pensava José a chicotear o cavalo para varar o mundão antes que a feira do vilarejo terminasse. Para trás ficavam os tempos inauditos, os ditos por não ditos, a dicotomia de estar vivo sabendo que todos iremos morrer.

Maria, de olhos marejados diante da dor, caminha nos corredores da casa. Uma luz de lampião logo irá se acender e ascender ao tempo e chegar com sua fumaça negra para algo próximo às telhas e o léu, como um fogaréu. Já José, a olhar o céu que sombreia de lua a chegança de mais um fim de dia, chega na feira, que, graças aos deuses do parto não partiu ainda, e encontra uma bacia de pitomba madura. “Obrigado, meu senhor de Deus. Meu filho terá a minha cara”, agradece sob o olhar do cavalo a suar. Ao fim da curta história, nasceu dias depois Joaquim. Filho da sina de um talvez... 

Ao som da Cambada de Minas e em homenagem a Isnaldo Piedade de Faria que nos deixou mas permanecerá sempre vivo num lugar que só quando a vida no derrear saberemos dizer.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Maurício Pereira na veia

Por Ronaldo Faria


Vozes. Outorgas de cordas vocais e um cérebro que batucada e caduca ao passar dos anos e anéis (pedaços de papéis) mágicos que viram pera, uva ou maçã. Aliás, o que eram tais propostas postas? Nunca soube ou não quis saber. A sapiência nem sempre vem com o poder. Na leniência da vida que ainda resta em réstias, de presto observo o cérebro se insurgir. Que sejamos subversivos e imersivos naquilo que qualquer quilo de vida se sobreponha ao cinismo de enganar a si mesmo. A esmo, naquilo que a aurora ainda virá, surjam espumas de copos, cópulas subterfugias, fugidias loucuras do outrora virá. Entre vestígios e vestes desnudas, com dois dedos descritos, proscritos e escritos, possa chegar a inclemência que a cada rasteira que a vida dá nos demove de dor e Deus dará. Com as Orquídeas Selvagens, Itamar Assumpção, mostra que a cada milagre pode surgir um novo milagre. Se amanhã surgir um vinagre, balsâmico, já está bom.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

A ouvir Nara Leão

Por Ronaldo Faria



Januário chega e, casa depois de uma noite que vazou a madrugada sem pensar.
-- Minha nega, como diria o poeta, vim do samba, renega o que foi...
-- E eu com isso?
-- Dê um tempo. Ao menos entenda o alento que nem o poeta mais bêbado dá...
-- Poeta, como dizia a música, tem que morrer. Não serve pra nada. Alguém vive de poesia? O caralho!
-- Tenha calma, tente entender...
-- Aqui no barraco você não tem lugar! Vá procurar uma mesa de bar pra deitar.
-- Que coisa mais triste: dedo em riste a mandar o teu homem para outro lugar.
-- Outro lugar é o cacete! É aonde, a partir de agora, estará.
-- Mas, como assim? E a ressaca matinal, quem vai curar?
-- Quer saber, vou falar bonito: ela foder-se-á.
Januário não tem mais como responder diante de tal figura de linguagem. “Onde ela terá aprendido tal forma que nem eu sei o que será?” Consternado, calado, alvejado pela língua pátria, calcinado de tanta certeza da mulher ainda amada, sai a descer o morro. Passa pelas biroscas e sequer sabe se vale parar. Do alto de um fio em gato, uma pomba, só de sacanagem, caga tardiamente na sua cabeça. Para a desgraça da vida não precisa nem de sogra ou vizinha... 

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Ao som do erudito, dito por não dito

 Por Ronaldo Faria


Escrever, pensar, escrevinhar. Viver cada minuto preso em segundos e, ao fim de tudo, continuar. Ensaiar um périplo de emoções, subscrever epitáfios, desdenhar. Viver. Remover terras e montanhas de nós mesmos. A esmo, crescer e definhar. Num trem a cruzar terras, céus e luar, um resto de terra e outro tanto de mar. Quiçá, alguém a submergir e adernar em si. Às próprias loucuras naufragar. Nalgum porto uma boca amiga irá abocanhar o que ainda restar. E surgirão beijos cansados, corpos amargos, soluções de algo. E assim enfim, no fim de mais um dia, a fria melancolia se porá a avivar. Na sublime ternura da loucura, a chegança de uma fumaça irá apitar... Que um amanhã ainda possa chegar. 

