quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Os Cariocas...

Por Ronaldo Faria

 Amanhã promete ser de 26°C. Dia quente para um inverno que no passado fazia fumaça sair dos lábios e nariz. Dia a mais, ademais. No calendário sedentário, dromedário a caminhar num deserto que há muito acabou. Só falta o beduíno de uma Copacabana qualquer entender.


A voz escrita mostra que o que foi ficou para trás. As vozes na vitrola, em quarteto vocal, mostram apenas que a noite é a porta aberta para mais uma embriaguez, dessas que chegam depois de um tempo que nem mesa de bar acredita ter existido. No calçadão, o homem dá adeus à mulher e entende que o vaticínio daquilo que vai escorrer nas ondas do mar é a maior verdade. Com o destino não há como lutar.

-- Mas, por que Carmem?

-- Sei lá... a vida quis assim. Talvez o destino também quisesse. Acho que nos faltou entender. Saber que a vida é volátil. Acho que foi isso. O real se foi.

-- Mas que real? E o sentimento, onde ele fica?

-- O sentimento é só poesia. A realidade é que manda na vida. Quer saber: foda-se o sentimento! Se lamento? Lamento. Mas tem uma realidade a seguir. E essa é o nosso porvir.

Antônio larga o chope na mesa, paga a conta e sai na madrugada a pisar a areia da Zona Sul. À frente não vê o Dois Irmãos, o Vidigal ou o que seja na escuridão do morro que cobre a subida da Niemeyer. Anda sem destino, em pleno desatino de quem sabe que amanhã terá uma ressaca que não virá do mar. As ondas continuam iguais no seu ir e vir desigual. Espuma a mais ou não. Tanto faz.

Ao caminhar na sua própria ilusão se dá ao absurdo de crer que a felicidade um dia virá. Mas, ao cair no mínimo de lucidez, sabe que o fim de tudo será um caminho em descaminho, uma inércia temporal que cabe em cada bonança que chegará após a chuva despencar em violência na leniência final. Trôpego, Antônio chega até a ponta do Leblon. E agora? Voltar até o Arpoador ou seguir até onde der? Sem resposta presta, deita na areia e olha para a lua que brilha silenciosa no céu. E agradece o que viveu, padece a ilusão que o tempo dá e se doa ao tempo que ainda resta. Num canto da Delfim Moreira um louco de fumo dá um grito cenográfico: “Que o que sobra não sejam sobras de um sombrio meio fio!” Depois, chapado, deita na calçada no frio...

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Pavilhão 9 em dois

 Por Ronaldo Faria


Grilhões e celas a enjaular e virar o lar. A poucos que sobreviveram aos pipocos. Às idas ao hospital e, no caminho, falecer. Que tiveram esperança, querência, conjuminância entre ser e poder ser. Coisas mínimas e atípicas, trapizonga de si mesma. Quem sabe uma pele escura, a curra da existência, a cura errática e imprevisível daquilo que nem sofrível é. Ao longe, a longitude de trilhos de trem, ruas de terra, esmeros que sucumbem a cada alvorecer. Um tanto de contas a pagar, filhos famintos a afagar, prenúncios de violência explícita que jornais nunca detalharão. Quem sabe um poeta do rap lembrará a cena – tiro primeiro e saber por que estava ali depois. Só que aí, largado num buraco em terra, sem nome ou quimera, nada mais será. Sem adeus, sem história, sem foi ou será. Como disse o poeta, gente boa, gente má, gente inocente. Muitos gementes. O que, ao final, terão dito?


sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Pavilhão 9

Por Ronaldo Faria


Aonde irá parar a violência que nem a ciência da mais próspera chegança dá?

 Ele caminhava quieto e único na via empoeirada e escura que vai dar nas quebradas. Pouco pensava. Sua cabeça endoidava a cada puxada. A brisa exalava o pouco que restava da rua, na moral. Casebres de poucos metros quadrados enquadravam as cenas que nunca serão guardadas nos olhos de quem não enxerga além das pálpebras. Em cada espaço há vidas, ávidas de serem reais além das páginas policiais.

Na estrada que se faz estardalhaço em um 190 qualquer que põe a sirene a gritar, passa um camburão que carrega preconceitos e balas prontas para disparar. Ele não estremece. “Nada devo, ou se devo não sei. Aperte o play”. Vai devagar, com um passo a cada próximo passo que pesa nos pés. É foda seguir os rumos em desaprumo que a vida dá. Mas ele segue. Exangue, cumpre a complacência de cada dia no bagulho.

