domingo, 20 de julho de 2025

Ray Charles, a essência musical de um gênio *

Por Edmilson Siqueira



"The Classic Years", de Ray Charles, é mais do que uma simples coletânea de sucessos: trata-se de um mergulho profundo nas raízes da genialidade musical de um dos artistas mais influentes do século XX. Lançado como uma compilação retrospectiva, o disco reúne gravações fundamentais da fase mais prolífica e inovadora de Charles, principalmente entre o final dos anos 1940 e início dos anos 1960 — período em que ele moldou o rhythm and blues e abriu as portas para a soul music como a conhecemos hoje. 
Ray Charles Robinson nasceu em 1930, em Albany, Geórgia, e perdeu a visão ainda na infância. Essa deficiência, no entanto, jamais limitou seu talento. Ao contrário, parece ter aguçado sua sensibilidade musical. Em The Classic Years, podemos ouvir como sua voz encorpada, muitas vezes rouca e visceral, expressa uma gama emocional raramente alcançada por outros cantores de sua época. Seu canto ia do lamento do blues ao êxtase do gospel, passando pela suavidade do jazz e pela força pulsante do R&B. 
Um dos maiores legados de Ray Charles é sua habilidade ímpar de fundir estilos musicais distintos. Tanto que começou com blues, passou pelo country (gravou um disco inteiro só com pérolas desse gênero), namorou o pop (gravou Beatles) e era um jazzista sensacional, tanto com seu piano, como na composição e no canto. 
E era um pianista sofisticado, fortemente influenciado por Nat King Cole e Art Tatum, o que fica evidente nos arranjos elaborados e nas passagens rítmicas precisas ao longo dessa coletânea. 
Carismático, mesmo nas gravações de estúdio, sua performance parece ao vivo, cheia de energia, risos e espontaneidade.  
Além disso, embora o disco não seja explicitamente político, é impossível ignorar a importância cultural de Charles como artista negro num período de segregação racial nos Estados Unidos. Sua ascensão ao estrelato, sem abrir mão de sua identidade e de suas raízes musicais, foi um marco de resistência e afirmação. 
Seus biógrafos assinalam que "The Classic Years" também funciona como uma janela para compreendermos o impacto duradouro de Ray Charles, destacando que ele pavimentou o caminho para artistas como Aretha Franklin, Stevie Wonder, Marvin Gaye e tantos outros. Sua coragem estética, sua capacidade de inovar sem perder a conexão com as tradições afro-americanas, e seu virtuosismo técnico tornaram-no um ícone. 


Em 2004, poucos meses após sua morte, o filme "Ray" reacendeu o interesse por sua vida e obra, apresentando-o a novas gerações. Mas é em coletâneas como esse "The Classic Years" que seu verdadeiro legado pode ser sentido: não como lenda distante, mas como artista vibrante, cheio de vida, paixão e criatividade. 
Muitos críticos consideram que Ray Charles, mas foi ele quem os uniu de maneira singular e revolucionária o rhythm and blues, o gospel, o jazz e o soul. "The Classic Years" não é apenas uma compilação — é um testemunho histórico e emocional de um artista no auge de sua criação. Cada faixa ecoa com a força de quem cantava com o coração, tocava com a alma e vivia com intensidade. É um disco essencial para qualquer amante da música, e uma prova viva de que a genialidade de Ray Charles permanece tão impactante hoje quanto foi em seus anos clássicos. 
O disco é composto por 14 faixas, 9 das quais de autoria de Ray Charles.  
- Baby Let Mew Hold Ypur Hand (R. Charles) 
- Kiss Me Baby (R. Charles) 
- C. C. Rider (Traditional) 
- I Wonder Who's Kissing Her Now (Howard e Adams) 
- I'm Going Down To The River (R. Charles) 
- All To Myself (R. Charles) 
- Sitting On The Top Of The World (Carter e Jacobs) 
- Alone In The City (R. Charles) 
- Ray Charles Blues (R. Charles) 
- Rockin' Chair Blues (York) 
- Can Anyone Ask For More (York) 
- Baby Tell Me What You've Been Done (R. Charles) 
- Hey Now (R. Charles) 
- They're Crazy About Me (R. Charles) 
Há outros discos de Ray Charles na praça com o mesmo título ("The Classic Years"), com músicas que fizeram mais sucesso nos anos 70 e 80 do século passado. Há inclusive uma caixa com 3 CDs que deve abranger a obra de Ray Charles de forma mais completa. O CD comentado aqui, como já disse, trata mais de suas origens, quando ele se firmou como um artista completo na arte que se propunha: compor, tocar e cantar.  E, claro, no Youtube há inúmeros discos completos ou singles para se ouvir do genial Ray Charles. 

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

No cantarolar

Por Ronaldo Faria


 
A cidade, na sua idade antropológica e própria decadência, se esfacela e se esfarela feito quirela de pão. Quisera sabe dizer que tudo terminará em procela. Mas qual... Num quarto e sala, João se apropria do passado e corre feito louco das lembranças de infância. Nessa instância, o psiquiatra junto com o geriatra diriam: “Interna, é caso perdido”.
Mas João não liga para a essência de ser hermafrodita. Na desdita, se entrega ao desdém da vida. Vinho português na taça, traça a comer seus alfarrábios, viaja nas letras e versos. Faz-se reverso na crença de que estará ao amanhecer, como disse o poeta, pra lá de Marrakesh. “Amanhã a gente vê a merda que vai dar”.
Incenso de arruda aceso, dois novos santos africanos no santuário (uma com a navalha que corta o mal e o outro que faz novo ciclo chegar no tempo), na certeza de pesadelos logo mais, João se embrulha solitário feito sabugo na palha do milho. “Vim só caminhar nesse mundo e só irei embora.” Lá fora, o aforismo de falácias e dramáticas histriônicas histórias. Atônitas, células dançam um tango/bolero qualquer.
Na cidade, cheia de iniquidade e dramaticidade que enche o roteiro de amantes e poetas, homens e mulheres se juntam, se separam, reparam que estar junto pode ser coisa boa ou mazela. Na esquina, quimera de prosopopeia, um personagem que por obrigação da rima se chama Zélia.
 
