Por Ronaldo Faria
-- Eita, homi, que eu já tive
bem melhor do que isso. Senão, igual tal e qual, arretada, com certeza. Mas foram noutros
tempos. Eu era formoso de tudo, dentes todos na boca, capaz de virar a noite e a
madrugada com um eclipse no meio. Tudo no fervo. E com umas garrafas vazias na
mesa cheia de mil rodeios numa arena de quatro paredes com uma cama no meio.
-- É verdade, Marfino? Ocê tem
a fama de prosear além da boca... Inventa umas invenções da sua cabeça e
sabe-se lá o que vai dizer. Melhor do que aquela lá, duvido com dê, um ó e dó.
-- Sinfrônio, e tu já me viu
mentindo e inventando de alguma coisa coisada ou espremida que saiu aqui de
dentro? Pelo amor da minha égua Celebridade, é verdade! Das verdadeiras! Dessas
que não tem rendeira que costure ou lavadeira que lave. Por isso que é ruim
você não me acompanhar direto. Perde as coisas que só os meus olhos enxergam.
-- Sei não. Ocê delira demais.
Depois de umas três ou quatro pingas dá de ver jabuti voando e cobra soltando maranhão.
Vai ver essa galega não era isso tudo que teus olhos viram. No máximo, uma dessas
comum que a gente cansa de esbarrar na feira de domingo.
-- Pois aí a égua caiu do galho.
Ela era linda além da lindeza que Deus deu e fez. Pequenina, com as pernas lisas,
uns peitos arretado de duro e olhos de um verde que nem o mar tem. O cabelo,
esse então nem dá pra falar. Era um voar danado mesmo quando não tinha nem
brisa no ar. E preto. Preto de um pretume que nem se a luz morresse de vez na Terra
teria igual. E a boca: vermelha de sangue com uns dentes brancos de marfim
dentro e uma língua que lambia até o sabor mais profundo da garganta.
-- Eita, mas aí já me deixou
maluco. Uma dessas não é só pra ver. É pra agarrar e nunca mais deixar ir. E
ocê deu de perder ela, Marfino? Isso é questão de prisão pro resto da vida no
fundo do inferno mais quente e amofinado que exista!
-- Pois é. Concordo. Com corda
e cerol pra cortar a emoção mais forte. É como pegar um carro dos bons e quebrar
no poste. Mas não foi culpa minha não. Na verdade, tive que deixar ela ir.
-- Como assim?
-- Sabe, Sinfrônio, tem coisas
que a vida manda e coisas que quem manda é o destino ou a dor sem fim. No meu
caso, acho que foram as duas. Sabe quando a lua sombreia o pé de mandacaru e o
reflexo, frouxo, não bate nem na pedra que o gado pisou? E não tem vagalume ou
coruja que estejam por lá. Pois é. Tudo que era alumiado, desalumiou. O que era
passo dado, o passo desandou. No lugar do sorriso amarelado, lágrima desaguou. E
não tinha muito mesmo o que fazer. Tem coisa que é pra nós, mas tem coisas que
é um tanto de nós que não dá pra desatar. No caso contado como causo, essa foi
a certeza: faltou semente pra plantar e fazer a vida brotar.
-- É, que tristeza mais
tristonha e medonha. Às vezes o melhor é não ver mesmo o que os olhos aprumam.
Mas, liga não. O que a vida não dá liga não é pra dar solução...
Sinfrônio levanta a mão e
chama o dono da birosca, Manoel Português do Beirão.
-- Seu Beirão, traz mais duas
pingas e outro litrão. Hoje o Marfino resolveu se escangalhar. E nessas horas é
que amigo do ombro grande tem que o ombro aumentar! Coloca querosene no gerador
e põe na vitrola um forró da pega que o bicho vai pegar!
No horizonte logo ali
defronte, sob a luz do lampião e a bênção do candeeiro, a morena rebola na
trilha de pó a enlouquecer outro homem que espera a amada sem dó.