terça-feira, 5 de agosto de 2025

Na discussão

 Por Ronaldo Faria


A discussão tinha surgido sem antes e nem também porém, de repente, como rompante desses que surge e urge quando um vento bate rápido na orelha e não dá tempo de segurar nem a saia que voa ou o cabelo que despenteia. Feito folha de planta nova, dessas que não se aguenta em pé nem com restinho de brisa. E foi palavrão pra cá, xingamento pra lá, um tal de crescer pra cima e pra baixo que nem lutador de MMA saberia definir. Capoeira era pouca pra tanta poeira. Ambos os dois, como diria o incauto no português régio e correto, se estranharam por causa das curvas de Esmeralda. Afinal, ela tinha ancas de parideira ou bunda de fechar comércio? Um defendia que ela era pra casar, o outro queria ter com ela apenas um almoço, onde o filé já estava garantido. Machistas? Talvez. Ou apenas dois a ficarem babando por Esmeralda e sua beleza de musa e mulher. Só se soube no entrevero que logo juntou a turma do “deixa disso” e os outros que queriam ver sangue de graça no final da tarde.
-- E aí, vai sair porrada ou não?
-- Tenham calma, isso é discussão besta! Ela é gostosa e ponto final!
-- Nem fodendo, vocês são homens ou não? Mete a mão ou a faca logo na cara!
-- Porra, vocês estavam bebendo de boa até Esmeralda aparecer!
-- Pega logo a garrafa vazia e quebra na cabeça dele!
-- Mulher é pra se admirar, não é para se matar!
E tantas frases mais ditas por apaziguadores e detratores. Malditas ou benditas frases. Tudo para que os amigos de bar virassem a mesa num trocar de socos e pontapés ou que voltassem a beber voláteis e unidos, em risos.
-- Se o cacete rolar geral, vou chamar a polícia! – gritou detrás do balcão o dono da birosca, Manoel do Benfica.
Acima da cena a lua surgia despretensiosa no céu e ciosa de que talvez visse seu prateado iluminar o vermelho de sangue a se esvair morro abaixo. Uma pomba trepava com outra à espera de um ninho de ovos a brotar. O cachorro da Dona Clemência latia desesperado com o gato do Seu Vicente que subiu no muro só pra sacanear. João Pires da Gama, que não era vascaíno, chegava do trabalho, cansado, e só queria tomar uma dose para relaxar. Lucrécia, sempre com raiva dos pais pelo nome infausto, seguia para a vendinha onde iria comprar o feijão da mistura noturna (se é que o resto do botijão ia conseguir cozinhar). Gastão, motorista do lotação, enxugava o suor de chofer a passar pelo local na direção da garagem do circular. Valtinho da Pindura, cujo nome já falava tudo, implorava outra pra pagar depois, quando a vida melhorasse. Assim, com a vida a seguir sua sentença e retidão, foi preciso que Esmeralda, vendo a cena que causara sem querer, resolvesse voltar e gritar alto, do alto da maior formosura do lugar.
-- Seus dois bostas, ouçam bem: sou pra casar, sim, quando eu assim decidir e quiser, e também pra ficar de bunda ao ar livre quando desejar. Mas isso porque eu decido o que quiser. Mas, pra vocês dois, bundas moles ao contrário da minha, não tem nem casamento e nem rola-rola na rola. Se eu precisasse de merda iria para o banheiro cagar! Tomem tento e jeito, arremedos de algo...
Dita a sentença, linda no seu requebrar natural que tanto chamara a atenção do mundo inteiro, ela voltou para casa, onde tinha muito mais o que fazer. Estarrecidos, macambúzios e sorumbáticos, perplexos e sem ação, os dois antes beligerantes voltam a se sentar nas cadeiras que serviriam de armas letais. Com riso amarelo nas bocas quase desdentadas, se olham e falam, quase uníssonos: “Seu Manoel, desce outra pra comemorar!” Na biqueira próxima o vapor desce com duas gramas que o bacana, que riu da cena, quer comprar. Do alto, a lua respira feliz por apenas servir de sentença para os poetas.

(Ao som do Zeca Baleiro)

domingo, 3 de agosto de 2025

Um gigante do jazz que viveu só 30 anos *

Por Edmilson Siqueira


"A vida de Chick Webb foi em parte tragédia, em parte triunfo e cheia de ironia. Nascido aleijado, Webb se destacou no mais físico dos instrumentos, a bateria. Junto com Jo Jones (que ele precedeu), Webb foi o mais influente baterista da era do swing, mais até que Gene Krupa (que o idolatrava) que ganhou mais publicidade e fama. Webb tinha uma das maiores big bands de jazz dos anos de 1930, embora hoje seja mais conhecida por lançar Ella Fitzgerald, uma cantora a quem Webb foi, inicialmente, relutante em admitir, mas que foi posteriormente celebrada como sua grande descoberta." 
O texto acim é parte do que escreve Scott Yanow, crítico e historiador de jazz norte-americano, no encarte que acompanha a coletânea "Standing Tall", de Chick Webb & His Orchestra, com algumas participações de Ella Fitzgerald.  
A cantora, que ganhou grande e merecida fama depois, nem é a atração principal do disco. Além do supremo baterista, são destaques na capa do CD, Taft Jordan, Bobby Starkm Dick Vance e Teddy McRae, grandes instrumentistas que ajudavam a manter a fama de uma das melhores orquestras dos anos 1930 nos EUA. 
Essa coletânea, da Alamac Records, lançada em 1996, busca resgatar e preservar o legado do jazz dos anos 1930. E esse CD é uma prova sonora da genialidade de um dos maiores bateristas e líderes de banda do swing. Embora Webb tenha vivido apenas até os 30 anos, sua influência foi gigantesca — e, como o título do álbum sugere, ele permanece "de pé" na história da música, como um gigante que moldou o curso do jazz. 
Chick Webb, nasceu em 1905, em Baltimore, e enfrentou desde cedo sérios problemas de saúde. Sofria de tuberculose espinhal (conhecida como mal de Pott), o que comprometeu seu crescimento físico e o deixou com graves limitações. Mas ao invés de ceder, ele encontrou na bateria uma forma de expressão poderosa e libertadora. Seu estilo era explosivo, preciso, energético — um verdadeiro motor rítmico para a big band que liderava com mão firme no Savoy Ballroom, no Harlem, em Nova York. 
O CD também serve como um testemunho do início da carreira da grande Ella Fitzgerald. Quando Webb a descobriu, ela era uma adolescente desajeitada, tímida e com pouca experiência. Mas, depois de uma rejeição inicial, o líder da banda viu potencial. Com sua voz cristalina e swing natural, Ella logo se tornaria a estrela do grupo.  


