terça-feira, 26 de setembro de 2023

À Júlia Vargas

 Por Ronaldo Faria


 

A técnica de algo gelado para soluço é a solução definitiva, ao menos para o poeta que subscreve a receita afeita ao que tiver de ser.

 Júlia Vargas na tela delineia a visão entre a sanidade e a realidade. Entre as duas antagônicas, fico com a insanidade. Esteja ela onde estiver.

No alpendre do passado, ensimesmado, o menino vê a primavera que ainda vai chegar. Abelha uma ou outra, africana, sobrevoa o lugar. Um mandacaru soçobra na terra seca e calcinada pelo sol inclemente. O carro de boi, que só existe na semente demente de todo o dia, faz um barulho quem nem o arrulho da pomba deixa esquecer. Uma arara sem coito sobrevoa o céu sem nuvem sequer. No quarto único da casa de pau a pique, o casal se acasala nos buracos que se abrem à nova vida que chegará logo nove meses depois. Será o décimo chegar. Não muito longe, naquilo que a vista cansada ainda vê, um touro cobre a vaca quieta sob os galhos secos da árvore que espera uma chuva para reviver. Será, se tudo certo der, a quarta cria do lugar.

A cerveja preta ilumina novos neurônios. Depois, o que restará? Uma vastidão sem sinônimos, antônimos ou seja lá o que isso repensar. Na antevisão que a parcimônia da loucura dá, as notas se sobressaem. No centro do presente, a ausente de pelos e latidos surdos e sórdidos gemidos. Ganidos nunca vistos, vistosas roupas que mostram os joelhos. Trejeitos e abraços, amassos esquecidos e gemidos roucos. Loucos? Acenda o próximo. Nele, talvez, virá a mansidão.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Bicho de Sete Cabeças

 Por Ronaldo Faria


O multiforme som disforme esbanja seu mundo sem fim. Enfim, a sonoridade sem idade esbraveja nas notas apócrifas que a música dá. Talvez um pouco mais, ou outro menos que vem logo atrás. Quem sabe os subterfúgios que o cheiro da noite traz? Apraz, a raiz brota do chão seco, a esmo. 

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

A dúvida, sob o som de Zé Ramalho na voz de Zeca Baleiro

Por Ronaldo Faria


-- Meu, achei que era pra mijar, mas de repente bateu um troção no meio. Surreal.

-- Ainda bem que a fila estava pequena. Também, às três da manhã só tem louco querendo mijar ou gente num bar.

-- Que os tempos se mantenham assim!

Os dois amigos tomavam a terceira saideira benzedeira dos tempos maus à sombra da árvore que não dá mais sombra.

O que assombra na madrugada é o silêncio ausente de vozes e trovas. Não há luz além de um ou outro carro notívago e vago. Não tem arco-íris. Sequer rima há. Aos que ainda bebem, um mundo à parte, o aparte entre a realidade e a fantasia. Aporte de nada. O porre que só no próximo amanhecer dará seu ar soberano. Aos que já dormem o sono dos injustos, nada a dizer. Talvez um nunca ver além das lentes sombrias dos óculos que há muito não veem ósculos entre um lábio e a vagina, no rumo da angina maior. Quem sabe a insanidade que faz esquecer do que é feita a emoção... No joelho, uma torção irrita o cagão.

-- Acho que está na hora pra casa rumar.

-- Bastião, traz a conta pro bar poder fechar!

-- Bastião, põe na mão do Tuco que o Tuco toca.

Ninguém sabe porque essa frase surgiu, mas ela veio de dentro do peito, como afeita fosse ao feito final. A conta veio. Soma de lá, diminui de cá, a festança dos números estava a se dar.

-- Trezentos e vinte e oito reais não está demais?

-- Tirando você ter vomitado no chão ao chegar, não...

-- Metade no débito!

-- A outra metade no crédito!

Ao fim, os dois se separam.

-- Meu Uber é Josivaldo.

-- O meu é Artur.

-- Nos vemos de novo na próxima semana?

-- Vamos ver... se vivos estivermos.

Em som de motor amiúde, os carros chegam. Cada um segue seu rumo. No prumo, o dono do bar cerra as portas, fecha o caixa e agradece pelos bêbados derradeiros entenderem de matemática como ele entende de the end, ou final. 

