sábado, 31 de agosto de 2024

Com o Rappa e seus holofotes, Chico Science

 Por Ronaldo Faria


Hostes haverão de descer pelos paralelepípedos e subir as ladeiras de Olinda. Nos arrecifes da vida que brinda com sons, odores e flores a manhã que virá, o tempo que a si mesmo arrefecerá. A turba invadirá a imaginação geral e chegará para se largar. Dançará enlouquecida com a maresia que se joga na dança tresloucada e irá descobrir que a rima não depende do versejar. Que sai das entranhas por mais estranhas que elas possam ser. E surge, urge, se atira menina e voa mulher para a entrega que floreia a mais pura ou impura cercania que a emoção do outro faz. O olhar diferente é que descobre o quadro disperso em fotogramas que invadem o sorriso e o drama. No meio de tudo, a trama. E terá sido real, ungida de paixões remidas ou pecadora do apenas querer? Das hostes que descerão de um alto tão baixo que poderíamos antever se fôssemos senhores de nossas vidas, uma estrada escancarada para viver...
 
Jozelieltom, morador daquilo que era palafita, lama ou caos, caminhava nas ruas da capital e entreolhava as pessoas que o olhavam com medo de ver a realidade do mundo estremecido.
-- De onde terá surgido tal ser? – perguntava-se a mulher com brincos, pulseira e colar coloridos de ouro a brilhar no sol escaldante.
Vindo do mangue, Jozelieltom seguia sua barriga vazia, onde nem azia sabia parar e chegar, para ver se eles conseguiam um aratu qualquer. A mulher cheia de joias, seus olhos sequer viram. A fome pesa mais do que meia dúzia de milhares de dólares. E o que é um dólar? Significado da dor de um lar ou algo que se diz que existe para cobrar cada sonho esquecido em chiste?
A andar meio liquefeito e rarefeito, ser lunar, Jozelieltom  subia e descia ladeiras. Suava a bicas e cântaros. Entoava canções que celestiais anjos decaídos criariam músicas em sol sustenido para as mais desnudas mulheres do lugar reverenciar. Afinal, acima da beleza feminina há algo mais para saudar? Certamente, em mente, não há. Ao redor, a cidade brilha em letreiros picantes e piscantes, terreiros largados em orações e unções de quem busca a eternidade, voláteis e táteis féretros que surgem a cada instante. Para ver Jozelieltom, pouco há. Talvez um guarda que quer descontar suas angústias bestiais num ser qualquer, um infausto ser que teme a própria sombra, um poeta enlouquecido de fumaça da boa ou cachaça. Ao fim de tudo, mudo, ele se atira ao seu mundo e pensa porque, ao invés de Jozelieltom não se chamou apenas Raimundo.


quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Lembranças... ao som do passado.

 Por Ronaldo Faria


Lembranças anchas feitas em mil ancas, trovoadas em trovas desvirginadas nas nuvens tantas. De tempos atrás, onde se discutia se a carta ia atrasar ou chegar. Se a ficha cairia antes da chamada completar. Se o ônibus, que dormia cedo, só iria passar quando a madrugada reluzisse de fato. Perdeu o último, o banco da praça era o lugar.
Lembranças tantas em tetas que invadem até hoje uma boca com gosto de gim e pinga. Mulheres alhures que dobram seus cabos em boas e raras esperanças, no corpo do poeta que sente dores e revê em odores lajeiros que afloram em rochas. Nas músicas e madrugadas, poesia revivida e afinidades que remetem a mil e um tantos lugares.
Lembranças de bares noturnos onde notívagos taciturnos se largavam para a vida levar entre copos de cerveja, doses e, quiçá, uma cópula com o amor a se viver. Trejeitos refeitos de toques emblemáticos, vozes vorazes a digladiar a tênue divisão entre a vida e a morte. Mas, nalgum lugar obuses mataram a fragrância que a madrugada louca exalava.
Lembranças de um acordar no escuro e clarear entre dentes e línguas a mais dormente e profunda paixão que a rotunda de um teatro nunca fez drama ou comédia, na mais comedida e desmedida incerteza da felicidade. E viajar em reentrâncias, distâncias, nuances e sons que ficaram, cenas que se eternizaram, volúpias à mostra do que foi e eternizará.
 
Lembranças, tantas
Catanças e dramas
Palavras, poesias atadas
Larvas besuntadas
Futuras dores tragadas
Nelas mesmas, nada
Talvez a chama que arde
Uma amarga saudade...

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Nos tempos detrás

 Por Ronaldo Faria


No fundo do salão de uma corte qualquer, a salpicar de salamaleques e solidões, sob uma luz tênue das velas que embriagam de cheiro o lugar, Candelária e Baltazar se beijam sem parar. Uma orquestra madrigal pífia e lunar toca notas dissonantes ao amor de ambos que vicejam passos a rodear à espera de se deitar.
Como as línguas quentes que se uniam seculares em línguas de décadas várias atrás se tocavam? Eram as que adentram a garganta a lamber todo o céu da boca alheia que se floreia aberta ou ficarão apenas na chegada dos primeiros dentes? Como Candelária e Baltazar viviam seu amor em descompasso e torpor?
Na estapafúrdia lamúria de quem por sinal se deixa achar na invejosa balbúrdia que a cabeça dá, a imperiosa crença de que taças de vinho trarão o sinal final da corpórea comunhão. No salão, olhos se entreolham, desejos incorporam e o universo conspira nos corpos que transpiram sob vestes que não param de suar.
Como serão os momentos voláteis e fátuos que, de fato, se farão? Roupas serão rasgadas, perucas serão jogadas ao chão, pedidos de “por favor tenha calma” antecederão o estupor? A penetrar corpo tão desejado, o amante gozará antes da dama ou irá, respeitosamente, ouvir seu grito de tão desejo chegado e refeito?
Candelária e Baltazar agora se negam a pensar ou relutar àquilo que os consome a ultimar. Deitados na grama que serve de cama, dão à primazia da vida seu amor que da carne fez-se real. Logo mais, num tempo em que o relógio inexistia, o sol voltará. Entregues, sem vestes, os raios primeiros virão os corpos lhes abençoar.
Para onde, após o coito afoito, partirão? O salão ainda tem um ou outro casal a dançar na melodia tardia do menestrel que não sabe mais diferenciar acorde de fel? Dirão aos seus pares de verdade que foram abduzidos por goles de vinho a mais? Ou serão, alhures, só personagens de taças numa noite efêmera que se faz?
 