Além de Fitzgerald, a orquestra de Webb abrigou músicos de alto nível como o saxofonista Chauncey Haughton, o trompetista Taft Jordan e o arranjador Edgar Sampson, responsável por clássicos como "Stompin’ at the Savoy". A interação entre esses músicos, sob a batuta vigorosa de Webb, fazia da banda uma verdadeira máquina de swing — talvez a mais afiada da época, rivalizando com as de Benny Goodman e Count Basie. 
Scott Yanow assim finaliza seu artigo no encarte da coletânea:  
"Chick Webb morreu de tuberculose em 16 de junho de 1939. Ella Fitzgerald ainda ficou na banda por mais dois anos. E, nas décadas seguintes, Gene Krupa, Buddy Rich e Louie Bellson, mantiveram vivo o nome de Chick Webb, louvando constantemente seu swing, sua técnica e seu modo de dirigir a orquestra. Agora, nesse disco, os ouvintes de hoje podem conhecer o legado musical do imortal Chick Webb." 
A coletânea é composta por 12 faixas: 
1 - Blue Room (Rodgers e Hart) 2 - Deep In A Dream (Von Heusen e DeLonge) 3 - Breakin' Em Down 4 - Sugar Blues (Willians e Fletcher) 5 - Tain't What You Do (S.Oliver) 6 - One O'Clock Jump (C. BAsier) 7 - Stars & Stripes Forever (J. P. Souse) 8 - I Never Knew Heaven Could Speak (Gordon e Revel) 9 - Poor Little Rich Girl (N. Coward) 10 - It I Didn't Care (J. Lawrence) 11 - My Wild Irish Rose (Scott e Chauncey) 12 - Chew, Chew, Chew (Fitzgerald, Web e Ram) 
O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?zSBdl0vaAoA&list=PLj0znMzyCQIBO_Gic5qKDGPtTRdKMU_kx 


*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Creiam na Clementina

Por Ronaldo Faria 



 

Ela, Clementina, tinha o mesmo sobrenome do marido – Silva Camões. Coisa de casal antigo, em que a mulher virava posse lavrada em cartório do marido. Na pose do tempo do porta-retratos, um possesso tormento das frágeis ilusões de cada um. A casa seria quase um casebre se levarmos em conta o jeito rotundo com que ela se espelhava diante da linha de trem que carregava as pessoas à sua tragédia, quase comédia, de viver para trabalhar e minguar. Mas nessa casa, construída nos Anos 40 do século que já se foi, Clementina era um ser clemente de vida, temente da sorte, ciente de que o ser humano é mais um mero vivente.

Seu marido era Astrogildo. Astrogildo Soares da Silva Camões, escrevente num escritório de contabilidade no Centro da cidade. Antes, na juventude, tinha sido professor de datilografia numa escola do subúrbio – Time Is Money. E anteriormente era engraxate de sapatos na Estação Leopoldina. Ali, entre cruzeiros velhos, apitos de locomotivas e fumaça de lotações com seus escapamentos cinzentos, sonhava em viajar. Conhecer o Brasil, juntar sabores e odores, sotaques e suores, olhares e toques noturnos em bares e biroscas. Mas o tempo passara e ele ficou por ali mesmo, a seguir a Avenida Brasil a torcer para fugir dos tiroteios matinais. E dizia a si mesmo: “Já está bom demais”.

Eram um casal como tantos outros milhares, feito espigas de milharal que servem de pombal aos pássaros sem lar. Há muito não faziam amor, se é que um dia o tenham feito. Afinal, amor é coisa de dois iguais, como animais. E Clementina e Astrogildo eram partes diferentes do astrolábio a indicar a direção das estelas que costumam brilhar nos céus surgidos quando as paixões urgem maiores que o destino em comum. Logo, apenas eram. Erráticos no seu dia a dia, diários na rotina redundantemente igual, díspares seres que nunca deveriam ter se juntado. Mas Astrogildo a vira numa noite já bêbado, nos raros percalços daquele jovem descalço, e Clementina, perto de ser apenas a tia preferida, achou que era a hora de sair da surdina. E se juntaram e deu no que deu: um constante adeus mesmo sob o mesmo teto.

Mas, tão abrupto como o cocô de pomba que lavou o busto do marechal, o destino resolveu a questão de forma quase informal. Foi quando um périplo de crentes, desses chatos que acham que ninguém dorme e batem palmas logo quando o dia ainda raia, chegou ao portão de Clementina e Astrogildo. “Podemos falar a palavra do Senho!” – disse o crente mais velho e fanho, sem o mínimo brilho no olhar. Clementina, que não tinha mesmo muito com quem falar, aceitou ouvir a ladainha. E se sentiu rainha por ter um bando de mequetrefes à sua frente. Ouviu com tal atenção que queimou o feijão. Enquanto isso, Astrogildo terminava outro dia de batente. Desceu as escadas do prédio de escritórios com seus notórios amigos de trabalho, todos suados porque o proprietário do lugar não tinha mandado consertar o ar-condicionado, e pegou o ônibus para voltar ao lar. Viu as mesmas ruas, a mesma avenida, o trânsito lento, o tráfego interrompido por causa do tiroteio na Maré, as orações do passageiro do lado para a bala perdida não o achar. Chegou cansado, com vontade apenas de um banho e de um prato de comida junto com uma dose de cachaça. Mas qual, Clementina tinha ido para o templo honrar a Deus, convencida pelo pastor que precisava de nova ovelha para o dízimo doar. Diante de uma panela de feijão queimado e esturricado, Astrogildo, sem entender o sentido daquilo, pôs-se apenas a chorar. Nos trilhos defronte, outra composição passa a levar vidas e ilusões.