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

No samba (e na Farofa Carioca)

Por Ronaldo Faria


Gostosa além da conta. Era essa a referência que qualquer home, lúcido ou chapado, tinha para Verônica. Mesmo que estivesse afônica, a tônica dos homens era igual: “Como ela não há. Temos que tirar o chapéu para a dupla que a fez!” E o Seu Amâncio e a Dona Zuleika nem eram tudo isso. Dois comuns, desses que a gente corre os olhos toda a vez que entramos num trem de subúrbio ou numa rua qualquer. Mas ela, com certeza, era a mulher. Seu corpo não tinha um centímetro ou polegada fora do lugar. A boca era doe outro mundo. Aliás, se um ET tivesse outra igual, que o planeta seja invadido nessa hora. Os olhos brilhavam fora das íris. Eram com vida própria, na forma mais exótica que há. Enfim, Verônica era uma escultura ambulante de semblante que nenhum artista conseguiria reproduzir. E ela sabia o quanto valia à mente tardia do macho que a desejava possuir. Subia o morro como se flutuasse além das nuvens. E não dava crédito qualquer a nenhum mero mortal. Seu portal era bem mais acima do que o final.

Mas ela era bem mais do que gostosa, apetitosa ou qualquer sinônimo que o gênero dê. Afinal, os tempos são outros. O discurso é outro. Verônica, musa delirante de delírios ofegantes, não se prendia em estereótipos, olhares óticos, versos utópicos. Era uma deusa inclemente, dessas que cortam as vísceras dos loucos e dos que vivem noutra dimensão, em diáspora absoluta e frágil. Era muito mais do que vasos e músculos, úteros e peitos. Era algo afeito ao sonhar que o defeito das mentes não chega ao coração. Para ela, não há oração, procrastinação. Verônica é muito mais, aliás. Seu rebolado, atolado de trejeitos e defeitos, é muito melhor do que um bailado de cisne qualquer. Seu pensar, falar, sonhar, até a caligrafia, são muito mais além do que possamos pensar. No salão o samba rola. No teto, rolinhas põem ovos em proporção. A ação está prestes a acabar. Verônica entra em casa. Maldito sejam os tijolos que a escondem. Que um lobo qualquer de história infantil os derrubem. Longe de tudo, o poeta poetiza a mulher maior.

sábado, 16 de setembro de 2023

As duas e a Farofa Carioca

Por Ronaldo Faria


 
Uma grita para a outra e ninguém, na rua, consegue entender bem o que diziam.
-- Você viu onde eu coloquei o Bombril?
-- Eu vi, o céu está mesmo com uma cor de anil!
-- Como assim? Eu falei do Bombril. E você viu o Gandulfo, o que ele fez com a mulher? Meteu três tiros nela. Ainda bem que só um acertou. Ela está na UTI, mas deve sair dessa.
-- Eu sei, ensaboa mesmo com vontade essa calçada suja. O patrão quer tudo nos trinques.
Na avenida, o homem ouve tudo sem entender nada. Com um suor de inverno no meio do inferno que é a subida, dá de súbito com um som de blues.
-- Agora só falta uma brisa de maconha...
Não dá uma rua transversa a mais e um carro solta o odor mágico que dirime toda a dor.
-- Agora sim, ao menos dá um link e um clique na conversa sem nexo.
Defronte à loja, as mulheres continuam com seu solilóquio inacreditável.
-- Acho que vou tirar férias e vou de ônibus ver minha mãe, na Paraíba.
-- Pasta de copaíba? Não existe. É chiste.
-- A Carminha disse que agora só falta vender o corpo pra pagar a comida das crianças!
-- É verdade: a pança dilatada faz mal adoidado. Manda ela fazer regime e parar de beber feito louca.
Cansado da subida, o homem para. Respira fundo, transcende o próprio submundo e olha para o alto. O céu limpo de julho judia da idade. A secura pede uma a mais.
-- A solução é travar numa mesa de bar...
Barulhenta, a avenida transcorre em carros, fumaças e gente na pista. Santa Edwiges que dê brilho à loucura em decúbito dorsal. Sentado na mesa de plástico, ele apenas olha a espuma que teima do copo descer.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Parangolé com Lucy Alves

Por Ronaldo Faria


-- Eita, homi, que eu já tive bem melhor do que isso. Senão, igual tal e qual, arretada, com certeza. Mas foram noutros tempos. Eu era formoso de tudo, dentes todos na boca, capaz de virar a noite e a madrugada com um eclipse no meio. Tudo no fervo. E com umas garrafas vazias na mesa cheia de mil rodeios numa arena de quatro paredes com uma cama no meio.