Logo estará a chegar. Mas, a qual lugar? Se tiver onde deitar, largar o corpo cansado e passado, já está bom. O dia foi marrento, quase sangrento. Ponto a bater, salário mínimo a ver, esperança de virar o jogo a perder nas quatro linhas do crer. Mas não há que se desistir. Algum dia o vir há de vir. Acreditar é preciso, assim como retirar o siso nunca nascido e que um dia irá apodrecer e doer feito filho pródigo e nascituro.

Assim, nessa chegança qualquer, avista a casa de reboco à vista. “Um dia termino a obra”, pensa pra si mesmo, a esmo. E acelera o passo, quase descalço do chinelo grudado com prego. Sabe que um dia o dia amanhecerá distinto. Senão, basta apenas olhar no horizonte, naquele monte de nada que se vê. O importante é seguir a rima, o rumo, o prumo. Como diz a rima, cabeça vazia é a oficina. Quero somente uma vacina.

Ao chegar, abre a porta. Entra no quadrado presto, quieto, sombrio e funesto, Acende a luz, abre a geladeira a gelar poucas cervejas e algumas coisas rasteiras. Acende um do bom e dá boas vindas para a próxima jogatina. Sabe que pouco haverá amanhã. Mesmo acordar, ônibus cheio igual, patrão filho da puta a achar que faz tudo na moral. Antes de apagar, ora aos santos e exus e pede apenas que Deus exista ao menos no final.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Na pedra azul do Paulinho

Por Ronaldo Faria


O rio corre quieto nos vórtices que a natureza dá. E brinca de viver entre as pedras que tanto pingaram que até furaram. Nos atabaques que batem sob o tocar forte que sangra as mãos, se fazem frenéticos os amantes que buscam onde trilhar na estrada de veias e sangue que o coração dá. Quem sabe uma sala de cinema onde mãos buscam os seios sedentos de mãos, o sorver de línguas que saem das bocas para parear outras línguas famintas, a incerteza do limite entre a morte e a vida.

Vestida de branco, a mulher se despe na pele mais branca e branda ainda que lhe cobre o corpo desejado. E sorri como se o amanhã não pudesse chegar ou se aconchegar no corpo do amado. Como uma febre que nos toma a cada noite e faz os cheiros mágicos da poesia florescer, a branda chave que fecha o coração para novas emoções se quebra e, inodora, junta harmonia e tardia centelha a fugir entre rimas e réstias. Quem saberá se amanhã, em ressaca, não abreviaremos o retorno?

No torno que dá acabamento às letras o poeta perpetra a orgia que um dia teve. E lambe pele e pelos, suga sons perdidos em camas que recebem milhares de desamores e brinca de algo qualquer. À sua lembrança, a mulher. Na inocência da pueril incerteza, a leveza da vida. Essa coisa triste que tem início, meio e fim. Como uma pedra azul a rebrilhar fulgurante no desejo do amante a ser. Do seu canto finito o poeta antevê a brincadeira sem graça que é viver para poder somente sobreviver...

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Astor Piazzolla sobre Vinos y Sonidos

Por Ronaldo Faria

La noche en la calle es breve. Tal vez un auto que pasa con sus faros reflejando uno que otro cuerpo borracho que insiste en mecerse aquí y allá. Tal vez un sonido que brota de cualquier casa de tango, en un bandoneón que recuerda a la amada desvalida llorando en brazos de otro amor. Una lluvia frágil y trágica que lava el asfalto que brilla entre las luces de los postes de neón. De lo contrario, solo el destino demostrando que, a duras penas, rige la vida de cada uno de nosotros. En brazos perdidos, indefensos de tanta soledad, la inmensidad de un mundo que ya no existe. Quién sabe, tal vez en otro mundo, en otra esfera, en la tragedia de una pareja que baila sola en un salón oscuro y vacío, volverá la esperanza. En la mesa repleta de copas de vino, las botellas sorbiendo el aire interior antes de llenarse, el hombre cree que el futuro no pospondrá la llegada del fin. Inolvidable, seguro, finalmente traerá el final definitivo. La imponente verdad que no seremos capaces de ver, sentir o desmentir. Por lo tanto, nos bastará con ser...