II
 
A rabeca faz a prece fluir feito chama ao luar. E sublima a miragem selvagem que se entorna no copo profilático e alcoólico. No andor lunático que o andar dos graus dá, viajar de flores despetaladas que dormem suas cores no chão. De antemão, o cuidado nas travessias do amanhã. Estrábico e analfabeto em matemática e física, nas distâncias entre as entranhas e os carros que correm no asfalto, que venham os anjos dos sonhadores. E sejam prestos em gestos e destinos. E logo e portanto, em tão pouco pranto, que o desatino diuturno e frugal mantenha no planeta mais um dia esse animal.
 
III
 
Blasfêmia à fêmea? Jamais. No meio de um jardim de antúrios e florais, Vespúcio sabia que o encontro do sol e da lua é mais do que uma simples conjunção de astros. Nos astrolábios da navegação que busca a felicidade, a bússola aponta para a saudade. Ínfima infâmia da artimanha que se entranha no cair da tarde lilás, luxúrias se transmutam feito perda de lucidez mordaz. Loquaz, a realidade brinca de ser sem sê-lo. No passado, o homem lambe o selo à espera que a amada responda logo em sequência hedionda, quiçá capaz.
 
IV
 
-- Sortuda a peituda. Soube escolher o louco certo!
Chico sem sobrenome deu sua sentença. O resto logo irá virar resto sem opção ou oração, senão.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Pra esquentar

Por Ronaldo Faria


 
-- Pelo amor de Deus, canela de pedreiro não!
O pedido de Gusmão fora tão sofrido e verdadeiro que Cícero, garçom do lugar, atendeu o desejo.
-- Tudo bem. Peguei uma que tinha acabado de colocar no freezer. Tá quase na temperatura ambiente.
-- Obrigado, meu irmão! De coração!
Gusmão, parceiro de copo de Felismino, que tinha faltado na retreta por estar gripado, pega a garrafa, enche o copo e derruba tudo de uma talagada só. Feliz por tudo na vida ter feito por amor, quer agora apenas um momento de torpor sem dor. Pede um podrão onde tudo é pouco pra tanta fome, come em dentadas plenas e se propõe: “Amanhã vou caminhar, com ou sem calor.”
-- Cícero, meu velho, fecha a conta aqui!
-- É pra já, patrão!
Gusmão se levanta, aperta a mão do comparsa de bebedeira, mesmo cada um do seu lado do balcão, e sai a sorrir na madrugada escalafobética. No alfabeto que lhe repassa no cérebro que ainda está e há, brinca de chutar uma lata perdida no asfalto. Do alto do prédio, um ser enfronhado no seu próprio tédio diz que não é hora de cantar. Ele não liga. Na verdade, religa o celular e chama o número de Felismino só pra dizer que a gripe é uma merda e os goles perdidos nunca mais voltarão. Lembrou ao amigo que seria bom tomar um Voltaren. “Ao menos a dor tem que parar”. Espera o sinal abrir para os raros pedestres e, pé antes e depois do primeiro pé, caminha até sua casa, aonde com a solidão irá se agasalhar e acasalar. Mas, ao menos, trêmulo de quase hipotermia, sabe que conseguirá dormir. No frigir dos ovos, haverá mansidão. Na devassidão que a solidão dá, sabe que meio metro de concreto vale mais do que quilômetros de um dia que não mexe sequer o catavento.
 
(No final com o Chico Buarque)

terça-feira, 15 de julho de 2025

Charlie Byrd e a música brasileira *

Por Edmilson Siqueira


 
Que a bossa nova encantou os músicos de jazz dos Estados Unidos todo mundo sabe. Eles não só gostaram muito do que ouviram, como perceberam ali uma vertente jazzística digna desse nome. E, claro, entraram com tudo naquele "jazz" malemolente com lindas melodias. 
Charlie Byrd foi um desses músicos que se apaixonaram pela bossa nova. Mas ele foi além: Em 1961 veio ao Brasil, comprou, ou ganhou um monte de discos, participou de várias sessões com músicos brasileiros e voltou ao Estados Unidos carregados de boas lembranças daqui e disposto a transformá-las em disco. 
O disco acabou saindo em 1965 e se chama "Brazilian Byrd", com arranjos de Tom Newson, um saxofonista que também passeou pelo Brasil em 1962, com a orquestra de Benny Goodman e adorando a música brasileira que conheceu.
A gravação, só com músicas de Jobim e vários parceiros, acabou representando um dos momentos mais marcantes da união entre o jazz dos Estados Unidos e a bossa nova brasileira. Com arranjos refinados, técnica impecável e uma sensibilidade rara para os ritmos e harmonias do Brasil, Byrd mostra nesse álbum sua profunda admiração pela música brasileira, em especial pela obra de Jobim e seus parceiros que formaram a espinha dorsal da bossa nova.
Charlie Byrd não foi o primeiro músico norte-americano a se encantar com a música brasileira, mas foi um dos mais importantes na sua difusão no cenário jazzístico. Foi ele, inclusive, o responsável por apresentar a João Gilberto e Tom Jobim ao saxofonista Stan Getz, o que culminaria no antológico Jazz Samba (1962), um dos discos mais vendidos da história do jazz. "Brazilian Bird" é, em muitos aspectos, uma continuação desse projeto: fazer a ponte entre dois universos musicais distintos, mas complementares. 
Charlie Byrd era um guitarrista clássico de formação, com influência direta da escola espanhola e do violão erudito. Isso conferia a ele uma abordagem única dentro do jazz, que normalmente era dominado por guitarristas com palheta e linguagem mais próxima do blues ou do bebop. Ao tocar com os dedos, Byrd conseguia um som mais quente e articulado, ideal para as sutilezas da bossa nova.
 