-- É verdade, Marfino? Ocê tem a fama de prosear além da boca... Inventa umas invenções da sua cabeça e sabe-se lá o que vai dizer. Melhor do que aquela lá, duvido com dê, um ó e dó.

-- Sinfrônio, e tu já me viu mentindo e inventando de alguma coisa coisada ou espremida que saiu aqui de dentro? Pelo amor da minha égua Celebridade, é verdade! Das verdadeiras! Dessas que não tem rendeira que costure ou lavadeira que lave. Por isso que é ruim você não me acompanhar direto. Perde as coisas que só os meus olhos enxergam.

-- Sei não. Ocê delira demais. Depois de umas três ou quatro pingas dá de ver jabuti voando e cobra soltando maranhão. Vai ver essa galega não era isso tudo que teus olhos viram. No máximo, uma dessas comum que a gente cansa de esbarrar na feira de domingo.

-- Pois aí a égua caiu do galho. Ela era linda além da lindeza que Deus deu e fez. Pequenina, com as pernas lisas, uns peitos arretado de duro e olhos de um verde que nem o mar tem. O cabelo, esse então nem dá pra falar. Era um voar danado mesmo quando não tinha nem brisa no ar. E preto. Preto de um pretume que nem se a luz morresse de vez na Terra teria igual. E a boca: vermelha de sangue com uns dentes brancos de marfim dentro e uma língua que lambia até o sabor mais profundo da garganta.

-- Eita, mas aí já me deixou maluco. Uma dessas não é só pra ver. É pra agarrar e nunca mais deixar ir. E ocê deu de perder ela, Marfino? Isso é questão de prisão pro resto da vida no fundo do inferno mais quente e amofinado que exista!

-- Pois é. Concordo. Com corda e cerol pra cortar a emoção mais forte. É como pegar um carro dos bons e quebrar no poste. Mas não foi culpa minha não. Na verdade, tive que deixar ela ir.

-- Como assim?

-- Sabe, Sinfrônio, tem coisas que a vida manda e coisas que quem manda é o destino ou a dor sem fim. No meu caso, acho que foram as duas. Sabe quando a lua sombreia o pé de mandacaru e o reflexo, frouxo, não bate nem na pedra que o gado pisou? E não tem vagalume ou coruja que estejam por lá. Pois é. Tudo que era alumiado, desalumiou. O que era passo dado, o passo desandou. No lugar do sorriso amarelado, lágrima desaguou. E não tinha muito mesmo o que fazer. Tem coisa que é pra nós, mas tem coisas que é um tanto de nós que não dá pra desatar. No caso contado como causo, essa foi a certeza: faltou semente pra plantar e fazer a vida brotar.

-- É, que tristeza mais tristonha e medonha. Às vezes o melhor é não ver mesmo o que os olhos aprumam. Mas, liga não. O que a vida não dá liga não é pra dar solução...

Sinfrônio levanta a mão e chama o dono da birosca, Manoel Português do Beirão.

-- Seu Beirão, traz mais duas pingas e outro litrão. Hoje o Marfino resolveu se escangalhar. E nessas horas é que amigo do ombro grande tem que o ombro aumentar! Coloca querosene no gerador e põe na vitrola um forró da pega que o bicho vai pegar!

No horizonte logo ali defronte, sob a luz do lampião e a bênção do candeeiro, a morena rebola na trilha de pó a enlouquecer outro homem que espera a amada sem dó.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Ao Jorge Mautner