sábado, 5 de agosto de 2023

À Sivuca

Por Ronaldo Faria


Um pássaro passa rápido pela ravina. E vem e volta feito saudade que não tem sol e nem sina. Voa como uma nota se denota na música que ecoa perdida nos ouvidos da vida. Brinca de coisa rara, errática, e se espalha pelo espelho que é somente passado a se reviver. A ver o que não foi e aquilo que restou, o homem pensa em chorar mais uma vez. Mas qual, não há o que dizer. A dissonância não cobre a grama seca de fogo e nem o carcará sangra a ovelha que pasta na ravina. O mundo não muda à vontade divina.

No curral, o gado olha bovinamente o povo que passa por detrás da cerca. Longe de lá, mas acerca do problema, o padre pede que a chuva se espraie além do céu para chegar à terra onde o barro escurece a flor morta de um tempo que não floresce. Quantas paixões não deixaram de se embrenhar entre corpos e carícias por causa de uma rapsódia que a orquestra do destino se negou a tocar? Deitado no alpendre, o cachorro velho e fraco vê seus últimos dias ultimarem aquilo pouco que o universo lhe deu.

Mas, na casa de farinha, dedos, suor e braços amparados na grande colher de madeira ceifam de futuro a mandioca ralada e branca que crispa de calor sobre o tacho onde a lenha grita sua última dor. Nalgum lugar um vaqueiro grita para o bezerro fugitivo e cheio de medo voltar. E corre entre árvores secas em que espinhos tentam furar o couro que o protege. Com o bucho a agrar nas esporas, o cavalo segue sua sina. No embate em penumbra que ilumina o resto de luz solar, a saudade de um ou outro, do mesmo lugar. 

“Vem, volta logo, meu corpo e minha sede de beijos te esperam num só esperar.”

Grito de Maria, na caça de pau a pique, a acender o lampião que tenta apenas alumiar e ser...

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Na rapadura e no forró

 


Hoje (ontem para os muitos sonolentos sedentos de cama) foi dia de São João? Bem provavelmente foi. Portanto, uma cerveja de rapadura após tantas transgênicas nada melhor. Em flor, a frágil e frígida dor parece sumir. Talvez um destempero que só o melhor tempero faz surgir num urgir de pouca lucidez e tanta ignóbil rigidez de emoções. Quem sabe um forró de pé de serra, mesmo sabendo que a serra foi serrilhada do mapa. Talvez uma sanfona em desarmonia com a vida, a tocar um baião de saudades mil. Uma certa incerteza cândida e fragilizada como a flor no cabelo da morena que se banha no rio seco que no passado levou o avô que só queria um carneiro para comemorar seu amor de décadas atrás.

Hoje, na oração que junta coração e canção de ver alguém que nunca foi humanamente ninguém, vou cantar o futuro que o tempo não tempera com pimenta e nem lamenta ter deixado partir. Talvez um cavalo desembestado a correr nos pastos cheios de fuligem de um fogo que veio para fazer a vida renascer. Senão, um senão entre o que existe e aquilo que nunca existirá. Talvez um roçado verde e cheio de comer para o gado, um cemitério vazio de anjinhos carregados feito fardo que pesa mais do que a vida possa prever. No antever de algo que volatiliza como fosse apenas um pelo a mais naquilo que pode se lamber. No sorver do futuro, o útero de uma vida que ainda acreditamos poder viver e acreditar. 

Somos seres eólicos e alcoólicos. Tragicômicos e icônicos, restos de esperanças e vestimentas que trajamos para não andarmos nus como rei de fábula nenhuma. Daqui, apenas espero juntar saudade e algo a ser para um momento onde sanfona e folia estejam além da saudade.

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Na noite da música, em Amazon

 


Um batuque batuca e cutuca a cutícula que avilta a cena entre o noturno e o velho soturno que tenta dormir para fugir da vida que foi além daquilo que ele sonhava ou ansiava. Pares parecem permear a prosaica sensação entre o ser e estar. Em meio ao canavial, a eterna dúvida entre o bem e mal. Afinal, há diferença ente o racional e o animal?