 (No som dos Novos Baianos)

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Dia útil

Por Ronaldo Faria


Abrir a tampinha da garrafa que está suada a se derramar no gelo que escorre no mármore cor de pranto e espanto. Em época de degelo solar, com urso nadando em beira-mar e mamute a pisar a terra chispada de lava quente, o importante é rabiscar de letras pretas o branco a explodir quase invisível no risível enlouquecer que traz no sustenido um milho guardado em formol.
Despejar o líquido insípido e amarelo no ralo que há entre a garganta e a tântrica certeza do cérebro a se embriagar. Brincar de ser e rever os raros momentos em que os tormentos lavam de sabão em pó o pó que move a amplidão da criação. Nas mazelas que correm feito gazelas, as procelas que se escondem nas pradarias cercadas de padarias para a larica fugaz, o cismo de voltar.
Entregar os tragos dados aos orixás, libertar nas têmporas que o tempo sintetiza em segundos próximos e últimos, fugir na prisão que a liberdade da loucura procrastina, mas dá. Sequenciar sequelas e sequências, ausências, proficiências, ciências ocultas e cultas que o tempo faz prenunciar. Nas etéreas lambidas das feridas, nos unguentos que regem a sanidade profanar, se recriar.
Dançar entre pernas, paixões e derradeiras brincadeiras. Suar nas camas sorrateiras que se dão sobremaneira. Feito asneira, rodar por aí sem eira e nem beira. Brincar de papai e mamãe antes desses terem filhos e deixarem de se amar. Catar conchas e esconde-las entre as coxas para o pescador não dar falta delas. Pecador, rezar mil terços e a cada continha do crucifixo jurar que vai mudar.
Fazer lençóis como anzóis que pescam os pecadores que se entregam à luxúria que a vida dá. Falar pelos cotovelos, silenciar nos novelos que o amor faz enrolar. Esfolar a pele nos pedidos sofridos que a amada ou o amado dão para fugir da solidão. Ser talvez ou senão. Em verbos rompidos, versos retorcidos, bisonhos gritos entoados em pleno torpor, saber que a loucura é a maior razão.

(Ainda sob o som das Chicas)

terça-feira, 29 de julho de 2025

Mel Tormé & Tony Bennett: os estilistas da canção *

Por Edmilson Siqueira



Juntar dois cantores geniais num mesmo disco não é tarefa fácil, embora muitos disco com duplas notáveis já tenham sido produzidos. O normal é que ambo cantem as faixas (ou a maioria delas) juntos, em arranjos novos para sucessos de cada um ou até alguma música inédita.  
Mas há também um outro modo de apresentar dois grandes cantores num mesmo disco sem que estejam juntos nas faixas. Foi o que fez a Charly Records em sua coleção Classic Jazz: gravou dez faixas de cada um, separados e fez um CD com vinte faixas divididas entre Mel Tormé e Tony Bennet.  
E o disco "Mel Tormé & Tony Bennett: The Song Stylists" acabou reunindo duas das vozes mais distintas e reverenciadas da música vocal norte-americana do século XX. Com isso, a série da Charly acabou ganhando uma coletânea que ao juntar as 20 músicas, se tornou um documento sonoro notável que destaca a maestria de Mel Tormé e Tony Bennett como intérpretes ou, como o título sugere, "estilistas da canção". 
Essa expressão, “song stylist”, é mais do que uma simples etiqueta de marketing: define cantores cuja assinatura está não apenas na beleza da voz, mas principalmente na forma como interpretam e transformam uma música. Tanto Tormé quanto Bennett se encaixam perfeitamente nessa definição, cada um à sua maneira, com personalidade marcante, sensibilidade e uma profunda conexão com o repertório do jazz e da canção popular americana. 
Mel Tormé, conhecido como "The Velvet Fog", (apelido que ele detestava) construiu sua reputação com uma voz aveludada e um fraseado absolutamente refinado. Músico completo — cantor, compositor, baterista e arranjador —, Tormé era uma figura admirada não apenas por sua voz sedosa, mas por sua compreensão profunda da música. E foi um bom escritor também. 
Nas faixas que compõem sua parte no álbum, Tormé brilha com sua costumeira elegância. Ele não apenas canta: ele molda cada canção como um escultor molda sua obra, exibindo um domínio técnico impressionante, utilizando-se de variações melódicas e dinâmicas vocais sutis que dão nova vida a standards conhecidos. 
Já Tony Bennett representa uma outra vertente do "song stylist": mais visceral, mais direto, mais emocionalmente carregado. Dono de uma voz calorosa, com timbre robusto, Bennett é um mestre da interpretação apaixonada, sempre cantando com o coração na garganta. 
Mesmo nas canções mais simples, Bennett consegue extrair nuances de emoção que transformam a experiência auditiva. Ao contrário de Tormé, que frequentemente usa a sutileza como sua principal ferramenta, Bennett prefere a exposição emocional — ele se entrega por inteiro, com uma intensidade que beira o teatral, mas nunca ultrapassa os limites do bom gosto. 



O grande mérito de "The Song Stylists" está na capacidade de oferecer um retrato comparativo de duas escolas distintas de interpretação vocal, sem que se possa dizer que uma é melhor que a outra. Se Tormé representa o refinamento técnico e um cuidado jazzístico com as notas e com o tempo, Bennett é o expoente da emoção direta, da entrega apaixonada e da comunicação com o público. 
Por fim, é interessante notar que os dois artistas também tinham grande apreço um pelo outro. Em entrevistas, Tony Bennett expressou diversas vezes sua admiração por Mel Tormé, considerando-o um dos maiores cantores que já ouviu. Tormé, por sua vez, reconhecia em Bennett um intérprete autêntico, cuja paixão pela música era evidente em cada apresentação. 