(Ao som barroco de sua música)

domingo, 25 de agosto de 2024

Música pra viagem

 Por Edmilson Siqueira

 
Tem música pra tudo. Há uns dez anos, ou mais, ganhamos de presente um CD de uma amiga da Zezé que morava em Santa Barbara (assim mesmo, sem acento, porque fica na Califórnia). Ela veio visitar a família por aqui e deu uma passada em casa, para rever a amiga e entregar a "lembrancinha".
O CD é uma coletânea pop om algumas pretensões de rock: "Song for the Open Road". "Música pra viagem" numa tradução livre. Claro que a capa sugere um carrão conversível com uma loirinha de cabelos esvoaçantes e ainda há fotos internas de uma velha bomba de gasolina meio enferrujada, um pedaço do mapa do centro dos EUA e, na contracapa, a foto de um asfalto que se perde no infinito, tudo sugerindo the long way from home.
O CD é de 2004 e acho que não foi lançado por aqui, pois só encontrei o importado na internet. Mas é barato.
O detalhe mis importante disso tudo é que a seleção é muito boa. Claro que são músicas que já fizeram sucesso em tempos mais ou menos recentes e, a gosto de programador, podem servir de fundo musical, um bom fundo musical, claro, para encarar uma estrada sem fim, tipo Rota 66, lá nos States, ou uma BR 101 por aqui, que vai de Recife a Porto Alegre.
Evidentemente só o CD não dá nem pro começo da viagem. Mas o tipo de música nele inserido ajuda a sugerir outras mais ou menos parecidas para o tempo passar de modo agradável enquanto os pneus comem o asfalto infinito.
A seleção abre com "Brown Eyed Girl", do grande Von Morrison. É rock, sem dúvida, que fala da saudade de uma garota de olhos castanhos, of course, e que ajuda a enfrentar os primeiros quilômetros.  
A segunda faixa é de uma banda chamada Stealers Wheel. O Google me informa que foi uma banda escocesa de folk rock/rock formada em 1972 em Paisley, Escócia, pelos ex-colegas de escola Joe Egan e Gerry Rafferty. Seu hit mais conhecido é "Stuck in the Middle with You". Pois é exatamente essa música que foi escolhida para a viagem. Um roquinho gostoso de ouvir.
A terceira faixa é para quem já estava querendo um hit para melhorar a paisagem. Eis que entra Elton John com seu piano travestido de "Rocket Man". O refrão, que começa com "And I think it's gonna be a long, long, time..." ajuda a lembrar quanto asfalto ainda resta e, quem sabe, animar ao cantar a gostosa melodia que Elton sempre soube tirar de suas inspirações mais variadas. 
Depois de escoceses e um inglês, um rock que louva Alabama serve para voltar ao chão da Route 66. Trata-se de Lynyurd Skynyrd cantando "Sweet Home Alabama". Eu posso não conhecer a banda, mas são bons, a música é boa e eles já venderam mais de 50 milhões de discos. Um desastre de avião desfez a banda em 1977, mas outros músicos se juntaram aos que sobraram e, em 1987, voltaram com tudo. Tanto que estão até no Hall da Fama do Rock And Roll. 


A faixa seguinte viaja para o Canadá para trazer a Bachman-Turner Overdrive, com um de seus hits, "Take Care of Business". Mas a banda tem muitos sucessos e chegou até a primeiros lugares nas paradas dos EUA e do Canadá. A música é um dos seus hits e, garanto, é boa de seu ouvir.
The Bellamy Brothers, uma dupla country da Flórida, surge na sexta faixa com uma canção mais suave, "Let Your Lov Flow". A dupla é de irmãos mesmo e o sobrenome deles é Bellamy. A música é um dos seus primeiros hits, de 1976 e ajuda bastante a enfrentar a estrada.
A partir da sétima faixa, o produtor acho que resolveu encher de ânimo os viajantes, programando grandes sucessos mundiais do rock e do pop. O primeiro deles, na sétima faixa, é nada menos que "American Pie", de Don McLean, aqui numa versão reduzida, já que o original tem mais de sete minutos. Mas assim mesmo é muito boa.
Depois, outro clássico do rock: "Wild World" de Cat Steven, música que não precisa de comentário algum. Quem nunca ouviu, que trate de ouvir. 
Outro clássico - com qualquer música - entra na nona faixa: Rod Stewart com sua "Maggie May". 
Aí terminam os clássicos e entre um grupo chamado 10CC canta "The Thing We Do For Love". Pra quem não sabe, o grupo é britânico e já gravou, desde 1976, dez discos de estúdio e oito ao vivo. A música é bem rock inglês dos anos 1970, agradável e que dá vontade de cantar junto. 
Dobie Gray se incube da faixa número 11, a famosa "Drift Way" que Mick Jagger gravou com David Bowie. Dobie não fica atrás das duas estrelas do rock, mas canta um pouco mais comedido (obviamente), o que não estraga o resultado.
"Show me the Way", caso você esteja meio perdido na estrada, é a décima-segunda faixa, com Peter Frampton que, com certeza, ajudará você a encontrar o caminho com esse que foi um de seus maiores sucessos.
A faixa 13 é de outra banda canadense que fez sucesso no hemisfério norte nos anos 70 e 80: Five Man Electrical Band. Eles cantam "Signs", um sucesso exatamente de 1971.
Por fim, Jim Croce, encerra os trabalhos com a agitada "Bad Bad Leroy Brown", um de seus poucos sucessos, pois, infelizmente, ele e sua banda sofreram um acidente aéreo fatal em 1973. Mas, apesar da nota triste, a música é pra cima e ajuda a melhorar o clima.


sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Beijar é boca ou loucura demais?

