sábado, 16 de dezembro de 2023

Mestre Pixinguinha ao fundo

Por Ronaldo Faria


Pixinguinha era o tema, abrupto, largado, desvairado, como um poema. Sob uma mangueira que se derramava de galhos e folhas no quintal suburbano, Florípedes era como uma flor, aquela que seus pais, num augúrio ou delírio, propuseram no nome. “Flor boa fosse, não teria tantos espinhos”, se lamuriava. Seu sonho era ter sido Berenice ou Veridiana. “Isso sim é que nome de gente.” Longe da casa caiada de branco, o trem apita a dizer que passageiros cansados e suados estavam a sonhar com o fim dos seus fardos.
Na composição que rodava em trilhos velhos e dormentes, João se segurava com força para não cair a cada parada brusca. Se bem que, para ele, tanto fazia como tanto poderia fazer. Se caísse e quebrasse a cabeça ou um osso, ficaria encostado no INSS. “Férias, mesmo que hospitalizado”, até sentenciava. Mas, melhor não. “Os caras atrasam pra pagar e eu não teria como me virar.” No vagão, o crente demoniza a vida para conseguir um ou outro que quisesse comprar adiantado um lugar no seu etéreo e inexistente céu.
Ente ambos, uma estação carcomida na laje exposta de ferrugem. “Essa merda ainda dar última página em jornal”, resmungava o chefe da gare. Um ou outro vendedor do churrasco que teimava em miar cada vez que voltava para o fogo, a criança com o nariz a escorrer, o homem que dorme no banco a ressonar a vida que nunca terá. No lugar, bem longe do além-mar, Florípedes e João não sabiam sequer que um dia poderiam ser um só. Para emendar logo o fim, ela foi dormir e pesadelos ter (“se eu fosse Berenice ou Veridiana iria dormir como princesa”, ensejou) e João estava entre as vítimas fatais que passavam na roleta quando o teto desabou. Esse sequer pensou.
-- Eu falei, eu sempre falei que essa bosta um dia ia despencar – vociferava o funcionário da estação, cercado de repórteres a falarem da falta de planejamento e omissão.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Glenn Miller

Por Ronaldo Faria

 

A orquestra tocava sem parar. Paralisados no seu mundo próprio, os casais giravam no salão a cruzar pernas e mãos. A big band se bandeava entre notas e partituras, nas lamúrias do maestro, destro, que buscava na esquerda a melhor sonoridade do lugar. Devagar, a divagar, Solange, só em si e longe, imaginava o que os roteiros da vida não trazem de volta. Seus amores, suas dores, os odores das rosas recebidas, as bebidas envolvidas em lábios molhados e futuras feridas do coração. A ilusão da tresloucada saliva a correr todo o corpo em lascívia. Para ela, os trompetes e um perdido sax eram bem mais em si.
-- Ouvi o murmurar de uma dama sexy?
José, que do outro lado do salão bebia um gim com tônica (com o gim dobrado e chorinho), chegou devagar à mesa onde Solange vivia seu mundo. Antes, ficara sem saber se devia ou não. “Melhor não me perguntar muito. O máximo será um não”, pensou. E lá estava. Ela era diáfana, como deveria, nos Anos 60, ser. Parecia nunca ter saído à rua quando os rios do sol teimavam em queimar as peles em orgia com o mar. Como uma deusa virginal, dessas que se pede de presente a Papai Noel no Natal. “E não precisa nem de papel especial. De pão ou de jornal já serve. O importante será o que está nele”, dizia.
-- Por acaso eu te chamei para vir aqui?
Solange, com um cigarro mentolado a adormecer em brasa no cinzeiro, olhou fixa nos olhos de José. No palco, a orquestra introduzia I an Sentimental Mood. O homem, após perder o chão de si, mal sabia o que dizer. “Quando uma dama está só, cabe ao cavalheiro ter a mínima compostura de saber se deve ou não importunar.” A frase serviu como um punhal no peito de José. Cravou tão fundo que qualquer coisa que dissesse seria em vão. Pensou em pedir desculpas mil, dar volta e mais outra meia e retornar ao lugar do qual nunca deveria ter saído. Mas, de repente, ouve descrente: “Puxe a cadeira e sente”.
Ficaram horas a conversar. Besteiras mil, como um ardil. Ouviram Over The Rainbow e dançaram colados Moonlight Serenade. Ao final de My Reverie estavam de bocas coladas, lábios perdidos em algum acorde que a orquestra tentava fazer dormir no sol que acordava entre um Cadillac estacionado irregularmente e Fuscas e Gordinis. “Casal, me perdoem, mas teremos de fechar. O comércio normal já está a abrir”, falou carinhosamente o garçom. Entre um cambalear ou outro, saíram mais felizes que trôpegos. Do céu, pássaros entoavam uma canção própria de verão. Quem o visse a dançar, diria: o amor está no ar.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Doideiras do Spotify que saberemos onde irá dar...