As primeiras dez músicas são interpretadas por Mel Tormé:
1 - I'm Getting Sentimental Over Your (Bassman e Washington)
2 - I Can't Believe That You're In Love With Me (McHugh e Gaskill)
3 - Prelude To A Kiss (Ellington e Mills)
4 - You've Got The World In A String (Arlen e Koehler)
5 - (You've Got Me Between) The Devil And The Deep Blue Sea (Koehler e Arlen)
6 - I Surrender Dear (Cliford e Barris)
7 - I Let A Song Go Out Of My Heart (Ellington, Mills e Nema)
8 - Don't Worry About Me (Koehler e Bloom)
9 - One Morning In May (Carmichael e Parish)
10 - I Can't Give You Anything But Love (Fields e McHugh)
As 10 seguintes, cantadas por Tony Bennet:
11 - I've Grown Accustomed To Her Face (Lowe e Gaylemmer)
12 - Jeepers Creepers (Warren e Mercer)
13 - Growing Pains (Stone)
14 - Poor Little Rich Girl (Coward e Ascherberg)
15 - Are You Having Any Fun? (Yellen)
16 - I Guess I'll Have To  Change My Plans (Dietz e Schwartz)
17 - Chicago (Von Heusen e Cohn)
18 - With Plenty Of Money And You (Dubin e Warren)
19 - Anything Goes (Porter)
20 - Life Is A Song (Ahlet e Young)
O CD pode ser comprado nos bons sites do ramo. Atenção aos preços que são bem diferentes. Não consegui nenhum site que desmobilizasse o CD para ouvir. 

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

A pensar em pitibiriba longe de Pirituba

  Por Ronaldo Faria


-- Necas de pitibiribas!
Com o sol a nascer, uns poucos raios encruados a percorrerem os galhos das árvores onde pássaros despertam seus cantos e trinados, como fossem treinados e doutrinados para a vida, José caminha na praça de descida e subida. E segue seus pensamentos e lamentos, saudades e trôpegos ausentes sonhos. Com passos firmes a pisarem o asfalto opaco, no cansaço de uma noite em que se divertiu nos pesadelos efêmeros e frágeis, descortina um céu azul limpo onde as nuvens esqueceram de passar.
-- Isso: vou escrever sobre pitibiribas. Sempre achei essa palavra sonora e límpida, extravagante e simples. E soa como zunido de abelha, dessas que vai de flor em flor a voar e flanar no ar.
Na contramão da ladeira e na rota que se aproxima do sol que brilha amarelo e lilás, um casal de idosos caminha de mãos dadas. Diante deles, duzentos anos se espelham e se empoeiram vertiginais. Do tempo dos castiçais a iluminarem as noites madrigais, ambos passam por José sem lhes responder o bom dia. Talvez o aparelho de surdez tenha ficado sem pilha. Pouco importa. Na casa branca da esquina a porta se abre. É hora de sair para trabalhar e suar pelo pão nosso de cada dia. Um périplo de mendigos também se esvai das calçadas em marcha das migalhas que esperam cair das mãos de algum pecador. Afinal, só este sabe o que é dor.
-- Como é bom ficar lúcido e beber o frio que sai dos dias juninos. Mas, pensando bem, o que melhora? A vida permanece a mesma, só que sem a graça da loucura que as notas e os goles dão. Quer saber: foda-se, hoje eu vou beber!
Aos poucos a luz toma conta de tudo. Os postes, automáticos no seu desligar assim que já são desnecessários, se deixam escuros e soturnos. Até o entardecer servirão apenas para um ou outro pássaro descansar suas penas calejadas e cagar só pra pintar de verde e marrom o alumínio que Plínio, funcionário terceirizado da empresa de luz, irá ter que um dia limpar.
-- Acordar nas cinco da matina até que é bom para a retina...
Apressada, uma doméstica atrasada para o trabalho não entende tal alegria de José, mas lhe dá bom dia. Deve ter pensado que doido a gente não deve contrariar. O mundo devagar já começa a rodar igual e fetal, fatal para alguns, nascedouro de emoções e unções para tantos mais. Já não há luz de cores diferentes que possam brotar a rodar nas pupilas ou púlpitos. É tudo somente claridão. Imensa, gigante, cheia de luzidias razões para caminhar, sonhar, continuar, renascer e logo depois cair na cama quente e ressonar.
 
(Sorvam o som de Chicas)

sábado, 26 de julho de 2025

Outrinha felizinha, com Caetano e filhos

Por Ronaldo Faria



Bustamante, amante colérico eclético, estava casado com Clotilde, besuntada de mel e lua. Diria até que era algo que não há palavra apalavrada para cultuar ou explicar. Era! Apenas era, feito hera que nasce de repente num rompante. Isso bastava.
Eram casal acasalado no maior primor, mesmo tivesse ele voz anasalada. Meio gordinho e fanho, ex-favelado largado, alargado pelos aros de luz que chegam logo depois da escuridão nos buracos do teto de zinco, Bustamante sentia-se órfão infindo nos braços de Clotilde.
Ela, donzela de um cavaleiro só, dessas que zela seus orifícios apenas para o amado, vivia a sambar no lar. Mesmo com sua vida fora das paredes, como benzedeira da paz, Clotilde vivia a vida a brincar de vestido que rodopia na barra que a saia faz subir até o joelho no luar.
Loquazes, algozes de si mesmos, feito amor a esmo, brincavam todas as noites como animais que convergem num açoite à volúpia que a coruja, atenta, tenta decifrar. Viram uma meiose que o poeta, na sua ignorância bíblica e real, sabe lá o que pode ser ou será. “Meinha pode ser?” – pergunta o depravado que Carlos Zéfiro fez feliz em gerações de um século atrás.
Viventes e crentes, emergentes de lembranças infindas nas findas esferas que as mais bestas feras entrelaçam nos pesadelos noturnos, eram um só. Sem dor e nem dó. Caçadores de urgências frígidas, frágeis seres, volúpias efêmeras, sabiam traduzir a vida. Crianças cruas naquilo que o mundo traz e dá, eram e são anciões nas loucuras que as agruras de cada dia deixam como semente para brotar.
Logo, se amaram e se jogaram nos precipícios que nem os prepúcios ainda virgens sabem onde vão adentrar. Entre lábios que se misturam de bocas e línguas e aqueles que ficam escondidos nas pernas da mulher, foram em desterros a se entregar. Onde? Em qualquer lugar. Afinal, quando você tiver vontade de se largar, faça-o. Face na face. O resto, proscrito céu com gosto de mel, saberá criar nuvens fugidias à loucura do amor. Senão, valeu a intenção no tesão que nesse momento, feito minueto, é apenas sentimento de Orfeu.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Na vibe de Vander Lee