 Por Ronaldo Faria


A despedida foi um beijo rápido, quase iconolátrico. Desses que a gente dava nas esquinas dos Anos 70 de um século atrás. Fosse na boca da amiga colorida ou do amigo da vida. Como certeza do fim, a presteza bucólica que nem a cólica mais forte traz. Na mesa de madeira, onde fórmica não há, o incrédulo crer que a noite irá amanhecer. Em volta, a voltear num ir e vir sem sentido, o claustro onde as virgens do amor se descobrem entre flores e pedidos de dor.
 
-- Truta, pra você é tudo puta?
-- Qual é mano? Ficou doido sem cheirar ou fumar? Nunca disse isso.
-- Esquece. Você não disse. Eu sei. Mas não tem pra você uma que sirva?
-- Claro que tem. Mas ficou bem pra trás. Se fosse de agora, talvez também fosse jamais.
-- Quer dizer que o que vira no agora é foda demais?
-- Pode ser. Afinal, a gente só conta à história que se faz, não aquela que não se fez.
-- Tá certo. Nessa resenha não tinha mesmo que me meter.
Maurício do Cavaco e Leonardo da Pulga estavam sentados tentando escrever o samba-enredo da escola querida.
-- Vale colocar na letra a Verônica que fez a chapa esquentar?
-- Nem pensar. Isso é samba de avenida, não é história de quem se tentou comer.
-- Tá certo. É preciso pensar no enredo. Mas “Baile florido na maestria da Iemanjá do mundo corrido” não cabe umas mulherada safada?
-- Não. Nosso corre tem de ser longe do asfalto profano. Temos que pensar nas fantasias, nos carros alegóricos. Você imagina um carro com a cara da Maria da Folia? Da Gracinha da Orgia? Das meninas da casa da Dona Leontina? Não! Tem que ser coisa da vida da comunidade. Que chegue pra qualquer idade ou jurado.
-- Cê tá certo. Pode crer.
-- Seu Manoel, manda mais umas pingas pra abrir o nosso pensar! Põe na conta da escola! Quer dizer, se a gente ganhar.
-- Você soube do Zé Meleca? Xingou pra caralho um cara que nada tinha a ver com a dor dele. Só porque chegou travado e pediu um café e o cara não tinha pra dar. E o tal carinha, coitado, tinha acordado a acreditar que a vida tinha algo pra dar. Foi um monte de merda que ele falou.
-- Esse Zé Meleca ainda vai encontrar um cabeça quente que vai pipocar geral. Quem sabe assim, num pé de página, ele não sai no jornal?
-- Mas ainda existe jornal?
-- Sei lá! Nunca comprei. No máximo peguei emprestado de um miserável que não sabia ler.
Ambos os dois, como se falaria na trama a se falar, escrevem no papel as rimas e as notas a se contar e cantar na passarela.
-- Esse tal de Niemayer era brasileiro pra fazer a passarela do samba?
-- Sei não. Deve ter sido um gringo que queria comer nossas passistas e colou feito parasita no governador que ganhou uns vários por cento na jogada.
-- É. Deve ter sido. Saravá e Oxalá rima. Vamos meter no samba.
-- É nós. Tá posto!
-- Ô Manuel, larga a caneta que dobra o pedido e traz umas geladas pra nós na manha.
No alto do morro, onde a lua chega depressa, a pressa da dupla em encerrar a canção que pode explodir na avenida, com povão e gente qualquer a cantar, vira necessidade primordial. O julgamento da agremiação será logo perto, decerto e presto.
-- E aí, Pulga, você acha que virou legal?
-- Sei lá, Cavaco. Agora é entregar pra Deus e os santos na Terra. Se não der certo, no ano que vem vamos tentar outra vez.
-- Aí você acha que cabe a Verônica?
-- Puta que pariu. Tu vidrou nessa preta!
-- É que você não sabe o cheiro que ela exala. É coisa de Exu, Pomba-Gira e o que tiver de ser.
-- Vamos crer que esse ano vai virar. Se não for, vamos descer a Sapucaí na mesma treta.
-- Com certeza. É botar fé em quem ganhar. O importante é a escola arrebentar!
--Manoelito, manda outras e algumas. Na ruma e na rima que brota de nós, alguma truta ainda vai fisgar nossos anzóis.
-- Caralho, puta frase. É nós! Põe no samba de 2025. Com esse a gente vai ganhar!
 
(Com Evandro Fióti)

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

A falta que algo faz

 Por Ronaldo Faria

 


“Que falta faz o óculos para escrever. Que falta fazem os ósculos e óvulos para se viver.”
Jerônimo, homônimo daquilo que se quiser crer, pensava: “Venha o que vier, tamo junto!” Ele era apenas mera e rara realidade. Cansou de crer em santos, Nostradamus e sânscritos escritos perdidos numa tumba qualquer. Seu acreditar agora era de um finito minuto. Mudava a cada hora de nova oração. Devoto do tempo ateu, onde a pessoa se dá bem ou se fodeu, passeava nas nuvens de pungência etérea que só a Terra dá. A noite agora por fim se enternece e chega reluzente e crente de que é eterna ou terna pungente ao poeta louco de se embriagar de canto ou verso lindo.
Jerônimo, heterônimo de si mesmo, bastardo tragado na nostalgia que a jia coaxa até ser comida pela jiboia, sabe que logo ali defronte está a tardia chegada que desce a ladeira como fosse uma ruma de filhos de Gandhi. Mas, nesse momento, de tormento e lamento, tanto faz como se fez. O feio ou bonito em algo se se tornará. Para ele, estar aqui ou em Bagdá, pouco o texto formatará. Nas bombas que explodem sempre pelos lados de lá, a dor sincroniza o ultimo sopro de vida que ecoa no luar. Enfim, os derradeiros raios de luz fazem solfejos de fim da dor. Daqui para frente, no enfrentamento de si, Jerônimo delimita a linha da lucidez e do torpor. Não haverá certeza ou louvor.
Na esquina, dessa onde a quina já machucou muitos bêbados em quedas por demais, alguns alguéns brincam de goles mil derramar. Certamente, no alto do mar, no ato do amor, o vasto envolver de pernas, ventres e braços. A envolvente incerteza que a certeza da incerta volúpia dá. Um tanto de tântrico querer, um esmero de cadafalso que o viver falso traz vozes e frases atrozes em artroses milenares. No poste que posta como luz a quirela de emoções e canções mil, milhares de insetos buscam a morte no iluminar longe do luar. Na festa que o infausto da soberba traz, vêm as vestes da seminua Camélia a quem Jerônimo quer entregar seu coração. Os seios fartos, parcos para quem não os beijou, as pernas que guardam no meio o anseio fugaz, o corpo translúcido a dançar na madrugada fria. No ensejo, o certo e o abstrato. Enfim, um ato. Substrato no trato de um câncer que foge de si para a morte do mesmo alguém.
A fugir das linhas certas e decrépitas da rima lunar, Jerônimo, que não é rei de nenhum sertão, caminha feito Pero Vaz de Caminha, a escrever asneiras de que em plantando tudo dará. Certamente, um dos poucos letrados de poucas caravelas no além do além-mar, pensava descrever o que via ou a loucura que viveu nas milhares de léguas que mil éguas não teriam feito por antes morrerem afogadas. Mas, se não houver sonhar, de que vale o próximo acordar? Jerônimo, longínquo ser que não veria a luz elétrica tudo esplandecer, ao menos vivia sua falácia de no porto mais perto chegar. Nele, holandesas, suecas, islandesas, francesas e quem mais mulher for, estavam a esperá-lo, saído do ralo dos mares navegados. Feliz, prostrado na mesa da taberna, com canecas de vinho derramadas, enfim encontrará a sua amada. “Pode, neste ser, ao menos dar uma mamada?” Essas, dizem, foram suas últimas palavras. No ancoradouro próximo, outras galés emergem e submergem para o novo mundo buscar.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Tony Bennett já era bom há 65 anos