Em Brazilian Byrd, ele evita o virtuosismo exibicionista. Seu foco é na melodia e na dinâmica. Cada nota soa clara, pontual, com atenção ao fraseado — como se a guitarra respirasse junto à música.
O álbum surge num momento de grande fascínio da cena de jazz norte-americana pela música brasileira. Nomes como Cannonball Adderley, Dizzy Gillespie, Herbie Mann e Paul Winter também estavam experimentando fusões com a bossa nova e o samba. Mas, entre todos, Charlie Byrd foi o mais consistente e talvez o mais respeitoso nas suas releituras. 
Diz a crítica especializada que "ao longo dos anos, o disco ganhou status de cult e permanece como um dos melhores exemplos do que hoje se chamaria de world jazz. A abordagem de Byrd influenciaria não apenas outros músicos de jazz interessados na música brasileira, mas também guitarristas brasileiros que perceberam, com ele, novas possibilidades para o violão dentro do jazz."
Assim, "Brazilian Byrd" é um álbum essencial para quem deseja entender como o Brasil entrou para o mapa afetivo do jazz internacional. Mais do que um disco instrumental, é um gesto de amor e reverência, em que um músico americano, com talento e sensibilidade, consegue captar a alma brasileira em sua forma mais musical.
São essas as 13 faixas (uma delas é uma gravação alternativa):
Só Danço Samba (Tom e Vinicius de Moraes)
Corcovado (Tom Jobim)
Este Seu Olhar (Tom Jobim)
Garota de Ipanema (Tom e Vinicius de Moraes)
Samba do Avião (Tom Jobim)
Engano (Tom Jobim e Luiz Bonfá)
O Amor em Paz (Tom e Vinicius de Moraes)
Dindi (Tom e Aloysio de Oliveira)
Canção do Amor Demais (Tom e Vinicius de Moraes)
As Praias Desertas (Tom Jobim)
Samba Torto (Tom e Aloysio de Oliveira)
Se Todos Fossem Iguais a Você (Tom e Vinicius de Moraes)
Engano (Tom e Luiz Bonfá - gravação alternativa)
O CD pode ser encontrado por aí, nos bons sites do ramo e pode ser ouvido no Spotify (https://open.spotify.com/intl-pt/album/1gPDlIt0HuXWNN9GDDItPu) e no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=s9SxWBm_WM8). No Spotify está completo. 
 
*A pesquisa para este artigo foi feita com auxilio da IA do ChatGPT.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Friorento e acalantado

Por Ronaldo Faria


Faz frio. O corpo tem arrepio e não se ouve da coruja sequer um pio. Ela está entocada numa toca qualquer, a tentar agasalhar seu pé. Na rua, casais se agarram e se juntam mais do que o normal, como fosse junho o início de mais um Carnaval. Quem sabe a roçar pernas e braços, com tantos alentos e enlaces, aconchegos e abraços, não se consiga fazer a noite perpetrar o resto de sol e fazer o mundo esquentar? Mas qual, na Terra não há mais lugar para anjos. Os demônios que passeiam nas esquinas e camas fazem da lua seu réquiem e ruminam a estapafúrdia certeza de que não vale a pena viver.

As janelas fechadas para as fachadas cinzas e cheias de concreto armado parecem armas prontas para dispararem no disparate que vem a cada gole de vinho tinto. A tintilar nalgum lugar perto, moedas caem do bolso do avarento que deixou de pagar a conta de luz. Sem aquecedor, vive a bater seus dentes e ranger ossos na plena dor. O odor em volta é de restos de comida carcomida por vermes que aprovaram o fim do frio no congelador. Deitado no sofá, soturno e alquebrado pelo tempo, Gumercindo é um gourmet da tristeza, quase um comensal. Lá fora, afogada em formas e versos, vive Beatriz.

Desejada por todos aqueles que a conseguem ver ou enxergar, está a ler um livro de poesias, desses que se lê junto com café quente num boulevard. Quase desnuda, sob as cobertas que chamam de edredom, sente sua pele tocar o cetim que serve de lençol. Seus raros pelos brincam de levantar numa estática e elétrica estética a quem gostaria de estar ali, a servir de calor à falta de pudor. Beatriz, que Michelangelo teria esculpido em tamanho real e desejo irreal, sabia que vive nos sonhos e pesadelos de homens e mulheres mil. Mas, agora, na fria noite que se atira gelada, é apenas um pedaço de sina.

“Cretina, por que me deixou?” O grito de Evangelista sai de uma lista de impropérios etéreos que surgem da sua garganta seca e perdida na derradeira mesa de um bar. Ébrio desde menino, famélico e magrelo, se fosse visto de lado ninguém o enxergaria. Aliás, mesmo de frente, bem defronte que seja, ninguém o vê. Mas ele não liga mais para isso. Submisso às lembranças de infância, refém do amor de Maria, é outro Zé na fila do bonde que há muito deixou os trilhos enferrujados. Penitente renitente de uma oração, dessas que se recita nas procissões, apenas espera o garçom expulsá-lo do lugar.

Mas na boate que funciona no meretrício em tênue luz vermelha plena de devassidão, Joana gargalha ao último freguês. “Esse albanês é uma besta de pinto pequeno!” Bento, segurança do local, ri também. O turista, de nome Vasil (não vaselina), sequer entendia o que os gentios falavam. Feliz pela noite tragada e entumecida, pagou em dólares e partiu. Seu navio iria sair logo no amanhecer. Para Joana, a trama tinha findado. Era hora de tomar mais um trago, por conta da casa, seguir para o subúrbio e dormir. A névoa gelada ao derredor não sabe ver ou ler a sua dor. Daqui a pouco, novo retomar do mundo louco.