Por Ronaldo Faria



Cego em seus egos vesgos nos périplos, Gumercindo vociferava a lavra de quem caminhava entre nuvens ou preamar. Na canseira de se achar, proliferava matizes no que hoje se chama expertise. Experiente nas estradas famélicas que nem as velas sabem iluminar, brinca de brincar na irreal crença de ser ou estar. Nos goles de cachaça rechaça a tristeza que teima em chegar para se aconchegar.
De olhos vívidos e brilhantes, borbulhantes, Catarina tinha nas retinas a mansidão. Entre a vastidão do mundo e a devassidão da vida, ia no seguir de ir e vir. Na prece de quem não tem pressa, passeia incólume na luminosidade da cidade que vive, gira e roda. Dá mil cambalhotas. Deixa versos jogados no chão em reviravoltas. Se entrega. Ou será entrega-se? Para ela, pouco importa se tiver de cruzar mais outra porta.
Agiota de voltas e reviravoltas, Gumercindo é talvez mero pretérito imperfeito, seja lá o que isso for. Na dor do analfabetismo do destino, sabedor de sua ignorância plástica e lacônica, platônica quiçá, segue agora no torpor da hora.
Menina que surge feito crisântemo que flora e aflora lá fora, onde achamos enxergar, Catarina cata sílabas e gestos, tece frases e versos, caminha no alvorecer. Na sua estrada calcinada em que o silêncio é nada, apenas surge em todo esplendor.
No fim, enfim, na efeméride que se escreve sem saber, se juntam e se untam de paixão. E fica apenas o poeta, apostata de qualquer fé, a viajar nas suas trevas que se entrevam e se entregam no muito que parece ainda pouco em toda imensidão.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Predestinação na procrastinação

Por Ronaldo Faria


-- Angélica, onde está você? Cadê aquele amor que invadia a madrugada e viajava pelos mais loucos lugares e camas desforradas como rosas defloradas no vento para o nosso alento? Que fim levou nosso amor? De herança ficou apenas essa infinita dor?
Wanderley, parado diante do sinal que piscava vermelho para o carro da cena parar, viajava na maionese própria, antípoda da felicidade. Amante que já fora arfante entre lençóis do antes de sóis, seu caminho era hoje um descaminho franzino. Pequeno diante das mágoas do mundo e gigante na solidão sempre a renascer, quase menina.
Andarilho de estribilhos, equilibrista de trilhos, mergulhava nas próprias palavras para tentar se fazer entender. No cerzir de atalhos, caminhava na busca de ser. Ébrio contumaz, pouco ou nada loquaz, vivia nos seus oceanos a tentar algum porto de continente qualquer alcançar. De bússola, seu soluçar. Logo ali, na esquina onde se escondia a próxima sina, a luz solidária do olhar perdido. No anhangá em todos nós, nós que se desatam na madrugada escura.
-- Angélica, em que deriva de maré a tua jangada se desfez e adernou na dor? E me deixou aqui, grumete de nenhuma viagem a buscar alguma galé. Aonde navegar? Em que tormenta naufragar? Talvez no mar infinito em díspares rotas de insensata imensidão.
Sabendo-se eterno catador de conchas tronchas e quebradas, com os pés da amada ali do lado, dança agora um fado. Sem par. Para Wanderley, o mundo é globo sem lei. Mas, talvez, a da gravidade exista na grave verdade do mar que não despenca universo a fora. E assim ele vai. Grandiloquente sem a trema que dava sabor à trama de escrever. Na taberna quente onde faz a verve verdadeira transpirar, suplica por sirenas, sereias ou até a sirene de ambulância que traga Angélica, mesmo estropiada e escalafobética, para sua parca fonética. Mas, como todo canto ou conto barroco, virou somente mais um escritor escroto para quem é aquele que não sabe sequer ler.

(A ouvir Vander Lee)

domingo, 20 de julho de 2025

Ray Charles, a essência musical de um gênio *

Por Edmilson Siqueira



"The Classic Years", de Ray Charles, é mais do que uma simples coletânea de sucessos: trata-se de um mergulho profundo nas raízes da genialidade musical de um dos artistas mais influentes do século XX. Lançado como uma compilação retrospectiva, o disco reúne gravações fundamentais da fase mais prolífica e inovadora de Charles, principalmente entre o final dos anos 1940 e início dos anos 1960 — período em que ele moldou o rhythm and blues e abriu as portas para a soul music como a conhecemos hoje. 
Ray Charles Robinson nasceu em 1930, em Albany, Geórgia, e perdeu a visão ainda na infância. Essa deficiência, no entanto, jamais limitou seu talento. Ao contrário, parece ter aguçado sua sensibilidade musical. Em The Classic Years, podemos ouvir como sua voz encorpada, muitas vezes rouca e visceral, expressa uma gama emocional raramente alcançada por outros cantores de sua época. Seu canto ia do lamento do blues ao êxtase do gospel, passando pela suavidade do jazz e pela força pulsante do R&B. 
Um dos maiores legados de Ray Charles é sua habilidade ímpar de fundir estilos musicais distintos. Tanto que começou com blues, passou pelo country (gravou um disco inteiro só com pérolas desse gênero), namorou o pop (gravou Beatles) e era um jazzista sensacional, tanto com seu piano, como na composição e no canto. 
E era um pianista sofisticado, fortemente influenciado por Nat King Cole e Art Tatum, o que fica evidente nos arranjos elaborados e nas passagens rítmicas precisas ao longo dessa coletânea. 
Carismático, mesmo nas gravações de estúdio, sua performance parece ao vivo, cheia de energia, risos e espontaneidade.  
Além disso, embora o disco não seja explicitamente político, é impossível ignorar a importância cultural de Charles como artista negro num período de segregação racial nos Estados Unidos. Sua ascensão ao estrelato, sem abrir mão de sua identidade e de suas raízes musicais, foi um marco de resistência e afirmação. 
Seus biógrafos assinalam que "The Classic Years" também funciona como uma janela para compreendermos o impacto duradouro de Ray Charles, destacando que ele pavimentou o caminho para artistas como Aretha Franklin, Stevie Wonder, Marvin Gaye e tantos outros. Sua coragem estética, sua capacidade de inovar sem perder a conexão com as tradições afro-americanas, e seu virtuosismo técnico tornaram-no um ícone. 