 Por Edmilson Siqueira


Há cerca de um ano morria, em Nova York, Anthony Dominick Benedetto, mais conhecido como Tony Bennett, aliás, mundialmente conhecido como Tony Bennett, um dos maiores cantores que já passou por esse planeta, com uma carreira irretocável por mais de 70 anos. 
Seus grandes sucessos são bastante conhecidos pelo mundo afora. O que talvez poucos saibam hoje, é que ele sempre foi muito bom. Aos 25 anos, em 1951, teve seu primeiro disco alcançando o topo das paradas norte-americanas: "Because Of You" ficou dez semanas na parada e vendeu 1 milhão de cópias.
Seu estilo então é o mesmo que levou ela vida toda: canções pop e muito jazz. E não era fácil despontar como um grande cantor naquela época. Seu maior concorrente era ninguém menos que Frank Sinatra. Tony, porém, tinha estilo próprio e gravou vários tops hits como “Rags to Riches”, no início dos anos 1950. Em seguida, refinou ainda mais a sua técnica vocal para abranger jazz singing. Ele chegou a um apogeu artístico no final dos anos 1950 com álbuns como “The Beat of My Heart“ e “Basie/Bennett - Count Basie And His Orchestra Swings/Tony Bennett Sings". 
E, para não dizer que não falei do seu megassucesso, em 1962, Bennett gravou sua canção mais famosa, “I Left My Heart in San Francisco”, música de George Cory com letra de Douglass Cross, que até hoje é programada em todas as estações de jazz do mundo inteiro.  
Mas é o citado acima, que ele gravou com a Orquestra de Count Basie, que estou ouvindo agora e posso garantir que se fosse gravado hoje não seria muito diferente. Excelente gravação de um grande cantor com uma orquestra espetacular. Tão espetacular que Count Basie gravou dezenas de discos somente com sua orquestra e com ela viajou pelo mundo. 
Um disco gravado nos dias 3 a 5 de janeiro de 1959 nos estúdios da Capitol em Nova York mantém, 65 anos depois, toda a qualidade sonora mercê a qualidade dos envolvidos.   
Na sua autobiografia, "The Good Life", Tonny Bennett relembra essa gravação: "Embora eu tenha falado com ele por telefone, não conheci Count Basie até que nossos ensaios começaram. Foi uma experiência incrível, a realização de um sonho, e nunca vou esquecer. Nós nos demos bem imediatamente, como se sempre nos conhecêssemos e nos entendêssemos. Em um momento, Basie se virou para sua banda, apontou para mim e disse: ‘Tudo o que esse homem quer, ele consegue!’ Fiquei chocado."
E só poderia ter sido num clima muito bom que tudo aconteceu. Em 12 faixas, os dois demonstram que nasceram para a música e, com ela, não apenas viveram suas vidas, enriqueceram e, com certeza, foram felizes, mas também proporcionariam a milhões de ouvintes o prazer de ouvir sempre um ótimo trabalho.


As doze faixas do disco são as seguintes:
1 - Life is a Song (Ahlert - Ypung)
2 - "With Plenty of Moneys and You" (Dubin - Warren)
3 - Jeepers Creepers  (Warren - Mercer)
4 - Are You Have any Fun (Fain - Yellen)
5 - Anything Goes (Cole Porter)
6 - Strike Up the Band (G & I Gershwin)
7 - Chicago (Fred Fisher)
8 - I"ve Grown Accustomed to her Face (Lerner - Loewe)
9 - Poor Little Rich Girl (Noel Coward)
10 - Growing Pains (Schwartz - Fields)
11 - I Guess I'll Have to Change my Plans (Dietz - Schwartz)
12 - After Supper (Neil Hefti)
O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=GsxHUyGOXi4 

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Caetano e Gil

 Por Ronaldo Faria

 