Um dia Gumercindo encontrou Joana a trabalhar e logo descobriu que era nela e nas suas pernas que seria feliz. Catou cada vintém que tinha escondido debaixo dos tacos de madeira e entregou um a um à sua nova amada. Ela, estupefata com tal querer, adotou o homem e prometeu morar com ele, desde que esse pagasse a conta atrasada da Light. No dia seguinte, na fila do Serasa ele estava lá. Já Evangelista viu Beatriz numa livraria tosca na busca de nova leitura atávica. De lado, para que ela não o enxergasse e se assustasse, não acreditou na cena e demasiada beleza. De repente, ela lhe tocou o ombro: “Sabe onde eu encontro Baudelaire?” Foi amor à primeira pergunta e o esquecer eterno de Maria.

Hoje os quatro vivem os dias frios a trocar cobertores, chaves de aquece/esquenta no chuveiro e brincadeiras que surgem depois de garrafas de vinho, conhaque ou bourbon. No interior da metrópole que aos poucos vira acrópole, vão tocando seus dias entremeados de madrugadas onde cada respirar faz fumaça das gargantas brotar. E o tempo e os minutos passam no relógio, perpassam novos aniversários e a certeza de que a esteira da história não para de rodar. Lá de cima, bem acima do celeste luar, alguém ri de seus personagens e daquele que, quando o sol chegar, estará a descobrir como nova ressaca suprimir. 

(Ao som de muitos músicos e canções)

sábado, 12 de julho de 2025

Edu que foi e eu logo me acho lá

Por Ronaldo Faria

Juninas festas febris, sânscritos escritos do nunca fim, desvairados horizontes etílicos e tresloucados, fadados a submergir nas ondas que a Zona Sul traz a iluminar contábeis contas e vidas proscritas e desditas. No corre da vida, fatídicas e idílicas saudades. Maldades e catarses, insolúveis ideias. Panaceias da doutrina efêmera de seguir àquilo que será. Paráfrase daquilo que for na fuga da louca que queremos ver se salvar. Antes de nós seja ela o melhor amor a viver no amor maior. Cravo e canela naquilo que pode ser o próximo luar, na loucura desse mundo tresloucado que pede a saideira. Aliás, quem não pediu ou bebeu uma saideira (ou foi presenteado com ela) não terá vivido nesse mundinho. No gratinado de qualquer carne, no seu cheiro cheirado, esmero brejeiro, a solução do efêmero centeio. Em rimas trazidas sabe-se lá de onde, a certeza de que os instrumentos brincam de versejar.
-- A todos nós, loucos no tempo que a terra deu pra estar, a certeza de que cada ressaca valeu o tempo que se fez em si, sem invólucros, estar.

(Ao som do Edu Lobo, ainda aqui)

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Arrigo com Lupicínio

  Por Ronaldo Faria


-- Só uma Maria foi de verdade. As outras foram Maricotas.
A frase de Apolinário, que nunca fora otário na vida (apesar de assim uns imbecis o acharem), apenas se escondeu no personagem atávico e quase trágico de uma música que Lupicínio Rodrigues assina. Sentado e quieto, ereto ainda, ele revê e vê os tempos áureos e plausíveis, sensíveis e críveis, ou como diria Lupicínio, quando os espelhos lhe dão conselhos.
Na cama, azáfama e vestal, o personagem imaginário e etário vive as juras largadas e versejadas do ultimato trágico e fugidio. Para ele, parafraseado em cada nota da canção, toda a nota belisca seu coração. Proscrito e escrito o tal dito no ditame infame do versículo maldito. No palco que aplaca a falta da falácia que deixa a barganha buscar a felicidade na tonalidade melhor para o bálsamo que se refaz a cada doce beijo doado e doído nos lábios que nunca mais se verá nos versos. Quiçá, novos amores se descobrirão. E cada vida se verá na transgressão da iluminada realização.
-- Escrever mais, por quê?
-- Sei lá! Talvez porque na geladeira ainda há algumas latas a beber.
-- Ou talvez dependa apenas daquilo que você queira falar e dizer.
-- Pode ser...
No palco nostálgico, que já está difícil descrever ou prever nas pernas da mulher que se alisa a cada estrada que poderá chegar, a sina. Tudo como uma metonímia, seja lá o que isso quiser ser. Ao resto, talvez um saravá. Mistura de letras, sílabas e palavras, frases desanuviadas, desvairadas, declamadas por um bêbado qualquer. Na fé, façamos a tragédia que a comédia emerge nas águas lavadas. Catatônicas, afônicas, tragicômicas, atônitas, as deixemos tornar desejo em louvor.
 
II
 
Singularidade na verdade ou na maldade? Onde estará a saudade que pede para descer? Sobe ou desce cadeiras, transversal e icônica letalidade sobrenatural. Por isso, nesse aqui e agora que ninguém lerá, as fratricidas paixões e caixas de ódio que nunca irão perdoar

terça-feira, 8 de julho de 2025

Uma croniqueta feliz, pra variar

  Por Ronaldo Faria


No brilho do mar que a todos nos damos e se dá sob a luz da claridade ou de uma rã, como diria o poeta das notas, Donato, vai o casal acasalado de há pouco e, como todo amor afoito, louco para se recriar no coito. Seus corpos, avermelhados do sol amarelo, brilhantes nos grãos que a areia permeia e dá sem cobrar um tostão, se espalham e se espelham entre os fortuitos olhares daqueles que queriam estar ali naquele lugar. E continuam voláteis a caminhar e flanar no asfalto de 50 graus à sombra. Logo irão se aninhar em dois num só, sem dó. Se amarão, se agarrarão, irão se dispor à felicidade de dar e receber, crer e encher de beijos os queijos que serão servidos e sorvidos a cada novo café da manhã. Farão promessas mil, catarão espigas de milhos perdidas em plantações de girassóis. No após? Não querem nem saber. Como diria o profeta: “Que o futuro vá se foder!” Com João Donato, neste ato curto e prático, a prática de querer (ao menos nos teclados) ser feliz...