Em 2004, poucos meses após sua morte, o filme "Ray" reacendeu o interesse por sua vida e obra, apresentando-o a novas gerações. Mas é em coletâneas como esse "The Classic Years" que seu verdadeiro legado pode ser sentido: não como lenda distante, mas como artista vibrante, cheio de vida, paixão e criatividade. 
Muitos críticos consideram que Ray Charles, mas foi ele quem os uniu de maneira singular e revolucionária o rhythm and blues, o gospel, o jazz e o soul. "The Classic Years" não é apenas uma compilação — é um testemunho histórico e emocional de um artista no auge de sua criação. Cada faixa ecoa com a força de quem cantava com o coração, tocava com a alma e vivia com intensidade. É um disco essencial para qualquer amante da música, e uma prova viva de que a genialidade de Ray Charles permanece tão impactante hoje quanto foi em seus anos clássicos. 
O disco é composto por 14 faixas, 9 das quais de autoria de Ray Charles.  
- Baby Let Mew Hold Ypur Hand (R. Charles) 
- Kiss Me Baby (R. Charles) 
- C. C. Rider (Traditional) 
- I Wonder Who's Kissing Her Now (Howard e Adams) 
- I'm Going Down To The River (R. Charles) 
- All To Myself (R. Charles) 
- Sitting On The Top Of The World (Carter e Jacobs) 
- Alone In The City (R. Charles) 
- Ray Charles Blues (R. Charles) 
- Rockin' Chair Blues (York) 
- Can Anyone Ask For More (York) 
- Baby Tell Me What You've Been Done (R. Charles) 
- Hey Now (R. Charles) 
- They're Crazy About Me (R. Charles) 
Há outros discos de Ray Charles na praça com o mesmo título ("The Classic Years"), com músicas que fizeram mais sucesso nos anos 70 e 80 do século passado. Há inclusive uma caixa com 3 CDs que deve abranger a obra de Ray Charles de forma mais completa. O CD comentado aqui, como já disse, trata mais de suas origens, quando ele se firmou como um artista completo na arte que se propunha: compor, tocar e cantar.  E, claro, no Youtube há inúmeros discos completos ou singles para se ouvir do genial Ray Charles. 

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

No cantarolar

Por Ronaldo Faria


 
A cidade, na sua idade antropológica e própria decadência, se esfacela e se esfarela feito quirela de pão. Quisera sabe dizer que tudo terminará em procela. Mas qual... Num quarto e sala, João se apropria do passado e corre feito louco das lembranças de infância. Nessa instância, o psiquiatra junto com o geriatra diriam: “Interna, é caso perdido”.
Mas João não liga para a essência de ser hermafrodita. Na desdita, se entrega ao desdém da vida. Vinho português na taça, traça a comer seus alfarrábios, viaja nas letras e versos. Faz-se reverso na crença de que estará ao amanhecer, como disse o poeta, pra lá de Marrakesh. “Amanhã a gente vê a merda que vai dar”.
Incenso de arruda aceso, dois novos santos africanos no santuário (uma com a navalha que corta o mal e o outro que faz novo ciclo chegar no tempo), na certeza de pesadelos logo mais, João se embrulha solitário feito sabugo na palha do milho. “Vim só caminhar nesse mundo e só irei embora.” Lá fora, o aforismo de falácias e dramáticas histriônicas histórias. Atônitas, células dançam um tango/bolero qualquer.
Na cidade, cheia de iniquidade e dramaticidade que enche o roteiro de amantes e poetas, homens e mulheres se juntam, se separam, reparam que estar junto pode ser coisa boa ou mazela. Na esquina, quimera de prosopopeia, um personagem que por obrigação da rima se chama Zélia.
 
II
 
A rabeca faz a prece fluir feito chama ao luar. E sublima a miragem selvagem que se entorna no copo profilático e alcoólico. No andor lunático que o andar dos graus dá, viajar de flores despetaladas que dormem suas cores no chão. De antemão, o cuidado nas travessias do amanhã. Estrábico e analfabeto em matemática e física, nas distâncias entre as entranhas e os carros que correm no asfalto, que venham os anjos dos sonhadores. E sejam prestos em gestos e destinos. E logo e portanto, em tão pouco pranto, que o desatino diuturno e frugal mantenha no planeta mais um dia esse animal.
 
III
 
Blasfêmia à fêmea? Jamais. No meio de um jardim de antúrios e florais, Vespúcio sabia que o encontro do sol e da lua é mais do que uma simples conjunção de astros. Nos astrolábios da navegação que busca a felicidade, a bússola aponta para a saudade. Ínfima infâmia da artimanha que se entranha no cair da tarde lilás, luxúrias se transmutam feito perda de lucidez mordaz. Loquaz, a realidade brinca de ser sem sê-lo. No passado, o homem lambe o selo à espera que a amada responda logo em sequência hedionda, quiçá capaz.
 