Aborígenes de uma terra perdida, fodida, ardida, maldita, mal vista, quase fascista. Paralelepípedos de uma estrada inaudita onde ninguém passa ou sequer crê que haja saída. Forasteiros em fortuitos e quase poemas, quiçá mero fonema perdido, são a barbárie da solidão e da servidão. Senão, como diria o poeta, meros araçás e bananeiras. No universo que o verso traz, transverso epicentro do maculelê. Na fresta do sol que resta, a retidão da poesia se acomete de minúsculas letras para virar algo factível. Certamente, o primeiro hominídeo terá dito em rima seu amor à amada que não entendia, porém, nada além da noite tardia. Hoje, quase mesmo e assim igual, em assimétricas e estéticas práticas, um pedaço de Méier e outro do Leblon se juntam a humanizar a saudade tardia.
Veganos no mar de sangue que escoa pelos bueiros das ruas vilipendiadas e navegantes bastardos e afogados em turbilhões de emoções e unções, surgem os salvadores da pátria apátrida, partida em poucos pedaços de corpos triturados e calcinados, esperanças vivas e viúvas de mantras forjados ao acaso. Neste caso, os prazeres têm cheiro de bosta e jasmim, a depender dos narizes e do jeito carmim. No entremeio que o veio não traz ouro, o absorto aborto do bem-querer. Talvez uma lua tímida, a ferir as nuvens que não se fizeram de chuva úmida, a tez brejeira da mulher derradeira, a fome que o mundo nunca saciará de sorver. O sofrer é quimera e espera de esperança morrer. Nos passos derradeiros, o coito salvador que a realidade, maledicente, chama de soberba e estrupício.

sábado, 17 de agosto de 2024

Descobrindo Mariene de Castro

 Por Ronaldo Faria

 


Já dizia o poeta que aroeira que bate em Pedro bate em qualquer um, de presto. E se não disse, certamente gostaria de tê-lo feito, sobre Pedro, o bíblico santo, ou no resto. Na rua, nua de gente e ausente de qualquer amor, um pé de amora mora solitário defronte da esquina que leva ao mar e sua moradia, um oceano que junta e afasta continentes e traz brisa boa e maresia.
Nesse ínterim, itinerante do mundo, estava Deocleciano. Disseram que seu pai assim o quis para juntar o nome de seu avó – Deoclécio – ao oceano que nunca vira. Homem de poucas patentes na guerra da vida e nos exércitos que viajavam ofegantes pelo destino, ia tropicando entre os trópicos que as pernas bambas criavam a cada nova passada. Se norte ou sul, pouco importava.
Para Deocleciano, a perda de ser era diuturna lição desde o amanhecer. Dormia com os erros do dia, tinha pesadelos mil, com enredos loucos e hollywoodianos. De vez em quando, surgia uma linda dama com seu entregue ânus. Noutras, apenas uma fuga eterna dessa que se mostra em toda a terra. Mas se isso era viver, ele estava no enredo e no descalabro que, calados, eram caiados de sofreguidão.
Ser efêmero, de destino negado e naufragado há muito, fortuito caminhante nas trilhas de falácias e poucas acácias, era um querubim. Senão, demônio que alguns chamariam de Sinfrônio – o dono do som sinfônico que traz com o mar. Mas, para quê questionar? O melhor era esperar num parapeito qualquer a lua chegar. Senhor de si, sem saber o fim que virá, brincava de querer rimar.
-- Deocleciano, vai ficar aí, deitado embriagado, na porta do bar que já está fechado?
Ele sequer ouviu a frase de Machado, seu parceiro. Dormiu a sorrir como se fosse um preto na demanda do reino de qualquer gueto livre e guerreiro. Estaria no Brasil ou em Luanda? O som que lhe chega é dos atabaques ou de uma banda? Nesse canto há realejo? O que o pássaro preso lhe daria de destino? Na casa perto, Maria balança a cabeça de pena. Essa nunca descobrirá a sentença.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Ele e ela, no forró

Por Ronaldo Faria


Ele e ela, Marivaldo e Lisbela, dançam agarrados e atarracados no pouco salão. Um xote descompassado se arrasta no chão que recebe as notas do sanfoneiro e no batuque do triângulo e zabumba. Longe da terra da rumba, parecem dois dançarinos de qualquer tragédia grega a se rir da flor que cai do pé de tangerina.
Ele e ela, dois a brincarem de doar o dízimo do amor, entregue a qualquer maledicente pastor, viviam seus passos a se cruzarem e revirarem pernas e desejos. No ensejo que tem mote até na onça mais ferina, subiam e desciam no céu que vive diante da retina. No rosto dele, no rosto dela, metamorfose de uma incoerente quimera.
Ele e ela, Marivaldo e Lisbela, mistura de mar e Oswaldo, Elisabeth e coisa bela, nem se lembravam de que a vida é só passagem e logo ali, noutra paragem, outra paisagem far-se-á. Com certeza, o forró não existirá, o trio que toca agora será apenas tempo frio e a melodia, ao contrário de uma orgia, pedirá fim e muita agonia.
Ele e ela, a verem jorrar água de moringa nos corpos suados, aguados nas ondas de um amor distante, equidistante ao traçado planejado do destino, vão ao desatino na rima de um chororô. Mas agora, nessa hora, o que conta é rodopiar e se atirar no mundo da ilusão. Se já são, o serão. Corpos colados, agarrados e atarracados no salão. O que virá depois? Nesse momento, unguento do amor, pouco importa o que a porta da casa de forró lhes dará. Outra vida, decerto, se tudo der certo, mesmo nessa vida finda um dia virá.
Do palco o sanfoneiro pede uma pausa para fazer xixi...
 
(Aos grupos de forró)


quarta-feira, 14 de agosto de 2024

O Maestro da Rua

Por Edmilson Siqueira

 