(Ao João Donato)

domingo, 6 de julho de 2025

Uma hora de jazz com todo mundo *

Por Edmilson Siqueira



Já escrevi aqui alguns artigos sobre os discos da coleção "A Jazz Hour Special", da qual tenho a maioria. Infelizmente não consegui completá-la, mas os 24 títulos que tenho dela são um ótimo resumo de tudo de bom que o jazz produziu desde priscas eras até os anos 70 do século passado.  
E hoje me dedico a mais um da coleção, desta vez um disco que não se resume a cerca de uma hora de um artista e suas geniais criações. Esse é especial, aliás, traz um "Special" no título, pois abrange nada menos que 15 diferentes nomes - de trios a orquestras ou mesmo solos de cantores - que reviraram os estilos jazzísticos e provocaram - e ainda provocam - prazer ao ouvinte. 
 O encarte do CD explica: "Uma hora especial de jazz traz a você músicos de jazz excepcionais, altamente representativos de toda a série Jazz Hour. Embora cada um dos artistas seja completamente único e original, eles têm pelo menos duas coisas em comum: swing genuíno e alta qualidade. É mais provável que eles consigam satisfazer o ouvinte crítico, que anseia apenas pelo melhor que a música pode oferecer: criatividade, originalidade, imaginação e perfeição, mas também alcançarão o amante da música em geral, que busca entretenimento com apresentação agradável. 
 Certamente, os ouvintes já familiarizados com a série Jazz Hour ficarão confortavelmente surpresos, pois este CD reúne vários favoritos essenciais do jazz em um pacote encantador. Mas também os novos ouvintes terão uma introdução atraente: uma ampla gama de estilos de jazz e excelentes artistas são apresentados como um panorama perfeito da série Jazz Hour. Além disso, este disco especial contém um resumo sutil da história do jazz até os anos 70, que pode ser apreciado por qualquer fã de música." 
 Logo de início, chama atenção a diversidade estilística que permeia o disco. O ouvinte é conduzido por uma jornada que passa pelo swing, pelo bebop, pelo cool jazz e até pelos primeiros passos do hard bop. Cada faixa serve como uma pequena janela para um universo sonoro distinto, refletindo não apenas as transformações musicais do gênero, mas também os contextos culturais e sociais que influenciaram os músicos ao longo das décadas. 


Entre os destaques está a presença de nomes como Louis Armstrong, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Miles Davis, Billie Holiday, entre outros gigantes do jazz. Suas performances, ainda que muitas vezes captadas ao vivo ou em registros de estúdio com recursos limitados para os padrões atuais, mostram autenticidade e vigor. Parker e Gillespie, por exemplo, aparecem em uma típica sessão de bebop, cheia de energia, síncope e virtuosismo.  
 Na outra ponta do espectro, Billie Holiday traz a introspecção e a emoção crua de sua voz inconfundível. Suas interpretações revelam não apenas seu talento musical, mas também a dor e a resistência que marcaram sua trajetória. A Jazz Hour Special também é relevante por mostrar como o fraseado de Miles Davis evolui com o tempo e como a harmonia se torna mais ousada com Monk. O passeio pelo jazz no disco vai de uma gravação de 1939 até outra de 1973: 

1- Louis Armstrong - "Perdido Street Blues", de Armstrong e Hardin (New York, 1943) 
2- Fats Waller - "I'm Gonna Sit Right Down And Write Myself A Letter", de Young e Albert (New York, 1939) 
3 - Lionel Hampton - "Jivin' With Jarvis", de Hampton (Hollywood, 1940) 
4 - Count Basie Oechestra - "Coutin' The Blues", de Basie (1959) 
5 - Billie Holiday - "Time On My Hands", de Youmans (New York, 1940) 
6 - Benny Goodman Quartet - "All The Thing", de Kern e Hammerstein (Los Angeles, 1958) 
7 - Duke Ellington Orchestra - "A Portrait Of Bert Williams", de Elington (Chicago, 1940) 
8 - Ben Webster Quartet - "Londonderry Air", de Webster (Copenhagen, 1965) 
9 - Woody Herman Orchestra - "The Preacher", de Silver (1957) 
10 - Ramsey Lewis - "Wade In The Water", de Lewis (Chicago, 1966)  
11 - Barney Kessel Trio - "Old Devil Moon", de Harburg e Lane (Montreux, 1973) 
12 - Stan Kenton Orchestra - "Tenderly", de Garner (1961) 
13 - Thelonious Monk - " Round Midnight", de Monk (1962) 
14 - Art Blakey Quintet - "Transfiguration", de Blakey (Minneapolis, 1957) 
15 - Charles Mingus - "Body And Soul", de Heyman e Green (1962). 

O disco pode ser encontrado nos bons sites do ramo. Não encontrei a gravação na rede. 

*Parte da pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Indagações táteis e fúteis

 Por Ronaldo Faria

O que fazer ou refazer no extinto e retinto prazer? Que diásporas e fugas criar? Entre perdidos e achados, autoproclamados suburbanos derreados, como reaver a vida nas longínquas estradas de ser ou não ser? Nos provérbios que os verbos dão, desvão e raros versos.