 

A escola descia a avenida premida entre o tempo e o vento que vinha do sudoeste. Em presto, o diretor de harmonia harmonizava o furor dos passistas ao pouco tempo para romper a película que passava na televisão. Na visão do casal que dormia no sofá, o sofisma maior era apagar na cama ou tomar outro café. No aparelho 4K o narrador pregava: “Unidos da Manjedoura, vai na fé!”

Na epistola de Paulo (se é que é que ela exista), deve haver algo sobre o gingado da preta a bailar. Seu corpo, em torpor sensual, vaticina algo que possa existir entre ser mulher ou menina. Se nada houver (pensará seu amado na arquibancada), bastará ser muita sopa para pouca colher. Talvez um pouco mais de asfalto, um tanto mais de luzes de neon, quiçá uma ladeira de Olinda a subir.

Nos instrumentos que vertem sobre os excrementos que cada dia nos dá, existe um vórtice que vaticina a felicidade de um domingo à tarde, como a vida fosse brinquedo de contratempo que ainda temos de ver vazar. Nas velas que correm a brisa do mar, a cor que cora o rosto da primeira amada a ver as mãos do amado tocar seus mamilos róseos e incautos, abertos ao primeiro gozo que surge e urge.

Na noite dominical poucos conseguem sobreviver ao manto branco de vestir logo mais. Mas o que fazer se é só no silêncio da noite que se consegue sobreviver a essa mentira apocalíptica que se é viver? Quisera a poesia surgisse com os primeiros raios de sol, mas como soltar as emoções se nem as micções diárias se fizeram provar? O frigir dos ovos do Sol são a escuridão que ilumina a poesia e a solidão.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Fora da Caixa (no Music Amazon Prime)

 


Sem eixo, como um seixo no rio que corre entre dois leitos, o homem rompe o hímen com sua língua que vocifera à vida que ainda existe algo riste que resiste à febre e a cistite. Na noite que brinca de frio e fobia, a fálica orgia solitária se desdobra nas dobras que dobram qualquer esquina como fosse esta a sua derradeira sina. Diante de si, uma vagina, uma próxima angina, uma inebriante mulher, ou apenas Gina. Na cama que se desforra para ir à forra do tempo que se entristeceu, há um limite entre o limítrofe que anda no fio da navalha entre a sanidade e idade imprópria à memória desmemoriada e lacrada para novos amores. Odores perfumam a performance que à nuance do tempo transbordam o tempo que ainda falta se viver. Tudo como uma janela fechada, a ver...

Na insípida perfídia que perfaz cada caminhada de cão sem ninhada, um ninho de pássaro sem ovos a criar passa despercebido a cada olhar. No lugar, um ar rarefeito, feito paixão não correspondida, se interpõe às mesas que trocam brindes e brincadeiras de tocar. Nelas, as mãos se embaraçam de dedos, desvelos, vestes invadidas, toques promíscuos e malversações. No lugar não há lugar para o bem e o mal. Há bons e maus a trocarem sevícias, carícias, lascivas promessas imersas em trocares de olhar. Ao longe, decerto, existirá um pedaço de mar, uma onda a areia a tragar, uma boca a língua a untar. E todos estarão, uníssonos, a gritarem que a vida só vale se for para se a amar. Nalgum lugar possivelmente um ser ausente saberá onde, perdido, ainda chegará...

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Ao rediscover do Gil


 

Amadeu, de quem o amor a Deus esqueceu, vai entre as vielas a violar nos ouvidos o som de violão que dedilha numa trilha qualquer que o morro dá. Assimétrico na métrica que a linha utópica e reta dá para não cair, cambaleia e volta, volteia e se enlameia a cada queda. Mas, logo lá em cima, ensimesmado, chegará na birosca do Zé, o português que, com o lápis ágil, marcava duas cervejas para cada pedida com direito também a uma pinga.

Amadeu, a quem a vida nunca se ateu, cantarola um samba desconexo onde o versículo acalanta a falta de verso. E segue tomate e mamão. Sobremaneira, da maneira que um bebê sem dentes suga a mamadeira, olha para o céu de bruços, no chão. Se levanta, lava-se na poça que sobra na pocilga de um barraco em obras, e transpõe a pequena ponte que se equilibra sobre um riacho que corre coberto de lixo, lombrigas e dejetos em amplexos.