(Sobre a foto do Leandro Ferreira)


quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Mistureba na fila do Spotify

 Por Ronaldo Faria


“Amanhã eu comerei salmão e macarrão. Logo. Recupero do porre de hoje”, pensou José que sabe começar, mas não tem o despertador de parar. Vai ao espelho ver uma espinha que teima em querer sair. A puberdade há muito já tinha partido. “Puta que pariu, só me faltava essa”, pensa entre querer aceitar e odiar o ardil. “Agora não tem jeito. Da música que vier na fila chegará um pensamento rarefeito.”
“Lô Borges em choro? Novos Baianos a por o sol a se por?” Coisas mil a fervilhar e germinar no santo que baixa para escrever nesse cavalo deveras quase embriagado e incapaz de dizer de onde vem tanta ebulição. Logo abaixo, no chão, algum ser, de antemão, fluiu na eternidade da idade para confirmar que a verdade não condiz com a saudade. Hoje, em sonho, alguém voltou para uma louca orgia refeita.
Na lista, logo chegarão Jorge Mautner e Zé Ramalho. Como diria o narrador, haja coração! Nas teclas diante da vista, um branco que não precisa mais de branquinho ou durex para cortar com régua e depois colar os erros cometidos no espaldar da escrita formal. “Ainda bem que os tempos mudaram.” Na playlist, Ary Barroso. “Ao menos o Brasil é uma profusão de ritmos e sons que em lugar mais nenhum há.”
Na métrica ou rima tresloucada que o álcool traz, o som absorve a crença de que a demência é coisa de receituário médico. No ilusionário porvir de letras e troças, tretas, que fique a incerta verdade de que o agora é o passado que se foi, o presente que não há e o futuro que brinca de nunca chegar. E o que logo esperar? Waldyr Azevedo, Elomar e Itamar Assumpção. Vale parar aqui ou a loucura vinda esperar?
 
Feito menino, busco ainda o meu destino...


segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Sivuca e Rosinha de Valença

 Por Ronaldo Faria

 

Onde juntar duas virtuoses num só lugar? Hoje, no céu. Um dia, porém, estiveram juntos... Afinal, se não houver beleza nessa Terra, não valeria a pena viver.
 
-- E aí, Mané, vai aonde?
-- Vou lá no bar do “Esconde da Véia, Data Vênia”, tomar umas e algumas. Vamos.
-- Estou mesmo coçando. Estou nessa.
A tarde ardia e fervia. Pedia goles e goles, desses que embriagam até gaitas de fole.
-- Vá entender esse tempo...
-- Estão dizendo que é o fim.
-- Será? Se for, estamos umas duas dúzias atrasados.
A rua, cheia de mães que carregavam os filhos de volta pra casa, fervilhava de suor.
-- Você viu o Damião?
-- O que aconteceu com ele? Largou o Cosme?
-- Melhor: ganhou no bicho. Deu cobra na cabeça. Valeu sonhar com a sogra.
A risada dos dois irrompeu o lugar. Nas casas, cheiro de janta que ainda vai chegar.
-- Ô Seo Gumercindo, manda a que está nos trinques pro senhor levar!
-- E nada de lápis maluco, que marca duas no lugar de uma...
-- Isso. Só o tomado que entrar na garganta santa!
Sentados à mesa, feito senhores de seus destinos, vararam a quente tarde caída.
-- Porra, que bom que existe boteco no mundo. Não fosse, a vida entornou-se.
-- Sem dúvidas. Seca só no sertão. Seca de cerveja, nem com falta de oração...
-- Juntar dois em retidão é agradecer a Deus por tanta comemoração.
No derredor, o sol já foi dormir. Agora é convencer a lua a aceitar tal vastidão.