 Por Ronaldo Faria


O que escrever ou descrever quando a seleção musical vira um samba do escritor doido? Mais uma pergunta dessas que besunta o cérebro e se perde na noção do tempo, das latas entornadas, das frases parafraseadas. Para um poeta que segue as partituras musicais, naquilo que as tantas partidas dos dedos dão, o que essas músicas poderão dar ou darão? E agora, seguir ou parar? Ser ou não ser, diria o diretor de teatro frustrado a antever o miserê. Pensei em Nelson Gonçalves para terminar a intrínseca e germinada lucidez, mas deixei a seleção girar. Nos alto-falantes, Noel Rosa. Agora uma ode a Vinícius de Moraes. Mudar pra quê? Que a trilha sonora de nossa vida restante seja esta, não o inodoro sextante que se antecipa. No céu, mesmo sob o negror e feita com cola de arroz na noite sem lua, uma pipa subirá e sublimará o amor. Como diz Bethânia, ela é carioca da gema. Qual delas? Não foram muitas e nem poucas. A todos saibam, meus lábios beijaram cariocas nascidas na Cidade Maravilhosa, entre noites de velas, viagens em avenidas, cantos e recantos de crenças esperançosas, realidades místicas e misteriosas. E como o tempo ao vento, tudo desandou e passou. Nas vivências, querências, demências, ausências, premências, tudo foi e ficou. Na dança das cordas, como disse o Poetinha, onde andam vocês?
 
II
 
Com Choro dos 3, Tico-Tico no Fubá. Só pra constar.


sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Pedro Salomão 2

 Por Ronaldo Faria

 


Já fazia meia hora que Horácio esperava Cleonice. Ainda bem que o frio e a chuva fugiram da previsão prevista e se esconderam em algum lugar. Certamente ficaram a se amar. Numa mistura de gélida paixão e folhas de um roseiral qualquer a se despetalar. Horácio, logo ele que disse minutos mil antes que não iria escrever. “Essa tentação de teclar será a proximidade da morte e o desejo de falar? Ou apenas um flanar de penduricalhos de emoções?” Ele não sabe responder a si mesmo e nem aos poemas do pernoite sagaz e fugaz.
Horácio, quase patético como um ser que ama aquilo que é o antônimo antagônico no antropofagismo de cada um, vira e remexe seus salamaleques. Relembra do passado, transita entre a loucura e a lucidez. Na desfaçatez de um tempo onde o pouco era muito, cavalga na madrugada tragada de tragos e afagos múltiplos e místicos. Multiforme, numa metamorfose que nunca se faz ou se fez, vira um andarilho do Vale de Inês. Mas não era Cleonice a esperada? Como diz o ditado, a fila andou no desandar do pérfido andor.
Ignóbil sobrevivente de alguém vivente e breve, desses que conta os dias com ampulheta que nem areia tem, vai a bagunçar seus momentos que fritam em tormentos, esculhamba lembranças que se desdobram em torvelinhos. É apenas ele. Um pedaço de limiar de um em dois. Partido em décadas atrás. Na frase mal dita, maldita quiçá. Que fez e desfez a tez para um recriar de olhos que já não se enxergam, flácidas peles que brincam de vencer o tempo como as árias do compositor que não sabe diferenciar partitura de partida.