IV
 
-- Sortuda a peituda. Soube escolher o louco certo!
Chico sem sobrenome deu sua sentença. O resto logo irá virar resto sem opção ou oração, senão.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Pra esquentar

Por Ronaldo Faria


 
-- Pelo amor de Deus, canela de pedreiro não!
O pedido de Gusmão fora tão sofrido e verdadeiro que Cícero, garçom do lugar, atendeu o desejo.
-- Tudo bem. Peguei uma que tinha acabado de colocar no freezer. Tá quase na temperatura ambiente.
-- Obrigado, meu irmão! De coração!
Gusmão, parceiro de copo de Felismino, que tinha faltado na retreta por estar gripado, pega a garrafa, enche o copo e derruba tudo de uma talagada só. Feliz por tudo na vida ter feito por amor, quer agora apenas um momento de torpor sem dor. Pede um podrão onde tudo é pouco pra tanta fome, come em dentadas plenas e se propõe: “Amanhã vou caminhar, com ou sem calor.”
-- Cícero, meu velho, fecha a conta aqui!
-- É pra já, patrão!
Gusmão se levanta, aperta a mão do comparsa de bebedeira, mesmo cada um do seu lado do balcão, e sai a sorrir na madrugada escalafobética. No alfabeto que lhe repassa no cérebro que ainda está e há, brinca de chutar uma lata perdida no asfalto. Do alto do prédio, um ser enfronhado no seu próprio tédio diz que não é hora de cantar. Ele não liga. Na verdade, religa o celular e chama o número de Felismino só pra dizer que a gripe é uma merda e os goles perdidos nunca mais voltarão. Lembrou ao amigo que seria bom tomar um Voltaren. “Ao menos a dor tem que parar”. Espera o sinal abrir para os raros pedestres e, pé antes e depois do primeiro pé, caminha até sua casa, aonde com a solidão irá se agasalhar e acasalar. Mas, ao menos, trêmulo de quase hipotermia, sabe que conseguirá dormir. No frigir dos ovos, haverá mansidão. Na devassidão que a solidão dá, sabe que meio metro de concreto vale mais do que quilômetros de um dia que não mexe sequer o catavento.
 
(No final com o Chico Buarque)

terça-feira, 15 de julho de 2025

Charlie Byrd e a música brasileira *

Por Edmilson Siqueira


 
Que a bossa nova encantou os músicos de jazz dos Estados Unidos todo mundo sabe. Eles não só gostaram muito do que ouviram, como perceberam ali uma vertente jazzística digna desse nome. E, claro, entraram com tudo naquele "jazz" malemolente com lindas melodias. 
Charlie Byrd foi um desses músicos que se apaixonaram pela bossa nova. Mas ele foi além: Em 1961 veio ao Brasil, comprou, ou ganhou um monte de discos, participou de várias sessões com músicos brasileiros e voltou ao Estados Unidos carregados de boas lembranças daqui e disposto a transformá-las em disco. 
O disco acabou saindo em 1965 e se chama "Brazilian Byrd", com arranjos de Tom Newson, um saxofonista que também passeou pelo Brasil em 1962, com a orquestra de Benny Goodman e adorando a música brasileira que conheceu.
A gravação, só com músicas de Jobim e vários parceiros, acabou representando um dos momentos mais marcantes da união entre o jazz dos Estados Unidos e a bossa nova brasileira. Com arranjos refinados, técnica impecável e uma sensibilidade rara para os ritmos e harmonias do Brasil, Byrd mostra nesse álbum sua profunda admiração pela música brasileira, em especial pela obra de Jobim e seus parceiros que formaram a espinha dorsal da bossa nova.
Charlie Byrd não foi o primeiro músico norte-americano a se encantar com a música brasileira, mas foi um dos mais importantes na sua difusão no cenário jazzístico. Foi ele, inclusive, o responsável por apresentar a João Gilberto e Tom Jobim ao saxofonista Stan Getz, o que culminaria no antológico Jazz Samba (1962), um dos discos mais vendidos da história do jazz. "Brazilian Bird" é, em muitos aspectos, uma continuação desse projeto: fazer a ponte entre dois universos musicais distintos, mas complementares. 
Charlie Byrd era um guitarrista clássico de formação, com influência direta da escola espanhola e do violão erudito. Isso conferia a ele uma abordagem única dentro do jazz, que normalmente era dominado por guitarristas com palheta e linguagem mais próxima do blues ou do bebop. Ao tocar com os dedos, Byrd conseguia um som mais quente e articulado, ideal para as sutilezas da bossa nova.
 

Em Brazilian Byrd, ele evita o virtuosismo exibicionista. Seu foco é na melodia e na dinâmica. Cada nota soa clara, pontual, com atenção ao fraseado — como se a guitarra respirasse junto à música.
O álbum surge num momento de grande fascínio da cena de jazz norte-americana pela música brasileira. Nomes como Cannonball Adderley, Dizzy Gillespie, Herbie Mann e Paul Winter também estavam experimentando fusões com a bossa nova e o samba. Mas, entre todos, Charlie Byrd foi o mais consistente e talvez o mais respeitoso nas suas releituras. 
Diz a crítica especializada que "ao longo dos anos, o disco ganhou status de cult e permanece como um dos melhores exemplos do que hoje se chamaria de world jazz. A abordagem de Byrd influenciaria não apenas outros músicos de jazz interessados na música brasileira, mas também guitarristas brasileiros que perceberam, com ele, novas possibilidades para o violão dentro do jazz."
Assim, "Brazilian Byrd" é um álbum essencial para quem deseja entender como o Brasil entrou para o mapa afetivo do jazz internacional. Mais do que um disco instrumental, é um gesto de amor e reverência, em que um músico americano, com talento e sensibilidade, consegue captar a alma brasileira em sua forma mais musical.
São essas as 13 faixas (uma delas é uma gravação alternativa):
Só Danço Samba (Tom e Vinicius de Moraes)
Corcovado (Tom Jobim)
Este Seu Olhar (Tom Jobim)
Garota de Ipanema (Tom e Vinicius de Moraes)
Samba do Avião (Tom Jobim)
Engano (Tom Jobim e Luiz Bonfá)
O Amor em Paz (Tom e Vinicius de Moraes)
Dindi (Tom e Aloysio de Oliveira)
Canção do Amor Demais (Tom e Vinicius de Moraes)
As Praias Desertas (Tom Jobim)
Samba Torto (Tom e Aloysio de Oliveira)
Se Todos Fossem Iguais a Você (Tom e Vinicius de Moraes)
Engano (Tom e Luiz Bonfá - gravação alternativa)
O CD pode ser encontrado por aí, nos bons sites do ramo e pode ser ouvido no Spotify (https://open.spotify.com/intl-pt/album/1gPDlIt0HuXWNN9GDDItPu) e no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=s9SxWBm_WM8). No Spotify está completo. 
 