Por Ronaldo Faria


Imbróglio lógico, ideológico e analógico, sobrenatural e antropofágico, descartável nas milhões de postagens que nem precisam de selo. Agora a espera de dias pela carta sofrida ou ungida está descartada. Quem dera sê-lo num passado frágil e ágil, como um agiota dos anos. A beber a chuva e comer o raio de sol que volatiliza a cada rodar da Terra. Tomar dois cafés à espera da consulta do filho faz romper a madrugada e tragar e irromper sílabas e sortilégios. No alto da árvore a gralha gorjeia sem sequer saber o que é isso. E se o sono insone não vem, que possamos ouvir o violino e voz de Jorge Mautner. Em algum lugar a matilha invadirá a Ilha de Malta para comer chocolates escarlates que a larica sobremaneira dá. Senão, mais uma lata (não da lata) para recompor o pouco de água que o inverno pede para sugar. A conta perdida de idas à geladeira só determina que a mina das palavras não se extinguiu. É só garimpar a letra par ou ímpar. Ouvir a fálica falência da ciência e volatizar como fosse o vento véu da noiva largada ao altar. Se engasgar na rima, perde-se o rumo da trilha da poesia. No mar talvez ainda haja alguma enguia esguia a se esgueirar. Nos dentes que restam, a assinatura de um boliviano. Mas, a quantas andam o grilo? E o grelo? E a grelha? Corpo em colapso atávico, transmutemo-nos em velhas senhoras que mostram suas pelancas em Copacabana. Senão, porque não, viajemos a lua que desapareceu do alto para não ter que usar sapato de salto alto. Solilóquio de si consigo mesmo, a esmo, que sejamos esmeros e mesmices. Ou como diz o poeta Mautner, “como é bonita a bandeira brasileira”. Será? Tenho minhas dúvidas. Onde está o amor da frase? Positivismo é o famoso cu do anu! Saibamos ao menos ainda limpar o...

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Mundo Livre S/A

 Por Ronaldo Faria

 


Chapação! Chapa quente e frio com os pés no chão. Os paralelepípedos gelados são amargos para quem quer enlouquecer e viver a correr tresloucado feito viciado em frio do Sul. Abaixo, mas não muito mais abaixo, algo feito algoritmo traz mau agouro no que há de duradouro. E o ouro? Onde está o ouro? No canto, a voz inumana de um louro. A alforria espera somente a derradeira semente que transpassa veias do coração sangrar e não brotar. Na cama, um curso particular de anatomia e alforria.

-- Alfredo, cadê o aconchego? A pegação? Aquilo que foi plantado mão a mão?

Alfredo não responde. Há poucos minutos estava no bonde a bandear de um lugar para outro chegar. Não tinha tempo de saber o que era amar. Sequer de ver o mar. Mas havia prometido a si mesmo que um dia pegaria uma excursão para qualquer pé de areia, fosse essa capa de revista ou apêndice de prospecção de poluição. “Ainda vou ver esse tal de mar. E descobrir se ele é maior do que o poço que tem aqui defronte.”

Na fronte queimada pelo sol e poeira que emanam do céu e do chão, Alfredo caminha e se reescreve como Caminha na carta proscrita. “Daqui, nada se planta porque se sabe que nada dá”. A enxada, aposentada, virou pouso de pássaro que soube resistir ao frigir de ovos no ninho. As mãos, cheias de calos, carcomidas e sem ver comida, são apenas um par de feridas. Mal consegue acarinhar o rosto da mulher que sobrou no casebre de pau a pique. “Quando eu voltar à mingua, sem nada, ela ainda estará por lá?”

E assim, indo para onde ainda se vai e se esvai, Alfredo, ser que é o paradoxo de si mesmo, olha o olhar lancinante da coruja, esbugalhado no fátuo fardo, e continua encarquilhado. A casa de farinha, vazia, como que diz “tire a realidade daqui que eu quero passar com a minha dor”. O odor que sai do grande forno de ferro se espalha como palha queimada. Na curva que o vento faz, um vaqueiro tenta juntar a boiada que teima em se livrar da morte certa. Alfredo só pensa: “em Creta, com certeza, bosta de boi não há.”

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Vendaval e Tom Zé

Por Ronaldo Faria


O vento ventarola nas folhas verdes que sobreviveram ao inverno. Há, decerto, um credo que o mais incrédulo dos amantes sabe ser o decreto final. Fugaz, o vento entra entre as frestas da janela e volteia até chegar o corpo da amada que se despiu depois da fala definitiva: “Um beijo assim? Achei que ia me pegar na bunda. Vou tentar de novo”.

A brisa que corre entre esquinas lambuzadas de lânguidas línguas e goles de cerveja que vivem na madrugada a sua última sina são a crença de que ainda há muito a se viver. Os prédios, no prenúncio de que o trabalho existirá a longas trilhas, aos poucos se apagam. Irão trocar a luz de lâmpadas por cobertores e o negror que postes ainda dão.