Cassimiro, irmão de Belmiro e Estevão, primo de Lupercínio e Clemente (para muitos o mais débil demente da família), descobrira que algo existia como empecilho com seu amor por Emília. Não era possível tantos desastres e contratempos para perder o corpo entrelaçado ao outro corpo como lufada de vento. Quedas, cabedais, castiçais partidos, passos mal dados, contradanças, males mentais e elementais em contratempos distintos. Indistintos, díspares e diversos climatérios a se untarem de despautérios e impropérios que nem o mais imperial imperador saberia em papel assinar. Para Cassimiro, qualquer espirro parecia maremoto no Mar Morto – impávido em colosso, no osso.
No passado próximo, entre o ócio e o pior beócio como mentor, o homem, na verdade eterno menino que teima em não crescer e ver o mundo como ele é, viaja feito subalterno nos porões do lisérgico barco sem rumo ou lugar a chegar. A se largar, num lagar etéreo e heterogêneo, homônimo do mais heteronômico ser, se lambuza de si mesmo na luta de cinco contra um. É apenas alguém a sorver pernas e penugens púberes num perrengue lunar. Bêbado de poucos goles, parcimônia de si, hecatombe à espera de se contemplar e se completar, locupletar. Para o futuro, esse fortuito clamor da dor, pouco saberá. Cassimiro é mistério e etéreo ser.
Na efeméride que o proselitismo dá, viaja voraz e incendiário no diário quaternário que somente os loucos e trôpegos sabem trazer e ler, entreolhar, no tardar. É um a mais nos tantos bilhões que caminham em descaminhos nas trilhas que a jusante da maré dá. Ao Deus, algo se fará. A perder chinelos, foder em sonhos famélicos de amor, derrear em qualquer lugar, sorver banquetes inebriantes e roer ossos de pés de galinhas mortas e pútridas, Cassimiro voa feito andorinha de uma asa só. Refeito e contumaz prisioneiro de seu passado sem cor, pintado numa aquarela que não pega pincel ou hidrocória disseminação, ele apenas refaz nas suas nuas cenas as penas que não cobrem seu corpo torto e roto. Quando com penas coladas com cera chegar perto do Sol, cairá feito mitologia num imenso e inequívoco mar. Se afogará de felicidade ou maldade e, por fim feliz, viverá a marejar.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

À noite

 Por Ronaldo Faria

 

A noite cai redundantemente noturna, taciturna e escondida no alto do céu. E traz faróis, mulheres entregues aos seus perfumes e amores, homens redescobertos nas esquinas na busca de corpos e cópulas, beijos maculados em sonhos acordados. Deitado no sofá a tudo enxergar, Adauto relembra a boca de Solange, hoje só e longe. Ri feito criança com a vida ancha e entregue ao irreal. Lá fora o resto de cores reverbera no inverno que afugenta amantes em abraços rápidos no despedir.
Ao frigir dos ovos na panela que espalha respingos pelo fogão, entregue à própria solidão, Adauto desautoriza a tristeza de desfazer as malas e deitar ao seu lado. No som da vitrola rola um fado. Fetiche de si mesmo, a esmo, toma outro gole de saudade e se entrega ao vagar das divagações que fogem do passado para lhe remoer o presente. Ausente na presença do silêncio, assimétrico nas rimas toscas, bebe a noite que se avizinha. No apartamento defronte vê o despir das vestes da pudica vizinha.
Devagar, no vagar do espaço, a lua brinca de trazer novas marés envoltas em espumas e lúdicos amores. Vira serenata que José faz à Renata e o desejo de uivar àqueles que viram lobisomens. Na harmonia da frágil nostalgia, perpetua-se num pratear que pranteia os olhos da súbita amada. Do nada, traz a certeza de que logo mais irá brincar de esconder do outro lado da Terra. Num lapso astronômico talvez decida, quem sabe, não mais brilhar. Mas agora é somente amante do casal diante do mar.
Mas Adauto, sem sobressalto, como de assalto, nada muda. Deitado a sentenciar a cena no inútil relógio que toca em seus ponteiros a troca do tempo, somente quer ser alguma semente do amanhã. Poder despertar em sinfonia de pássaros cansados de amar e dar bom dia a qualquer um que cruzar pela vida. Sem catar pelo em ovo, forjar um cantar ao som do realejo benfazejo, virar surgir e lumiar. Agora, porém, de pés ao alto, ser apenas um corpo deitado e fadado a seu destino tardio esperar...
 
(Ao som do grande poeta das cordas Helio Delmiro)

terça-feira, 1 de julho de 2025

Uma bela voz navegando por clássicos de Jobim *

Por Edmilson Siqueira


Quem acha que a moçada de hoje só está ligada numa música eletrônica ou produzida artificialmente, com letras horríveis, não está de todo enganado, mas há alguns respiros por aí que, já há algum tempo, mostram que a inteligência, o bom gosto e a qualidade musical ainda sobrevivem.  
Há vários exemplos mais atuais, mas vou citar apenas um, motivo desse artigo e que está entre nós há doze aninhos já.  
Trata-se do disco "Vanessa da Mata Canta Tom Jobim", que marca um dos momentos mais delicados e respeitosos da música brasileira recente. Veja só: música delicada e respeitosa (eu tirei essa frase de uma das inúmeras e boas críticas ao disco). 
Respeito à obra de Tom Jobim (e de seus vários e grandes parceiros) é coisa que, hoje em dia, se vê mais no exterior que no Brasil. Exterior mais civilizado, diga-se. Nas inúmeras rádios de jazz pelo mundo que sintonizo via internet, em todas elas a música de Jobim é tocada naturalmente. Algumas, como uma rádio de Nova York, todo dia 25 de janeiro (aniversário de Tom) tem uma programação especial, com inúmeras músicas do brasileiro espalhadas na sua programação. 
Aqui no Brasil há algumas rádios de jazz e bossa nova que também tocam muito Jobim e outros mestres do estilo. E há vários discos gravados nas duas ou três últimas décadas, dedicados à obra do mestre que nos deixou em dezembro de 1994. 
Pois esse disco de Vanessa da Mata, com arranjos da Orquestra Brasileira de Música, sob regência de Jaques Morelenbaum, e produção de Eumir Deodato, reafirma a perenidade da obra de Tom e a capacidade dessa obra se reinventar por meio de diferentes vozes e gerações. 
Uma curiosidade, que melhora ainda mais o trabalho, é que o disco não busca inovar radicalmente ou reinventar Tom Jobim, como outras releituras que optaram por caminhos mais ousados e não se deram bem. Vanessa manteve um foco na fidelidade emocional e estética da obra do maestro soberano, com sua voz leve, cristalina e expressiva. Afinal, não é fácil assumir a responsabilidade de interpretar um repertório já consagrado, sem carregá-lo com exageros ou vaidades artísticas. Pois o resultado, alinha a essa, digamos, humildade diante da grandiosidade da obra de Jobim, é um álbum de grande beleza, que funciona como uma ponte entre o passado e o presente, trazendo o refinado repertório jobiniano para uma nova geração de ouvintes. 
Com uma seleção das faixas criteriosa e abrangente, Vanessa empresta às músicas uma sensibilidade feminina que realça a sutileza das melodias e das letras. Sua forma de interpretar é limpa, sem afetações, o que ajuda a destacar os arranjos sofisticados e os detalhes harmônicos característicos das composições de Tom.  