Em 2001, Zezé e eu realizamos nossa primeira viagem internacional juntos. Ela já conhecia Londres, onde havia passado um ano fazendo um curso de inglês bem antes de me conhecer. Em ternos "internacionais" eu tinha ido uma vez, de ônibus, até o Paraguai, naquela cidade da fronteira para comprar muamba... bem, não pode ser chamada de viagem internacional...
Mas em 2001, tomamos coragem, compramos as passagens, reservamos hotéis, compramos alguns travellers cheques (alguém aí se lembra do que era isso?) e partimos para a Europa. Roma, Paris e Londres (lira, franco e libra eram as moedas, o euro só viria no ano seguinte, a libra continua até hoje) era o nosso roteiro. Um mês longe de casa.
Mas como esse não é um site de turismo, vou logo ao assunto. 
Passeando por Londres, mais exatamente no Vitoria Embankment, um conjunto cultural, ao lado do Tâmisa, inaugurado em 1951 pelo então príncipe, hoje rei, Charles, encontramos ali, embaixo de uma árvore, um senhor numa cadeira de rodas, tocando um clarinete suave e bonito. Com um equipamento que reproduzia um acompanhamento simples, ele fazia solos e improvisos jazzísticos. Paramos pra ouvir. Numa pequena prateleira no chão, vários CDs. Chegamos mais perto e vimos que eram discos dele, à venda ali. 
Timidamente, tentei levar um papo, disse que éramos do Brasil e se ele tocava alguma coisa de Jobim. Antes de dizer se tocava ou não, disse que tinha uma relação muito grande com o Brasil: era casado com uma brasileira. E, claro, Jobim estava no seu repertório, como provou logo depois tocando "Wave".
Seu nome artístico e apelido era Teddie. Como explica o texto na contracapa do CD, Edward "Teddie" Hook nasceu na pobreza, em 1924 (se estiver vivo - não encontrei referência alguma a ele na internet - estará completando 100 anos) e foi criado num orfanato. Seu talento para o clarinete foi logo descoberto e assim que pôde foi trabalhar profissionalmente em bandas de baile e, depois, em shows em cabarés. Logo se tornou um comediante de sucesso e multinstrumentista. Tinha tudo para uma carreira de sucesso, mas em 1980 sofreu um grave acidente de carro que o levou, depois de um bom tempo de recuperação, a depender de uma cadeira de rodas. Essa recuperação teve a grande ajuda de Tercila, sua mulher, a quem o texto nomeia como "uma charmosa brasileira". 
Da descoberta toda ali no Embankment, trouxemos um CD dele que se chama, mui propriamente, "Pavement Maestro!" ou "Maestro de Rua" numa tradução livre.
Acompanhado de piano, bateria e contrabaixo, Teddie desfila tranquila e talentosamente com seu clarinete pelas 15 faixas do disco, das quais duas são de sua autoria: "Big Brown Eyes" e "Coração do Amor", assim mesmo, em português, com certeza dedicada a Tercila.
Pelas outras faixas descobrimos clássicos do jazz como "Unchained Melody", "Let's Fall in Love", "Alfie" e "Satin Doll"; um clássico - "Bolero" de Ravel - e outras canções menos conhecidas, mas todas agradáveis de se ouvir. 
Infelizmente, o CD não pode ser encontrado por aí. Talvez a venda sempre tenha sido feita por ele mesmo, ali no parque ou em apresentações em outros locais, direto para seus fãs antigos ou eventuais que, como Zezé e eu, nos encantamos pela qualidade de sua música, pela doçura de sua conversa e, depois, passamos a admirá-lo ainda mais pelo que sofreu e superou. Mesmo numa cadeira de rodas, continua distribuindo, a quem quiser ouvir, seu talento ao som de um clarinete muito bem tocado, como um maestro da rua.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Asdrúbal e o nosso trombone

 Por Ronaldo Faria

 


A onda rebate na areia que agradece o arrefecer do calor que a queima ao sol causticante. A lua, que brilha nalgum lugar do céu, não quer nem saber de chegar. “Com esse bafo a brotar na Terra, não sou nem louca de entrar em órbita”, pensou.
Mas num canto onde o instantâneo não é uma linha de fogo e a sombra de um e outro coqueiro faz de esmero uma brisa mínima, o casal crê que o amor ainda é provável. No afável toque de mãos, surge o abraço. Depois, a lambida e o afago.
Um trago de cachaça jogada no limão para amenizar e brincar com pedras de gelo, o enlevo que antecipa as tempestades, a rara saudade. Nos corpos desnudos e suados, mil cabeças, pernas, braços. Cafuné pra dar um pouco de carinho e de fé.
No céu, a se rir e esbugalhar os olhos para assistir o homem e a mulher, o sol até pensa em diminuir para não atrapalhar o amor. Mas qual, sacana, senhor do apocalipse fetal, prefere fazer de seus raios um arraial de danças que emergem das brasas.
Assim, a derreter as últimas neves do Himalaia e do Nepal, a cantar seu próprio hino nacional, o astro rei chama novas chamas para iluminar a apoteose letal. No seu cantinho, o casal finalmente goza em orgasmo total e fatal. O sol? Ele, esse cretino, descobriu por fim que de nada adianta querer escrever todo o final...

(Ao Asdrúbal Trouxe o Trombone)

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

A cor dos cheiros, no samba

 Por Ronaldo Faria


Incenso de rosas amarelas para Exu Bará a queimar e exalar. Odor de dor e esperança. Afinal, abaixo do quadrilátero que existe entre a lucidez e a loucura, pouco há ou haverá Talvez um axé calado e exalado dos poros que suam ebó e marafo. Nos portos perdidos de Angola, Maria Conga dava ao menino os ensinamentos certos para desbravar o coração da índia que dançava linda no salão.
José, rapa de um tacho cheio de pormenores e tristezas, como se a vida pedisse perdão permanente na mente, ao menos estava em encontro consigo mesmo, na mata que escondia a cachoeira que desce em cascatinhas da pedra que existe há milhares de anos. E foi o beijo primeiro, a língua enroscada, a fábula desnaturada de amor desvairado no telefone que pedia linha para discar.
Incenso a se desdobrar em voláteis texturas de crendices etéreas e efêmeras saudades. Num ônibus qualquer o motorista exorciza seus medos a correr quilômetros em efemérides do tempo que o Rei mandou e a vida parecia não ter desamor. Na memória, a eufórica tragédia que a ilusão guardou para se fazer blasfêmia. Na ilusão da felicidade, a iniquidade daquilo que o nevoeiro escondeu.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Rio e Pirajá, no samba

 Por Ronaldo Faria

 