sábado, 16 de dezembro de 2023

Mestre Pixinguinha ao fundo

Por Ronaldo Faria


Pixinguinha era o tema, abrupto, largado, desvairado, como um poema. Sob uma mangueira que se derramava de galhos e folhas no quintal suburbano, Florípedes era como uma flor, aquela que seus pais, num augúrio ou delírio, propuseram no nome. “Flor boa fosse, não teria tantos espinhos”, se lamuriava. Seu sonho era ter sido Berenice ou Veridiana. “Isso sim é que nome de gente.” Longe da casa caiada de branco, o trem apita a dizer que passageiros cansados e suados estavam a sonhar com o fim dos seus fardos.
Na composição que rodava em trilhos velhos e dormentes, João se segurava com força para não cair a cada parada brusca. Se bem que, para ele, tanto fazia como tanto poderia fazer. Se caísse e quebrasse a cabeça ou um osso, ficaria encostado no INSS. “Férias, mesmo que hospitalizado”, até sentenciava. Mas, melhor não. “Os caras atrasam pra pagar e eu não teria como me virar.” No vagão, o crente demoniza a vida para conseguir um ou outro que quisesse comprar adiantado um lugar no seu etéreo e inexistente céu.
Ente ambos, uma estação carcomida na laje exposta de ferrugem. “Essa merda ainda dar última página em jornal”, resmungava o chefe da gare. Um ou outro vendedor do churrasco que teimava em miar cada vez que voltava para o fogo, a criança com o nariz a escorrer, o homem que dorme no banco a ressonar a vida que nunca terá. No lugar, bem longe do além-mar, Florípedes e João não sabiam sequer que um dia poderiam ser um só. Para emendar logo o fim, ela foi dormir e pesadelos ter (“se eu fosse Berenice ou Veridiana iria dormir como princesa”, ensejou) e João estava entre as vítimas fatais que passavam na roleta quando o teto desabou. Esse sequer pensou.
-- Eu falei, eu sempre falei que essa bosta um dia ia despencar – vociferava o funcionário da estação, cercado de repórteres a falarem da falta de planejamento e omissão.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Glenn Miller

Por Ronaldo Faria

 

A orquestra tocava sem parar. Paralisados no seu mundo próprio, os casais giravam no salão a cruzar pernas e mãos. A big band se bandeava entre notas e partituras, nas lamúrias do maestro, destro, que buscava na esquerda a melhor sonoridade do lugar. Devagar, a divagar, Solange, só em si e longe, imaginava o que os roteiros da vida não trazem de volta. Seus amores, suas dores, os odores das rosas recebidas, as bebidas envolvidas em lábios molhados e futuras feridas do coração. A ilusão da tresloucada saliva a correr todo o corpo em lascívia. Para ela, os trompetes e um perdido sax eram bem mais em si.
-- Ouvi o murmurar de uma dama sexy?
José, que do outro lado do salão bebia um gim com tônica (com o gim dobrado e chorinho), chegou devagar à mesa onde Solange vivia seu mundo. Antes, ficara sem saber se devia ou não. “Melhor não me perguntar muito. O máximo será um não”, pensou. E lá estava. Ela era diáfana, como deveria, nos Anos 60, ser. Parecia nunca ter saído à rua quando os rios do sol teimavam em queimar as peles em orgia com o mar. Como uma deusa virginal, dessas que se pede de presente a Papai Noel no Natal. “E não precisa nem de papel especial. De pão ou de jornal já serve. O importante será o que está nele”, dizia.
-- Por acaso eu te chamei para vir aqui?
Solange, com um cigarro mentolado a adormecer em brasa no cinzeiro, olhou fixa nos olhos de José. No palco, a orquestra introduzia I an Sentimental Mood. O homem, após perder o chão de si, mal sabia o que dizer. “Quando uma dama está só, cabe ao cavalheiro ter a mínima compostura de saber se deve ou não importunar.” A frase serviu como um punhal no peito de José. Cravou tão fundo que qualquer coisa que dissesse seria em vão. Pensou em pedir desculpas mil, dar volta e mais outra meia e retornar ao lugar do qual nunca deveria ter saído. Mas, de repente, ouve descrente: “Puxe a cadeira e sente”.
Ficaram horas a conversar. Besteiras mil, como um ardil. Ouviram Over The Rainbow e dançaram colados Moonlight Serenade. Ao final de My Reverie estavam de bocas coladas, lábios perdidos em algum acorde que a orquestra tentava fazer dormir no sol que acordava entre um Cadillac estacionado irregularmente e Fuscas e Gordinis. “Casal, me perdoem, mas teremos de fechar. O comércio normal já está a abrir”, falou carinhosamente o garçom. Entre um cambalear ou outro, saíram mais felizes que trôpegos. Do céu, pássaros entoavam uma canção própria de verão. Quem o visse a dançar, diria: o amor está no ar.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Doideiras do Spotify que saberemos onde irá dar...