Um dos grandes méritos de Vanessa no álbum é respeitar o espaço das canções. Ela não tenta dominar as músicas, mas se integra a elas com delicadeza. É como se cada nota fosse tratada com reverência, como se estivesse consciente de que está lidando com algo sagrado dentro da música brasileira. 
O disco foi muito bem recebido pela crítica e pelo público à época do lançamento. Foi elogiado por sua elegância e sensibilidade, mesmo por aqueles que, em geral, são cautelosos com releituras da obra de Tom Jobim. Há também ganhou uma versão em DVD, com o registro do show. 
As faixas abrangem tanto clássicos consagrados como canções que não tiveram tanta divulgação por aí. Segue a lista: 
- Caminhos Cruzados (Jobim e Newton Mendonça) 
- Fotografia (Jobim) 
- Chovendo na Roseira (Jobim) 
- Eu Sei Que Vou Te Amar (Jobim e Vinicius) 
- Sabiá (Jobim e Chico Buarque) 
- Dindi (Jobim e Aloysio de Oliveira) 
- Wave (Jobim) 
- Falando de Amor (Jobim e Newton Mendonça) 
- Só Danço Samba (Jobim e Vinicius) 
- Este Teu Olhar (Jobim) 
- Por Causa de Você (Jobim e Dolores Duran) 
- Correnteza (Jobim e Luiz Bonfá) 
- Só Tinha de Ser com você (Jobim e Aloysio de Oliveira) 
- Estrada do Sol ((Jobim e Dolores Duran) 
- Samba de Uma Nota Só (Jobim e Newton Mendonça) 
- Desafinado (Jobim e Newton Mendonça) 
O CD está a venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no Spotify em https://open.spotify.com/intl-pt/album/6SDA6c1yYwP4Irp6vhlTKy  ou no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=pNPRNANyDcA&list=OLAK5uy_nWnBFypGvO0whion3CTUiAvRfJcYvzhUg&index=2 . 

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Na retórica histriônica da esotérica memória

 Por Ronaldo Faria


No subúrbio suburbano e atávico do maior amor primeiro entre trilhos de ferro, efêmeros projetos de vida, beijos lambidos e misturados de cuba libre e gim com tônica, vai José, pai de Jesus e que não penetrou Maria no barraco da comunidade antes do anjo, que era vapor da biqueira, avisar da chegada dos alemães. Aliás, soube também pela amada, cabrocha da escoa de samba do lugar, que era pai sem nunca ter sido. “Como assim”, teria dito à Maria. “Leia o Kamasutra antes de um monte de móvel criar”, teria ela respondido ao agora padrasto aflito.
A cerveja meio quente e outro tanto gelada do boteco incrustado no morro bastardo da cidade, que só era visitado na época da política encher de promessas o cartel de políticos safados, era o líquido que alimentava José, quase Josué se a vontade da tia carola tivesse se preservado. “Como assim ela foi a predestinada na Terra para trazer o Salvador?” A pergunta soou estranha para José Palavra Pouca. Na verdade, honrando seu nome dado pela vida, ficou calado. Melhor sem falar nada do que estar colado numa ribanceira de cara para as formigas comerem.
-- Seu João Português, traz mais duas do alambique pra mesa!
Presa de si mesmo, José fica batendo e rebatendo na sua cabeça tal coisa tão linda ou finda. “Vou ser pai sem ser de um cara que vem pra Terra e para o morro para salvar sem precisar mandar um salve geral todos nós!” A ideia, aos poucos que a loucura da bebida chegava e emergia de todo no todo, parecia até legal. “Tirando que no morro vão me chamar de corno, até que a notícia não é de todo ruim” – refletia sob o holofote forte que compensava o poste onde a lâmpada foi destruída para se testar um AK47.
Assim, desconexo da realidade ou da verdade, voltou para o barraco. E lá estava, escrava do seu destino, Maria com o filho do Criador que ela nunca viu e nem sequer na penetração gozou. “É esse o dono do morro, das biqueiras e do geral?”, perguntou José. “Acho que é ele, mas tem crescer”, respondeu Maria ainda com o cordão umbilical sem cortar. “Tudo bem. Corta essa porra de ligamento e vamos beber uma 51”.
Passaram-se anos. Muitos e dezenas de anos. Jesus cresceu nas vielas curtas e diminutas do morro e pregou desde cedo o seu proceder. Começou fogueteiro, virou olheiro no asfalto, vapor, segurança, contato com o exterior, contador da biqueira, chefe da quebrada, superior. Hoje, na mansão que se espraia na área de preservação florestal, destruída e tangida de histórias e hóstias que ele distribui de graça a cada domingo, malhadas, é o senhor do pedaço. Aliás, Senhor do Pedaço. Maria e José moram lá e sabem que o destino, mesmo que escrito em desatino, se fez. Afinal, dependesse do Estado a comunidade estaria tão bem? Aliás, ali ninguém passa fome, deve pro SPC ou tem parente nascido ou morto esquecido por ser. No novo livro do “novo testamento” sob a testemunha de homens e mulheres existentes e crentes sem lamento, Jesus é o unguento maior.
-- Se eu sou ateu? Qual é a sua, meu irmão? Aqui quem manda é Jesus! No resto, vais tomar nos seus cus...
 