Batuque no boteco traz saudades e arritmias, vertigens e blasfêmias mínimas. Semínimas ínfimas. “Desce um chope, chega outro, que venha mais um e tantos mais.”
-- A chopeira esvaziou. Pode mandar umas Brahmas? Com direito a saideira...
-- Fazer o quê. Não tem um, vai outras...
Na mesa, reminiscências, dormências, sofrências, parcimoniosas inocências. Gente a trocar olhares, alhures desejos. Fabrício e Jennifer olham para o céu que brilha azul chapiscado de nuvens brancas e disformes, nas mil formas que o vento lhes dá. De algum lugar um cambono grita na gira que o saravá é de Exu. Na mesa ao lado, um homem diz que graças a Deus, Oxalá.
Um partideiro resolve colocar a voz para sambar e soar e logo a morena mais brejeira sai a dançar. Outros tantos loucos da vida, em caixas de fósforos ou latinhas vazias, harmonizam a falsa dramaticidade da cena carioca. Há quem cante junto, quem evolua longe do sambódromo, num asfalto só seu, quem voe entre falsetes e notas complacentes nos quatro dias de folia. No caixa, Felismino reclama do preço da dose e diz que vai levar para o Procon “a absurda verdade da exploração do povão pelo português invasor”. No fim da discussão, vai tudo para a pindura que já soma mais papel do que goles tragados.
-- Moçada, vamos reduzir a sede. O estoque está indo pro cacete!
Fabrício pega Jennifer pelas mãos e começa a girar feito volta e ida, ida e volta. Aos poucos, grudam os corpos, se beijam em línguas e lânguidos desejos desesperados. Volta e meia se deixam parados para viverem às entranhas as estranhas fagulhas que cobrem os olhos. E brincam de amar feito fossem adolescentes ainda. Na indistinta maneira de buscar prazeres, relembram a brandura que a brancura das recordações traz. E viajam em mil lugares, proseiam com outros amantes delirantes, dizem que outrora foram mais felizes, que em caminhos errantes erraram sobremaneira.
Devagar, o luar toma conta do lugar, a chegar e farrear de brincadeiras utópicas o espaço de falácias e nostalgia. O dono da birosca já explica que a Brahma dançou. Quem quiser agora tem buscar a série B das geladas. “Aqui na comunidade essa briga de milícia e comando tem reduzido a chegada da entrega”, vocifera. “Fazer o quê? Desce a tal Série B! Depois de umas tantas, tanto faz”, gritam os frequentadores em ardores ébrios.  
Aos poucos, na procrastinação final, a noite revela que as velas que lutam contra um mar imaginário são o porto onde deixar o corpo cair depois que as pernas bambeiam a revoar. Fabrício e Jennifer, colados de corpo e alma, se fazem prosopopeia e epopeia, quimera irreal. Devagar, o tempo passa e as pombas que antes comiam restos de pão e do que caísse no chão, já dormem dependuradas nos galhos que ainda sobram feito quadro de Portinari. As portas, antes entreabertas, agora se fecham, sem soberba, para a vida. O casal da prosa se despede e pede que algum dia talvez volte a se ver. Afinal, cada rever é cobrar carnavais do passado, postergar sambas que nunca serão cantados e saber que porta-bandeira e mestre-sala irão dançar separados até o porvir do fim.

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Derradeira ao som de Vinicius de Moraes

 Por Ronaldo Faria


Na rabeira da derradeira, a feira do amanhã. Haverá banana, legumes e alhures, queijo artesanal e sorrateiro, peixe arrancado sabe-se lá há quanto tempo do rio ou mar, roupas dependuradas em varais nunca tocados, pedaços de animais mil. E pastel! Claro, mesmo numa feira de só quatro bancas, não haveria de faltar pastel. Seu nome? Misael.
“É de meter ou aproximar?”
Se o amor fosse meter ou aproximar, haveria poetas a divagarem a cadência de rimar solidão e ser? Certamente não. Na negritude dos dias que teimam em solarizar a entrância que a reentrância que existe no desejo de amar e sofrer dá, a espera de acordar. E se dar. No futuro, sete dias pedirão para não se acabar num mesmo final e eflúvio saravá.
“É de meter ou aproximar?”
Na Rua Nascimento e Silva 107, talvez as respostas estejam postas em si. Ensimesmadas quem saberá. Daqui, travestido sem vestido de crer, no crédito primaz, Misael sou eu e tantos mais. Brincadeira de banir os imbróglios demais. Derradeira brincadeira de quem conheceu Elizeth e ouve que o amor, finito e inútil no seu mundo incapaz, pode doer em paz.


sábado, 3 de agosto de 2024

O eterno Otis Redding

Por Edmilson Siqueira


Ninguém cantou soul music como ele e, dificilmente alguém cantará. Ele saiu de um emprego comum onde ganhava pouco, aos 15 anos para entrar na banda de Little Richard e ganhar algum dinheiro a mais e ajudar a família. Onze anos depois, ele morreu num acidente de avião. Nesse curto espaço de tempo, se transformou num dos maiores cantores do EUA e, com certeza, no maior, até hoje, de soul e  rhythm and blues. 
Estou falando de Otis Redding, nascido na cidade de Dawson, na Georgia, em 1941. Sua carreira foi meteórica. Após participar do grupo que acompanhava Little Richard, dois anos depois juntou-se à banda de Johnny Jenkins, The Pinetoppers, com quem fez uma excursão pelos estados do Sul como cantor e crooner. Uma apresentação em uma sessão de gravação da gravadora Stax, levou-o a assinar um contrato para gravar seu primeiro single, "These Arms of Mine", em 1962.
A própria Stax lançou o álbum de estreia de Redding, "Pain in My Heart", dois anos depois. Inicialmente popular principalmente entre os afro-americanos, Redding mais tarde alcançou um público mais amplo de música pop americana. Junto com seu grupo, ele fez pela primeira vez pequenos shows no Sul dos Estados Unidos. Mais tarde, ele se apresentou no popular clube noturno de Los Angeles Whiskey a Go Go e viajou pela Europa, se apresentando em Londres, Paris e outras cidades importantes. Ele também se apresentou no Monterrey Pop Festival em 1967, poucos meses antes do fatídico voo.
A Spotfy anuncia sua discografia de estúdio completa em dez álbuns e, claro, ele não pode ter gravado mais que isso em apenas onze anos, já que sua principal atividade eram as excursões, inclusive fora dos EUA.
Seu estilo único, derivado do gospel e sua facilidade de interpretação, aliada a uma voz marcante e sincera, fizeram dele, rapidamente, um ídolo. Sua facilidade em enveredar pela música, fazendo improvisos que poucos conseguiram ou conseguem, deram a ele um lugar de destaque num mercado musical que já era gigantesco na metade dos anos 1950. 
Seu primeiro disco já continha cinco composições suas, provando que ali estava nascendo um fenômeno. Acompanhado de uma banda enxuta - três metais, guitarra, bateria e contrabaixo - Otis colocava sua voz como mais um instrumento, sem jamais perdeu a profundidade de seu canto e a sinceridade de interpretação.
Um dia, navegando pela  Amazon, deparei com uma oferta de uma caixinha com cinco CDs de Otis Redding e outra de Sergio Mendes. A dos brasileiros já foi assunto aqui. Eu me lembro que dei uma vasculhada na oferta e descobri que eram cinco discos de estúdio de Otis, todos eles com as capas originais - o que, aliás, torna impossível ler os textos das contracapas que, na cópia para o tamanho CD, ficaram quase microscópicos. 
Mas eram os cinco discos iniciais de Otis, o que me daria, além do prazer de ouvi-lo cantar, uma boa ideia da carreira desse fabuloso astro. 