 Por Ronaldo Faria


O que escrever ou descrever quando a seleção musical vira um samba do escritor doido? Mais uma pergunta dessas que besunta o cérebro e se perde na noção do tempo, das latas entornadas, das frases parafraseadas. Para um poeta que segue as partituras musicais, naquilo que as tantas partidas dos dedos dão, o que essas músicas poderão dar ou darão? E agora, seguir ou parar? Ser ou não ser, diria o diretor de teatro frustrado a antever o miserê. Pensei em Nelson Gonçalves para terminar a intrínseca e germinada lucidez, mas deixei a seleção girar. Nos alto-falantes, Noel Rosa. Agora uma ode a Vinícius de Moraes. Mudar pra quê? Que a trilha sonora de nossa vida restante seja esta, não o inodoro sextante que se antecipa. No céu, mesmo sob o negror e feita com cola de arroz na noite sem lua, uma pipa subirá e sublimará o amor. Como diz Bethânia, ela é carioca da gema. Qual delas? Não foram muitas e nem poucas. A todos saibam, meus lábios beijaram cariocas nascidas na Cidade Maravilhosa, entre noites de velas, viagens em avenidas, cantos e recantos de crenças esperançosas, realidades místicas e misteriosas. E como o tempo ao vento, tudo desandou e passou. Nas vivências, querências, demências, ausências, premências, tudo foi e ficou. Na dança das cordas, como disse o Poetinha, onde andam vocês?
 
II
 
Com Choro dos 3, Tico-Tico no Fubá. Só pra constar.


sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Pedro Salomão 2

 Por Ronaldo Faria

 


Já fazia meia hora que Horácio esperava Cleonice. Ainda bem que o frio e a chuva fugiram da previsão prevista e se esconderam em algum lugar. Certamente ficaram a se amar. Numa mistura de gélida paixão e folhas de um roseiral qualquer a se despetalar. Horácio, logo ele que disse minutos mil antes que não iria escrever. “Essa tentação de teclar será a proximidade da morte e o desejo de falar? Ou apenas um flanar de penduricalhos de emoções?” Ele não sabe responder a si mesmo e nem aos poemas do pernoite sagaz e fugaz.
Horácio, quase patético como um ser que ama aquilo que é o antônimo antagônico no antropofagismo de cada um, vira e remexe seus salamaleques. Relembra do passado, transita entre a loucura e a lucidez. Na desfaçatez de um tempo onde o pouco era muito, cavalga na madrugada tragada de tragos e afagos múltiplos e místicos. Multiforme, numa metamorfose que nunca se faz ou se fez, vira um andarilho do Vale de Inês. Mas não era Cleonice a esperada? Como diz o ditado, a fila andou no desandar do pérfido andor.
Ignóbil sobrevivente de alguém vivente e breve, desses que conta os dias com ampulheta que nem areia tem, vai a bagunçar seus momentos que fritam em tormentos, esculhamba lembranças que se desdobram em torvelinhos. É apenas ele. Um pedaço de limiar de um em dois. Partido em décadas atrás. Na frase mal dita, maldita quiçá. Que fez e desfez a tez para um recriar de olhos que já não se enxergam, flácidas peles que brincam de vencer o tempo como as árias do compositor que não sabe diferenciar partitura de partida.


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Dona Ivone Lara e a santa Iara

 Por Ronaldo Faria

“Sorte ou morte? Onde existirá o limite que existe e define a definitiva e imprecisa lasca que há entre o trincar e o quebrar?”

Manduca se perguntava há algumas décadas como era estar e viver nesse vendaval que a brisa de fora não fazia nem pétala de roseira tremer e ser. Intransmutável, seu tempo corria milésimos que os anos vindouros ou findos não sabiam nem sequer contar. Os dedos das mãos eram poucos para recontar. No mar, longínquo e raso, apenas os tolos de amor morriam afogados a pedir por clamor. Marinheiros da tristeza e da solidão nunca viram seus barcos lá se perderem. As sereias, brejeiras e faceiras, sequer chegavam perto da areia. Sabiam elas que a poesia a tudo espanta, menos a dor. Em meio ao mundo, nascia nalgum lugar uma flor.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Com João Cavalcanti

 Por Ronaldo Faria 

 