(Ao som de João Bosco e ser carioca, com muito (imenso) amor)

sábado, 28 de junho de 2025

A reencontrar nos contos de além-mar

 Por Ronaldo Faria


-- Magda, é você?
-- Poeta, meu esteta? Sou eu sim...
A resposta bastou, mesmo curta e simples. Primeiro o abraço apertado, desses que dá vontade e desejo de se acordar e dormir com ele. Depois, o afago carinhoso, tinhoso por mostrar que nada irá parar por aí. Então, como já era de se esperar, um beijo longo e repleto de línguas, saliva, sabores e saudades.
-- E aí, como você está? Quanto tempo...
-- Pois é, um tempão. Teria dado tempo até de ver nosso rebento formado em qualquer doutor, se algum rebento tivéssemos tido.
-- É, até teríamos. Mas a tirania do destino assim não o quis.
-- Mas se falávamos tanto numa revolução no passado, porque não a fizemos em nós mesmos?
-- Acho que nos faltou o ímpeto e a coragem que invadem os verdadeiros revolucionários da vida.
Agora duas risadas soltas e loucas, dessas que mostram dentes, cáries e obturações, dão lugar à mesa do bar. Uma mistura de felicidade e arrependimentos forjados e fechados a unguentos que o tempo traz e dá toma conta do lugar. Os olhos dos reatados amores se entrelaçam feito condores na busca da presa. Sem pressa, feito remessa de cartas de quando eram jovens e demoravam um sentimento para caírem nas caixas de correios correlatas, se beijaram outra vez e outras vezes mais. Eram como reses soltas no pasto verde sem saberem em que matadouro irão terminar.
-- O que você fez de bom nesse tempo?
-- Estudei. Muito. Hoje eu sou doutora. Dou aula em universidade, moro na mesma cidade e tenho até nome de espaço do saber. E você?
-- Continuo o mesmo: um contínuo na mesma firma chamada destino. Acordo, ando, desando, sonho, escrevo, enlouqueço, padeço, rimo alhos com bugalhos, me embriago e sonho com nós dois. Às vezes sou um pouco alegre, outras tantas vivo nas tristezas devagar.
-- Nada deu certo naquilo que você dizia ser um incesto popular?
-- Deu. Acredito que pude deixar minhas marcas nalgum lugar. Se foi em areia fina, pântano ou beira de mar, sei lá. Vivi em mim e meus personagens, aqueles que sem me sondar antes invadem meu mundo e me transformam em tantos centenas ou milhares demais.
-- Ser muitos e tantos deve ser bom demais.
-- Talvez sim. Talvez não. Mas, hoje, me basta estar aqui com você.
Riram muito outros tantos, se tocaram, entreolharam, beberam, beijaram, desejaram, venceram décadas demais, submergiram nas coisas que não há como explicar. Terminaram num quarto, a gozar. Depois, um banho longo, ela dependurada nele com a água quente a jorrar e as pernas e braços a segurar o gozo que se esvai.  E voltaram ao amor que tanto queriam recuperar, se borraram de cores que tal amor traz, transpassaram pernas e braços, em amassos se amassaram e amansaram e amainaram tanto tempo perdido e urdido no ardido que dois corpos têm para se dar.
-- E agora?
-- O que agora?
-- Vamos assim continuar?
-- Você quer?
-- Pergunta de homem para mulher?
-- É!
Resposta não houve. Ambos se enroscaram em felicidade plena e amena, dessas de comercial de remédio para dor de cabeça. Foram vistos depois num boteco de beira-mar a comerem torresmo e couve. Creiam, enfim, que fim feliz também há pra se narrar. Na avenida defronte um velho sonhador joga para Iemanjá a sua derradeira flor.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Por quê?

 Por Ronaldo Faria


-- Aonde ir? Ir por quê? Seguir estradas com suas pedras, seus pós, suas distâncias, sóis e chuvas. Pra quê? De que poderá valer tanto esforço tosco se logo depois o fim é o mesmo, sigamos ou não? Haverá braços estendidos, mãos repletas de carinhos e aninhos, perplexas a enxergarem o fim da trilha? Existirão perdões para os erros, consertos para os tropeços, olhos a sorrirem às lágrimas derramadas? Cálidas faces serão aquilo que de último veremos, plenos de dúvidas e dívidas consigo mesmo?
Carmelo, verdadeiro flagelo em si nos devaneios e receios abissais que invadem seu mundo entre o acordar trôpego e um dormir embriagado de saudades e veleidades, está parado na esquina a soprar as pétalas que caem das árvores desnudas de galhos. Aos orvalhos incontidos deixa o rosto para que sua face possa ruborescer de frio e toscas nuvens entre cinzas da queimada tardia e aves paradas no ar. Ao longe, num canto qualquer, o seu lar.
-- Valeu tudo o que já foi escrito e feito? E para onde foram os enfeites e confeitos de Natais e aniversários passados, deserdados e em degredo feito os porcos que serviram de assado e sorveram bocas e dentes ávidos de cheiros e temperos? Quando o barco, tragado em tragos de vinho e vagas de ondas e suas correntezas, deixou o rumo e foi no prumo errado desandar sua fé? Os amores, seus mil atores e detratores, suas intermináveis dores, Marias e Dolores, estarão hoje ainda vivos em cores vivas da aquarela jogada no asfalto em esparrela?
Carmelo, prosaico viajante de sua própria existência, na querência diuturna da carência soturna, senta no banco defronte do mar e vê a lua brincar de espumas que desembocam em dunas que as marés destruíram em lamúrias. Seus sonhos e pesadelos, desmazelos, jusantes que nunca desembocaram nos istmos da alegria da avó que cerzia as calças rasgadas entre palavras e risadas, sob a luz de uma lamparina vítrea, são objetos atirados num baú abjeto que o casal do país distante deixou para seu futuro mudar. Ao som dos minutos que ainda lhe restam, mísero candidato no sufrágio que nunca existirá para conquistar o pleito da plenitude, apenas escreve, reescreve e descreve a paisagem da janela... cavaleiro marginal.
 
(A Milton Nascimento)

Na viagem

Por Ronaldo Faria Viajante de suas loucuras diuturnas, quase equidistante entre a vida e a morte, Januário persegue qualquer polis que vire ...