Por Ronaldo Faria
Ela, Clementina, tinha o mesmo
sobrenome do marido – Silva Camões. Coisa de casal antigo, em que a mulher
virava posse lavrada em cartório do marido. Na pose do tempo do porta-retratos,
um possesso tormento das frágeis ilusões de cada um. A casa seria quase um casebre
se levarmos em conta o jeito rotundo com que ela se espelhava diante da linha
de trem que carregava as pessoas à sua tragédia, quase comédia, de viver para
trabalhar e minguar. Mas nessa casa, construída nos Anos 40 do século que já se
foi, Clementina era um ser clemente de vida, temente da sorte, ciente de que o
ser humano é mais um mero vivente.
Seu marido era Astrogildo. Astrogildo Soares da Silva Camões, escrevente num escritório de contabilidade no Centro da cidade. Antes, na juventude, tinha sido professor de datilografia numa escola do subúrbio – Time Is Money. E anteriormente era engraxate de sapatos na Estação Leopoldina. Ali, entre cruzeiros velhos, apitos de locomotivas e fumaça de lotações com seus escapamentos cinzentos, sonhava em viajar. Conhecer o Brasil, juntar sabores e odores, sotaques e suores, olhares e toques noturnos em bares e biroscas. Mas o tempo passara e ele ficou por ali mesmo, a seguir a Avenida Brasil a torcer para fugir dos tiroteios matinais. E dizia a si mesmo: “Já está bom demais”.
Eram um casal como tantos outros milhares, feito espigas de milharal que servem de pombal aos pássaros sem lar. Há muito não faziam amor, se é que um dia o tenham feito. Afinal, amor é coisa de dois iguais, como animais. E Clementina e Astrogildo eram partes diferentes do astrolábio a indicar a direção das estelas que costumam brilhar nos céus surgidos quando as paixões urgem maiores que o destino em comum. Logo, apenas eram. Erráticos no seu dia a dia, diários na rotina redundantemente igual, díspares seres que nunca deveriam ter se juntado. Mas Astrogildo a vira numa noite já bêbado, nos raros percalços daquele jovem descalço, e Clementina, perto de ser apenas a tia preferida, achou que era a hora de sair da surdina. E se juntaram e deu no que deu: um constante adeus mesmo sob o mesmo teto.
Mas, tão abrupto como o cocô
de pomba que lavou o busto do marechal, o destino resolveu a questão de forma
quase informal. Foi quando um périplo de crentes, desses chatos que acham que ninguém
dorme e batem palmas logo quando o dia ainda raia, chegou ao portão de
Clementina e Astrogildo. “Podemos falar a palavra do Senho!” – disse o crente
mais velho e fanho, sem o mínimo brilho no olhar. Clementina, que não tinha
mesmo muito com quem falar, aceitou ouvir a ladainha. E se sentiu rainha por
ter um bando de mequetrefes à sua frente. Ouviu com tal atenção que queimou o feijão.
Enquanto isso, Astrogildo terminava outro dia de batente. Desceu as escadas do prédio
de escritórios com seus notórios amigos de trabalho, todos suados porque o proprietário
do lugar não tinha mandado consertar o ar-condicionado, e pegou o ônibus para
voltar ao lar. Viu as mesmas ruas, a mesma avenida, o trânsito lento, o tráfego
interrompido por causa do tiroteio na Maré, as orações do passageiro do lado
para a bala perdida não o achar. Chegou cansado, com vontade apenas de um banho
e de um prato de comida junto com uma dose de cachaça. Mas qual, Clementina
tinha ido para o templo honrar a Deus, convencida pelo pastor que precisava de
nova ovelha para o dízimo doar. Diante de uma panela de feijão queimado e
esturricado, Astrogildo, sem entender o sentido daquilo, pôs-se apenas a chorar.
Nos trilhos defronte, outra composição passa a levar vidas e ilusões.

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