*A pesquisa para este artigo foi feita com auxilio da IA do ChatGPT.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Friorento e acalantado

Por Ronaldo Faria


Faz frio. O corpo tem arrepio e não se ouve da coruja sequer um pio. Ela está entocada numa toca qualquer, a tentar agasalhar seu pé. Na rua, casais se agarram e se juntam mais do que o normal, como fosse junho o início de mais um Carnaval. Quem sabe a roçar pernas e braços, com tantos alentos e enlaces, aconchegos e abraços, não se consiga fazer a noite perpetrar o resto de sol e fazer o mundo esquentar? Mas qual, na Terra não há mais lugar para anjos. Os demônios que passeiam nas esquinas e camas fazem da lua seu réquiem e ruminam a estapafúrdia certeza de que não vale a pena viver.

As janelas fechadas para as fachadas cinzas e cheias de concreto armado parecem armas prontas para dispararem no disparate que vem a cada gole de vinho tinto. A tintilar nalgum lugar perto, moedas caem do bolso do avarento que deixou de pagar a conta de luz. Sem aquecedor, vive a bater seus dentes e ranger ossos na plena dor. O odor em volta é de restos de comida carcomida por vermes que aprovaram o fim do frio no congelador. Deitado no sofá, soturno e alquebrado pelo tempo, Gumercindo é um gourmet da tristeza, quase um comensal. Lá fora, afogada em formas e versos, vive Beatriz.

Desejada por todos aqueles que a conseguem ver ou enxergar, está a ler um livro de poesias, desses que se lê junto com café quente num boulevard. Quase desnuda, sob as cobertas que chamam de edredom, sente sua pele tocar o cetim que serve de lençol. Seus raros pelos brincam de levantar numa estática e elétrica estética a quem gostaria de estar ali, a servir de calor à falta de pudor. Beatriz, que Michelangelo teria esculpido em tamanho real e desejo irreal, sabia que vive nos sonhos e pesadelos de homens e mulheres mil. Mas, agora, na fria noite que se atira gelada, é apenas um pedaço de sina.

“Cretina, por que me deixou?” O grito de Evangelista sai de uma lista de impropérios etéreos que surgem da sua garganta seca e perdida na derradeira mesa de um bar. Ébrio desde menino, famélico e magrelo, se fosse visto de lado ninguém o enxergaria. Aliás, mesmo de frente, bem defronte que seja, ninguém o vê. Mas ele não liga mais para isso. Submisso às lembranças de infância, refém do amor de Maria, é outro Zé na fila do bonde que há muito deixou os trilhos enferrujados. Penitente renitente de uma oração, dessas que se recita nas procissões, apenas espera o garçom expulsá-lo do lugar.

Mas na boate que funciona no meretrício em tênue luz vermelha plena de devassidão, Joana gargalha ao último freguês. “Esse albanês é uma besta de pinto pequeno!” Bento, segurança do local, ri também. O turista, de nome Vasil (não vaselina), sequer entendia o que os gentios falavam. Feliz pela noite tragada e entumecida, pagou em dólares e partiu. Seu navio iria sair logo no amanhecer. Para Joana, a trama tinha findado. Era hora de tomar mais um trago, por conta da casa, seguir para o subúrbio e dormir. A névoa gelada ao derredor não sabe ver ou ler a sua dor. Daqui a pouco, novo retomar do mundo louco.

Um dia Gumercindo encontrou Joana a trabalhar e logo descobriu que era nela e nas suas pernas que seria feliz. Catou cada vintém que tinha escondido debaixo dos tacos de madeira e entregou um a um à sua nova amada. Ela, estupefata com tal querer, adotou o homem e prometeu morar com ele, desde que esse pagasse a conta atrasada da Light. No dia seguinte, na fila do Serasa ele estava lá. Já Evangelista viu Beatriz numa livraria tosca na busca de nova leitura atávica. De lado, para que ela não o enxergasse e se assustasse, não acreditou na cena e demasiada beleza. De repente, ela lhe tocou o ombro: “Sabe onde eu encontro Baudelaire?” Foi amor à primeira pergunta e o esquecer eterno de Maria.

Hoje os quatro vivem os dias frios a trocar cobertores, chaves de aquece/esquenta no chuveiro e brincadeiras que surgem depois de garrafas de vinho, conhaque ou bourbon. No interior da metrópole que aos poucos vira acrópole, vão tocando seus dias entremeados de madrugadas onde cada respirar faz fumaça das gargantas brotar. E o tempo e os minutos passam no relógio, perpassam novos aniversários e a certeza de que a esteira da história não para de rodar. Lá de cima, bem acima do celeste luar, alguém ri de seus personagens e daquele que, quando o sol chegar, estará a descobrir como nova ressaca suprimir. 

(Ao som de muitos músicos e canções)

sábado, 12 de julho de 2025

Edu que foi e eu logo me acho lá

Por Ronaldo Faria

Juninas festas febris, sânscritos escritos do nunca fim, desvairados horizontes etílicos e tresloucados, fadados a submergir nas ondas que a Zona Sul traz a iluminar contábeis contas e vidas proscritas e desditas. No corre da vida, fatídicas e idílicas saudades. Maldades e catarses, insolúveis ideias. Panaceias da doutrina efêmera de seguir àquilo que será. Paráfrase daquilo que for na fuga da louca que queremos ver se salvar. Antes de nós seja ela o melhor amor a viver no amor maior. Cravo e canela naquilo que pode ser o próximo luar, na loucura desse mundo tresloucado que pede a saideira. Aliás, quem não pediu ou bebeu uma saideira (ou foi presenteado com ela) não terá vivido nesse mundinho. No gratinado de qualquer carne, no seu cheiro cheirado, esmero brejeiro, a solução do efêmero centeio. Em rimas trazidas sabe-se lá de onde, a certeza de que os instrumentos brincam de versejar.
-- A todos nós, loucos no tempo que a terra deu pra estar, a certeza de que cada ressaca valeu o tempo que se fez em si, sem invólucros, estar.

(Ao som do Edu Lobo, ainda aqui)

Algo mais com Cannonball Adderley*

Por Edmilson Siqueira Pensa num disco que soa moderno, mas que foi lançado há 67 anos. É disso que se trata esse "Somethin' Else...