Na solidão que só a imensidão do amor dá, soa um tanto de entretanto, talvez e quem saberá. Nenhuma ave tenta voar. Com o vento e o frio que brincam de lugar, todas se aquecem como dá. Os caules, mínimos e pelados, não há muito onde se esconder. No quarto, o homem sorri com o sorriso dela. “Deus, nos dentes há tanta procela!”

Na vitrola, Tom Zé diz que a ilha não tem fuzil. Tomara que amanhã o céu seja de anil. Se não for, digamos juntos: “O tempo merece ir para a puta que o pariu!” Fade-out: um carro freia na esquina. Por pouco não se torna estatística a mais. Ao colocar o agasalho o homem descobre que a estática não é invenção de Orfeu. Os pelos que o digam.

No colorido doído e doido que percorre veias e neurônios, vê-se brilho reluzente e pungente do lado de fora. Aforismo à parte, cada passo parece envolto em amores e amoras que descansam para brotar. Do cubículo da criação, o poeta perpetra o pródigo alvorecer. Amanhã chegará o que não sabemos nem ao menos crer ou ver renascer.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Gonzaguinha e Gonzagão

Por Ronaldo Faria


Já que a morte é próxima e próspera, num chegar de cinzas deletérias e etéreas, vamos continuar. O cavalo ainda aguenta, meus santos da escrita.

 O gado corre junto, seguindo um líder qualquer no rebanho, entre a terra seca e os poucos rastros e restos de vida que sobreviveram ao fogo ardente. Um pequeno poço no dia de hoje e amanhã irá encher barris de madeira de jumentos que levarão o fim da sede aos donos da terra. Mas haverá quem seja dono de algo? Nem o algoz dirá.

Na mesa o homem pensa se já está bêbado o bastante ou outro bastante poderá ficar. Quem saberá? No ar, Gonzaguinha e Gonzagão. E voltam saudades de infância, fragrância da distância de estar longe do medo, envolvido em trapos de coberta, a saber que um dia se largará entre facadas que convivem em pesadelos até hoje.

Mas o que são memórias, essas imemoriáveis causas de indecisões e decisões? Serão mágicas magias ou palavras impávidas num colosso? Talvez um Rio Real que irá desaguar no São Francisco ou, quiçá, no meio do mar. Na vida de arapucas e poucos pássaros a cair nelas, a saudade, essa palavra cheia de maldades e finda em si mesma.

sábado, 2 de setembro de 2023

Na Discoteca do Chacrinha

Por Ronaldo Faria 


Na estrada do estrado do destino jogado no chão um fuscão preto corre no poeirão da vida. Poucas curvas turvas fazem a moça virar do avesso para amar. Quem sabe um vazio entre o vazio e descalabro do vazio se faça um rio que traz Um pouco de Wando e se perder. Um copo de cerveja no chão, porque não... Talvez uma música brega, para uma cândida Cândida inebriada de uma ingrata que, sobremaneira, se faz faceira para um, quem sabe, próximo alvorecer? Poxa, como um poeta louco te procuro no obscuro limiar entre a razão e a loucura. Mas tal limiar existirá? Quem poderá em algum momento saber? No alento que não há, sou só recordações e embriagadas razões. Sei, porém, que a noite vai chegar. Aliás, faz tempo que chegou. Um grilo na cuca, talvez, permanecerá. Creia, minha verdade sem verdades, ele nunca nos deixou. Assim, caminhemos a achar que a vida é mais linda. Meu coração é uma bomba atômica. Como diria o Waldick, “eu não sou cachorro não”. Ou talvez, quem sabe, pudesse sê-lo. Como uma pequenina do meu amor em manhãs de setembro. “Não se vá”. Agora, no interstício da loucura criativa e da caretice diária, no passado dos idos de muitas décadas atrás, tanto faz como tanto fez. Na verdade, Chacrinha há muito já mostrou que o Brasil nos seus rincões é brega, tradicionalista e que não quer mudar. É aceitar ou não. Criar teses fantásticas, popularizar eméritos pensadores que não curtem, como eu, suas dores, nada farão para a essência da ciência mudar. E não adianta Odair José querer nos tirar deste lugar. Infelizmente, creiam, de lá (daqui) nunca sairemos. Afinal, queremos ou não bacalhau? Quem sabe um rebolado da Gretchen não nos devolva a vulva ou a bunda que tanto ansiamos? Quem poderá desejar? Há desejos nesse mundo de tela de celular? Quem poderá responder? Eu não sei. Nos alforjes que um burro sertanejo carrega, “freak le bom bom”, ou bumbum. Só sei que como diria Paulo Diniz, “quero voltar pra Bahia”. Aliás, o que João Fontes, que é nome de fórum em Sergipe, foi fazer no Rio? Saber-se-á. Na capital federal de então a vida, ávida de vida, foi melhor? Quem não arrisca não petisca. Logo, sigamos na pista. Severina Xique-Xique não deixe que olhem a sua boutique. A sua e nossa carta de alforria chegaram ou ainda chegarão, mesmo que tardias... Nas minhas lembranças de infância um enxame de abelhas africanas ainda passa zumbindo sobre o menino que se jogou na grama da fazenda que ensinou a criança a viver.