Põe óculos, troca óculos, ajeita óculos numa espera de ósculos que foram, vêm ou virão. Na poesia que entardece, a noite aquiesce e se aquece. Na brancura da ternura da poesia ainda não escrita, o imbróglio que se desmancha na mancha que não some entre sabões em pó e um pós caminhar de estrada onde a terra sucumbe aos pés perdidos e ardidos de sol, urdidos em lençóis. Entre a cama, o drama e a trama, Cesarino, feito quando o vaqueiro, de facão ligeiro, rompe a carótida do bicho, se embrenha feito vaca prenha que toma banho num poço qualquer à espera da cria logo chegada. Nas letras da vida abstrata de quem trata as troças do mundo como um vazadouro de vertedouros, sucumbe a si mesmo. A esmo, se esmera em aços que brincam de brilhar em esmerilho. Parte de um todo que não tem início e nem meio e nem fim, vive em parcimônia que cheira amônia. Sentencia e chantageia o tempo, vive trôpego e banal como fosse marginal, desses letal ou/e coisa e tal. Num aforismo que cabe num quadrilátero enfiado num triângulo que existe no retângulo que a esfera faz, seguimos em rodopios e centenas de pios do pássaro preso na gaiola de gravetos. Feito substrato de quem espera receber um trato, o tratado do tempo que blasfema ao destino. Em desatino, uma tina de álcool se derrama à madrugada concebida.

-- Que ideia mal concebida. Acho que a nossa cabeça está mesmo fodida.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Doidivanas noitadas

 Por Ronaldo Faria


-- E aí, troca os copos?
O garçom pergunta solícito e amigável.
-- Por favor. É tudo fermentado, mas entre cerveja e vinho não há muito tratado.
A voz de Adamastor soa retumbante no salão.
Na fria madrugada tragada em si mesma, ensimesmada de tanta coisa para contar e escrever, a vida chega enviesada e formatada, onde ninguém poderá mudar. Mas o que é a vida? Entreouvida na contemporaneidade perdida, nada mais é do que segundos ungidos e múltiplos no girar de uma bola cheia de terra e água no universo a vagar.
Copos trocados, campesinos longínquos vibram pelo seu trabalho no Chile um reles notívago sorver. Ao derredor, haja dor e dormência, iníqua sofrência que só os anos de hoje trouxeram ao dicionário.
Adamastor, que se fosse música seria um adágio em mi menor, se é que isso existe, espera que a esfera que roda acima da sua cabeça vire algo como uma fera. E pule e pulule. O amanhã? Haverá? Em arabescos e afrescos, frágeis e fúteis lembranças adentram em sons vaticinais. Na vitrola, agora, Vinicius de Moraes. “Na noite, nos bares, onde anda você?” Senão, “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”. Desencontrado, o poeta profetiza a efeméride tardia e vadia. Nos próximos dias, saber-se-á, a vida entrará no seu quadrado.


sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Papo de poeta ou poetiza, no piano

 Por Ronaldo Faria


-- E aí, Lívia, podemos ir pra minha casa?
-- Acho melhor que não.
-- Mas eu moro sozinho. É isso mesmo? Vai rolar só uns beijinhos?
Lívia, dessas mulheres que se pode chamar de lívida ou senhora de si, dá o ultimato: “Não. Te ligo”.
-- Tudo bem. Até quando der outra vez.
Na voz de Paulo, o pulular de quem não sabe sequer o que é parar de pular ou ulular. Perdido, liga o carro e arranca nas rebentações de além-mar.
-- Boa noite, senhor Jairo...
Em casa, Lívia, abre um vinho, liga a tevê e vê a derradeira ou próxima reprise que se antevê. Mulher plena, dessas que o poeta mais velho a colocará no patamar de deusa efêmera, não precisa de pênis, corpo peludo ou ser impoluto para viver. Muito menos emplastado. Dona de si, diáfana naquilo que o parnasiano mais tresloucado escreveria, apenas se basta. Na varanda, uma pomba dessas de varanda ou rua, troca suas penas.
-- E aí, Bastião, valeu!
Paulo chega ao apartamento apertado que algum deus lhe deu. Vai da entrada à sala e o quarto num segundo. Depois, mijar célere no banheiro imundo. Abre a geladeira e vê a cerveja derradeira. “Devia ter comprado mais.” Liga a televisão e desliga logo. No celular, o algoritmo diz que uma velha amada está a ligar. Desliga o aparelho, acende o cigarro e se põe a pensar: “Porra, a Lívia bem que podia querer topar somente poder vir trepar.”
Na cidade que é uma efeméride constante, inconstante em seu limiar, a noite percorre os corpos que acordados ou adormecidos fizeram o dia trilhar. Lívia e Paulo, acomodados no seu sonhar, são apenas sombra que a sinfonia noturna que se beija na madrugada singular faz e refaz para mais um redescobrir que a vida é um constante nunca chegar.


Acabou...

 Por Ronaldo Faria Acabou! Acabou o Carnaval, o sal da areia colado no corpo, o suor que escorreu entre perfumes falsos e tresloucados beijo...