Amadeu, senhor que sabe onde ficam a felicidade e a dor, diz a si mesmo, a esmo, que é melhor estar vivo já morto do que morrer e deixar de viver. “E o amigo que nem sequer quer mais estar junto contigo? É amigo mesmo ou só mais um buraco de umbigo?” Cheio de dúvidas, endividado no morro quase todo, vai pé pra frente depois de meio pé para trás a ver que a lua se escondeu numa nuvem para dormir depois da Terra ter que girar.

Mas Amadeu é isso: um homem a mais. Um derradeiro ser disforme, desses que vira estatística em cada informe de tevê. Que é apenas um número a mais, sequer um úmero a segurar braço qualquer. Falta-lhe um abraço, um maço de cigarros, um amasso na mesa de bar. É somente quem mente a si para crer que vale a pena viver. Amanhã, decerto, terá uma ressaca que nem a maior das ondas do mar traz. Mas, sabe, valeu poder sonhar.

Amadeu, ser andarilho à espera que um trem o atropele, mesmo sabendo que no morro não há trilhos, chega enfim ao fim de sua trilha. Mexe nos bolsos vazios na busca da chave que tranca a porta sem tranca e lembra que é só empurrar a madeira para ver se no seu interior ainda há alguma anca. Deitada na cama, Esmeraldina à luz da lua se descortina no zinco rompido do teto, tem as tetas expostas como postas a se comer. Por fim, vem o fim.

sábado, 22 de julho de 2023

Desterro

 Por Ronaldo Faria


O homem começa a piscar de um olho só. Mas, para onde foi o outro, sorrateiro na noite? Talvez esteja desterrado e enterrado num soneto qualquer. Senão, quem sabe, ainda brincará de moleque solitário e quaternário nos tempos dos anos 60/70 que ninguém hoje sabe sequer se existiram. Talvez na coberta de tacos, esquálido ser a se esconder, pequeno ser, possa sobreviver. Senão, a insana futurologia que de nada possa valer. Anos de crença, saudades, luta, amores, pudores, arroubos desses que faz a gente digitar (datilografar no meu mundo) errado e acertar. Daí eu penso como seriam Vinícius, Drummond e Bandeira se pudessem reescrever in loco suas alegorias mil. Maiores do que aquilo são? Certamente não. Impossível crer que Fernando Pessoa, por exemplo, tenha um heterônimo igual, tão substrato de algo ser hoje em mim pouco poético e desigual. Mas, daqui, na sandice que existe e some no momento certo (há momento lúcido a esperar?), fica apenas a pena enlouquecida e vendida ao sabor da poesia, da rima, da sangria que ainda existe no pouco de vida que exangue em sina. 

(A ouvir Dominguinhos Iluminado)

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Com Fé na Festa do Gil a rolar

Por Ronaldo Faria

 O som rola enrolado na voz do cantor e se arrasta num arrasta-pé que viaja na noite fria e famélica de emoções que brotam no coração que espera o São João. Quando virá? De fato chegará? Quem sou eu para prever?

 


O homem quase garoto, garoto ainda menino, infante e libertino, olha sua amada a rodopiar na fogueira, livre e tardia, com os seios a balançarem na roupa de chita e colorida feito o pássaro que passeia no céu e proseia com a solidão para ela acabar.

Depois a vê dançar num terreiro largado em Pernambuco como fosse um capuco daqueles que a criança carrega no carro de boi de madeira que se esgueira na terra carcomida da seca. E vai a rumar sem prumo àquilo que o futuro nem sabe se um dia existirá.

Agora, como uma rês que se afugenta naquilo que nem ela sabe para onde irá, longe de seu rebanho, o homem, hominídeo há milhares de anos, está desamparado, esquartejado, vivo apenas por memórias insanas e bêbadas, coisas desconjuradas em si.

E o frio? Ele apraz? Se desfaz? Viaja como andorinha em busca do novo ninho, com uma cadela a vociferar? Quem poderá responder? O rio defronte da fazenda matou o avô que tirava bicho de pé do neto sob a luz do lampião que tem cheiro de querosene e canção.

Agora eu vejo o pequeno poço que sobrevivia à seca e trazia no lombo de um jumento a água para o mínimo da casa fazer. Vejo ainda o mandacaru que nunca deixou de brotar e sinto o cheiro que invade os poucos neurônios que teimam em ficar e se interligar.