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Torquato Neto de “novo”

Por Ronaldo Faria


“Que nova Tropicália ainda teremos de viver para sermos um Brasil?” Gumercindo pergunta a si mesmo sem resposta. Afinal, a posta de peixe com leite de coco transborda na borda de um prato branco mequetrefe pedindo para cair na mesa e frustrar os tantos cifrões pagos por ele. Mas, devagar, Gumercindo arruma com a faca o excesso de iguaria e ri como fosse marajá de qualquer país onde há de tudo, menos a prevista vida.

A reler Torquato Neto, meio bêbado e outro tanto feito feto, num gesto de afeto que pouco na vida viu, ele tenta ter coragem como Nara Leão cantou. Sabe que a vida, sem dentes e demente, não lhe dará muito. Mas, com a velocidade já pregada pela Semana de Arte Moderna em voga, pouco sobra ou sobrará. No imaginário de uma louvação, quem sabe talvez a altivez do louco que espera o muro do manicômio pular.

Avoé, Torquato, que esteja onde estiver a cheirar gases e fases, possa encontrar um universo por aí. Daqui, nesse mundinho cada vez mais mundinho, vamos a sobrevier, sobremaneira, no fundo limítrofe que há entre o global de algoritmos e o quase extinto jornal. Nos teclados que vociferam tempos e têmporas, falências mil. No balde que descansa na área de serviço, um submisso pano arrebata desejos e ensejos da mulher em lírios.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Dick Farney outra vez

Por Ronaldo Faria


Ao longe e perto o Morro Dois Irmãos se enche de raios de sol. Ao pisar passos poucos e trôpegos na areia do Leblon, Afrânio, que não é de Mello e nem de Franco, vê os raios fulgidos e fugidios da manhã brejeira se entremearem em casebres e ruelas. Ele sabe que a providência divina, essa que ensinam nos púlpitos perversos e sem versos de religião qualquer, não há. Por isso caminha já sabedor que a busca da felicidade não permeia a cidade. Quem sabe um copo de cachaça, uma mesa quadrada de madeira, cadeira perto do mar não refaçam a esperança de não ter vindo a este mundo em vão? “Se eu vim, o que eu tenho ainda a pagar?”

Mão levantada e dedo em riste pede o cardápio. O velho patrício haverá de servi-lo. “Traz uma gelada, uma porção de batatas com queijo, uma do alambique”. Pedido anotado. “Espero que tudo venha do meu agrado” - pensa. No céu, uma aeronave passa em luzes brilhantes e barulho de turbinas. “Queria estar nele, fosse para onde for”. Chega o pedido. Tudo OK. O que poderia agora dar errado? O celular toca. “Não vou atender, foda-se”. Uma chuva breve e molhada cai do alto. E como chegam lembranças, andanças, catanças de emoções.

Do asfalto, como fosse um assalto de querências e tristezas em perfídias, um casal briga pelo fim que não deveria ter acontecido. Por que as pessoas rompem laços efêmeros e lascivos? Saber-se-á. Também, se não soubermos, que causa terá? Não sabemos sequer o segundo que virá, quanto mais o destino dos outros. Outrora, se amaram, se tocaram, uniram corpos, carne e sonhares. Hoje, nem soníferos dão o parágrafo letal. Barulhento, um ônibus leva pessoas na busca do lar. Nalgum momento o tormento em acalanto pedirá para, enfim, chegar. 