Além de "Pain in my Heart", a caixa traz "The Great Otis Redding Ding Soul Ballads", "Otis Blue - Otis Redding Sings Soul", "The Soul Album" e "Complete & Unbelievable - The Otis Redding Dictionary of Soul". 
Entre as 59 músicas - são 12 em três discos e 11 nos outros dois, que era o que cabia nos LPs - estão alguns de seus maiores sucesso, como "Pain in my Heart", "Stand By Me", These Arms of Myne" e Lucille", todas do primeiro disco. No segundo, destaques para "That's How Strong My Love Is", Nothing Can Chance my Love" e Home in your Heart". No terceiro, logo na segunda fa0xa, "Respect", um megassucesso de Otis e, na quinta, "I've Been Loving You Too Long", que depois foi gravada também pelos Rolling Stones.  E ainda há "My Girl" (outra gravação dos Stones) e, invertendo o jogo, "Satisfaction" o eterno hit da banda inglesa, que nunca escondeu suas origens no soul e rhythm and blues. Aliás, essa gravação de Otis virou cult e até hoje é lembrada pelos amantes do rock. 
O quarto disco traz um texto na contracapa, sem identificação do autor, que começa assim: "Há muitos cantores de soul, mas grandes cantores são raros. Otis Redding é um dos grandes. Em poucos anos ele se tornou conhecido, através das suas gravações de sucesso e suas excitantes apresentações, como um digno sucessor dos legendários cantores de blues do passado.  É um disco onde as interpretações de Otis atingem quase um ápice.
O quinto e último disco da caixa, começa com outro sucesso: "Fa-Fa-Fa-Fa-Fa (Sad Song)", mas contém uma das melhores interpretações de Otis, que até hoje é muito tocada em rádios voltadas ao jazz e ao soul: "Try a Little Tenderness", grava por muita gente depois dele. Outra, digamos curiosidade do disco, é a versão dele para "Day Tripper", de Lennon e McCartney. 
Os discos lançados depois desse, ou eram gravações que ele já havia feito em estúdios para lançamentos futuros, ou gravações ao vivo de seus muitos shows, não só nos Estados Unidos.



E do seu maior sucesso, a composição sua e de Cropper, "Sittin' on the Dock of the Bay", que a tantos encanta até hoje, ele não desfrutou. Seu lançamento foi póstumo, como póstumos foram muitos prêmios que ele recebeu, bem com a criação de prêmios com seu nome, a inclusão em vários Halls of Fame e a colocação de seus discos em muitas listas de melhores de todos os tempos.
Enfim, o mundo perdeu, precocemente, um artista que, com certeza, tinha muito ainda a nos mostrar nas décadas seguintes. Se vivesse até hoje, teria 83 anos, só três anos a mais que Mick Jagger que ainda está por aí, esbanjando energia e talento.
A caixa com os cinco CDs está à venda por aí, nos bons sites do ramo. Vale a pena.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

A Caetanear a blasfêmia do chegar

 Por Ronaldo Faria

 

Ele estava deitado, sem consternação ou o caralho. Apenas estava. Como diria o poeta, num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico. Estava a beber decilitros e poesia. A caminhar na imaginação tardia. A sublimar o tempo para que o agora não seja o momento da canção. Quanto tempo faltaria? No tempo verbal que o poeta não sabe dizer qual na gramática seria, saber-se-ia.
Ele sobrevoava entre as favas secando ao sol, à espera de brotar, e um arcanjo malandro que faz trovas para que as virgens que sobem ao céu achem que as nuvens são púrpuras. No cantar da saudade, a performance das notas que denotam a natureza em perdão. No universo que se esmera entre a imensidão e o trovão, a púbere voz da amada que se faz díspar e volátil a se ouvir e redimir.
Ele, cancioneiro sem esmero de si mesmo, plágio das músicas e seus poetas, efeméride de algo que surge nalgum lugar, profana a forma e alude o descrente crer em outras línguas desse mundo a mais. Filho do antes da ditadura, da Capital Federal, vive até hoje a acreditar que há um socialismo a se esconder na semente à espera de um planeta, num canto de continente, a brotar e chegar.
Ele, carcinoma pungente e escondido que logo irá chegar, planteia o pranto que os olhos nem sabem como traduzir. Os raios de Sol que dentre em pouco voltarão, volteiam a ínfima procrastinação. Nas palavras frias e frígidas da imensidão da loucura em antemão, a servidão. Mas para que serve a vida? Ávida de lavradios tardios não vem a malfadada ternura, a lânguida e pura fervura.
Ele, conspurcado de si em medos e blasfêmias, amante de todas as fêmeas, amanhã não irá enlouquecer ou beber. Um túnel atemporal irá lhe tragar e trazer a eterna e a sempre amada. E então, o que vier, virá. No antever do descrer, jusantes vão se entrelaçar. E se bastar só um olhar, um prosear de passados e a incerteza do nunca chegar, já terá valido o que o inválido do amor nunca terá.

Zé dá o Tom final

 Por Ronaldo Faria “Em quantos mililitros parar? Não enquanto existir espaço vago e vazio nalgum lugar e banheiro altaneiro em rota segura n...