Ouço também o enxame de abelhas africanas a passar milímetros acima da morte certa. Um zumbir ou zunir em suas asas negras e rápidas. Ávido de algo ser, o menino nunca esquecerá essa cena obscena e cenográfica, nunca captada em lentes ou mesmo sofreguidão.

Sinto o cheiro de farinha na casa onde um tacho quente a faz virar comida e percorro trilhas de cruzes de anjinhos nunca nascidos. Tudo como a descoberta incerta de brincadeiras de alguém que acredita ser um defunto de férias pronto para somente descansar enfim.

Na dança que se encanta na noite sem lua, o aluar de uma saudade que nunca findará. E o pasto esquecido no quarto do milho colhido e seco. A certeza incerta de uma marcha que vai de um lugar a outro qualquer sem nem saber se existirá quando a lucidez voltar.

Hoje, agora, sem aforismo e festa, apenas a incerta certeza de que o que se foi nunca voltará. Sem odores e visões. Tudo apenas como quânticas alucinações em insana lucidez. Com certeza de que uma vela acesa na capela conseguirá em si virar algo que valha lembrar.

terça-feira, 18 de julho de 2023

Sertão em flor junina

 Por Ronaldo Faria


A noite no sertão nordestino traz rimas e lástimas, criaturas mansas ou não, feridas calcinadas e perfídias tresloucadas, todas prontas para uma camisa de força, dessas que forçam a saudade a fugir do peito e ultimar a distância entre a seca e as ondas que beijam a areia do mar. Certamente haverá um altar em algum lugar. E se não houver, a ferida existirá.

Perto, a mulher abre os braços em abraços frígidos e frágeis. Certamente já sabe que o homem, perdido em si mesmo, ensimesmado, se perde entre trilhas e pés trilhados por um andar que nunca sequer sabia que em algum lugar chegaria. Noutro canto, um vaqueiro vigia sua vaquejada, arfada de tanto caminhar rumo à morte que nem sabe que logo chegará.

Embriagado e largado o homem se bole para não dormir na mesa, cheia de garrafas e copos, restos de amores nunca vindos, advindos daquilo que o poeta acha que seja verdade. Mas esta haverá? O que existirá de fato no fátuo resto de infaustos que chega entre cheiros e esgueiro? Saber-se-á que o toque denota outro tocar? Quem, em sã consciência, concederá ao amor a fogueira que arderá para sempre numa metáfora que só a própria pena incendiará?

(Ainda a ouvir São João Carioca)

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Santo Antônio

 Por Ronaldo Faria


A fagulha se espalha no céu e emparelha com as estrelas perdidas e ardidas feito xote ou baião. E haja xaxado. No terreiro, casais se acasalam antes de acasalar corpos e desejos. Há ensejos, decerto. Mas antes que o deserto da solidão de faça final há a faca do amor, letal, a dor despudorada e desprovida de uma canção qualquer, insana unção que junta zabumba e triângulo, sanfona e cantoria.

A árvore de gravetos, antes viva, agora carvão torrando no fogo, desarvora a desandar em pares emparelhados que logo serão um só, unidos entre beijos e ensejos, trejeitos inúmeros entre corpos e úmeros colados e deitados, num sobe e desce indecente para crentes que não sabem o que é viver. Na noite fria, frígidas mulheres pedem a Santo Antônio o amor que nunca chegará nem aqui ou acolá.

A festa que incesta e se presta ao único calor que vem de corpos e copos de quentão, mistura homens e mulheres num desvirginar de clarividências e cadências, todas harmônicas com as notas que enchem ouvidos e elimina pruridos que ainda possam existir. No frigir da quase madrugada, uma mandrágora floresce entre pântanos e enche ânforas que irão derramar suor e acalantos calados no futuro chegar.

A rebolar, a morena faz do gingado o afago desnecessário. O frio, senhor de tudo, une e junta, unta, casais que se aconchegam a fugir dos tremores que invadem corações e cópulas tardias, vazias, prontas para se achar. Loucas para achegar, chegar, chorar juntas, uníssonas, sobremaneira fatais. Assim, quiçá bisonhas, aninharão sonhos e corações. Do altar, Santo Antônio pede o fim de tantas orações vãs.

Acabou...

 Por Ronaldo Faria Acabou! Acabou o Carnaval, o sal da areia colado no corpo, o suor que escorreu entre perfumes falsos e tresloucados beijo...