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Lúcio Alves

Por Ronaldo Faria


Carlito sai da repartição cabisbaixo. Sabe que não há muito a comemorar. Para no Amarelinho e pede um chope. “Porção?” – pergunta o garçom solícito. “Não, obrigado. Mas não deixe a serpentina esquentar. Muitos mais virão”, responde de forma educada e branda.

Seu dia foi redundantemente repetitivo. Mesmas coisas, mesmos horários, honorários iguais. Nada aconteceu de novo. Mesmo da janela taciturna da repartição nada que valha lembrar, além dos pombos a cagar sem parar e arrulhar para uma pomba ou outra mais.

“Que merda! Vale a pena estar aqui para vivenciar este fim de vida? Podia estar no São João Batista ou no Caju que não faria a mínima diferença”, pensou. Aos poucos as luzes da noite se sobrepõem ao entardecer. No entremeio de tudo, um sorumbático e vil viver.

“Garçom, traz outro!” A voz de Carlito, como a mãe em vida o chamava, sai como um brado. O operário dos desejos de bêbados e afins logo cumpre o pedido. Defronte ao bar, os poucos pombos que não dormiram buscam quirelas pelo chão de pedras portuguesas.

No relógio do tempo e no biológico, ambos sem lógica, as horas vão vivendo minutos argutos que correm pelo esgoto. Um cheiro vem do Aterro do Flamengo com jeito de mar e orgia. Na mesa solitária, Carlito parece aflito num conflito eterno de não querer viver...

E o tempo cronológico verte tão em desespero que se esvai. O garçom, solícito, solicita que ele deixe o lugar. “Por favor, vamos fechar. Até Madureira é muito trilho pra andar”. Carlito paga a conta. Agora é saber-se-á o que virá. Urina no Monumento aos Pracinhas...

“Perdeu! Perdeu!” Com um revólver apontado para si, Carlito levanta as mãos. Diz que restam poucos centavos, que vá buscar com o garçom. Não cola. Três tiros de um 38 enferrujado. Cai exangue numa poça de sangue. Amanhã, pela hora, nem pé de página será.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Maysa

Por Ronaldo Faria

Ano: 1950. Voz: Maysa. Música: O Barquinho. Tempo de reprodução: 2:19.

 Arnaldo caminha na areia de Copacabana. Ao lado carros passam voláteis e rápidos. Na Avenida Atlântica prédios ainda respingam luzes sob a noite quase madrugada. Prostituas e travestis disputam o calçadão. Um ou outro sedento de amor, seja qual for, para ver preço, apreço, presumidos sonhos de um solitário qualquer. Há um ou outro também a correr, passear de mãos dadas, a dar suspiros antes dos respiros prolongados que os corpos em sexo dão e se darão.

Para Arnaldo não há muito o que ver. A amante de sempre já não existe, os imbróglios de se fazer dois já não brilha nem sequer o poste queimado antes do Posto 6. Alhures, haverá uma rua sombria, com seus botecos e bares a envolver urinas madrigais, cheiros de creolina, poesias rasgadas nos guardanapos usados. Mas ele segue sonolento e lento na busca do seu quarto e sala onde deitará o corpo envolto numa manta fina. Afinal a janela ficará aberta e a brisa irá chegar.

Arnaldo sobe no elevador onde grades ainda fecham a porta e abre a porta do apartamento 1020 jogado de frente para outro prédio triste. Ouve tosses mil. “Como é foda morar num edifício lotado de velhos”. Abre a geladeira, sonha que o gelo esteja com os centígrados de uma geleira e pega a cerveja. Senta no sofá rasgado e, de bom grado, toma, sôfrego, um gole que acaba em arroto. Põe um disco na vitrola. Maysa, com seus olhos verdes, canta uma bossa que não é nova.

Para Arnaldo, pouco importa. Há muito o tempo inexiste. Triste, olha pela janela o que parece ser a briga de um cafetão com sua propriedade. Respira o ar que vem com cheiro de mar, olha para o céu e uma lua sobremaneira pungente lhe dá boas vindas. Mais um dia a menos, Outro dia a mais. Ele sabe que pouco lhe resta. Vontade já não há. Menino eterno, põe o corpo, a crer que viver é sonhar.

 Quão bom é crer sem acreditar...

Acabou...

 Por Ronaldo Faria Acabou! Acabou o Carnaval, o sal da areia colado no corpo, o suor que escorreu entre perfumes falsos e tresloucados beijo...