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Dona Ivone Lara e a santa Iara

 Por Ronaldo Faria

“Sorte ou morte? Onde existirá o limite que existe e define a definitiva e imprecisa lasca que há entre o trincar e o quebrar?”

Manduca se perguntava há algumas décadas como era estar e viver nesse vendaval que a brisa de fora não fazia nem pétala de roseira tremer e ser. Intransmutável, seu tempo corria milésimos que os anos vindouros ou findos não sabiam nem sequer contar. Os dedos das mãos eram poucos para recontar. No mar, longínquo e raso, apenas os tolos de amor morriam afogados a pedir por clamor. Marinheiros da tristeza e da solidão nunca viram seus barcos lá se perderem. As sereias, brejeiras e faceiras, sequer chegavam perto da areia. Sabiam elas que a poesia a tudo espanta, menos a dor. Em meio ao mundo, nascia nalgum lugar uma flor.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Com João Cavalcanti

 Por Ronaldo Faria 

 

Põe óculos, troca óculos, ajeita óculos numa espera de ósculos que foram, vêm ou virão. Na poesia que entardece, a noite aquiesce e se aquece. Na brancura da ternura da poesia ainda não escrita, o imbróglio que se desmancha na mancha que não some entre sabões em pó e um pós caminhar de estrada onde a terra sucumbe aos pés perdidos e ardidos de sol, urdidos em lençóis. Entre a cama, o drama e a trama, Cesarino, feito quando o vaqueiro, de facão ligeiro, rompe a carótida do bicho, se embrenha feito vaca prenha que toma banho num poço qualquer à espera da cria logo chegada. Nas letras da vida abstrata de quem trata as troças do mundo como um vazadouro de vertedouros, sucumbe a si mesmo. A esmo, se esmera em aços que brincam de brilhar em esmerilho. Parte de um todo que não tem início e nem meio e nem fim, vive em parcimônia que cheira amônia. Sentencia e chantageia o tempo, vive trôpego e banal como fosse marginal, desses letal ou/e coisa e tal. Num aforismo que cabe num quadrilátero enfiado num triângulo que existe no retângulo que a esfera faz, seguimos em rodopios e centenas de pios do pássaro preso na gaiola de gravetos. Feito substrato de quem espera receber um trato, o tratado do tempo que blasfema ao destino. Em desatino, uma tina de álcool se derrama à madrugada concebida.

-- Que ideia mal concebida. Acho que a nossa cabeça está mesmo fodida.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Doidivanas noitadas

 Por Ronaldo Faria


-- E aí, troca os copos?
O garçom pergunta solícito e amigável.
-- Por favor. É tudo fermentado, mas entre cerveja e vinho não há muito tratado.
A voz de Adamastor soa retumbante no salão.
Na fria madrugada tragada em si mesma, ensimesmada de tanta coisa para contar e escrever, a vida chega enviesada e formatada, onde ninguém poderá mudar. Mas o que é a vida? Entreouvida na contemporaneidade perdida, nada mais é do que segundos ungidos e múltiplos no girar de uma bola cheia de terra e água no universo a vagar.
Copos trocados, campesinos longínquos vibram pelo seu trabalho no Chile um reles notívago sorver. Ao derredor, haja dor e dormência, iníqua sofrência que só os anos de hoje trouxeram ao dicionário.
Adamastor, que se fosse música seria um adágio em mi menor, se é que isso existe, espera que a esfera que roda acima da sua cabeça vire algo como uma fera. E pule e pulule. O amanhã? Haverá? Em arabescos e afrescos, frágeis e fúteis lembranças adentram em sons vaticinais. Na vitrola, agora, Vinicius de Moraes. “Na noite, nos bares, onde anda você?” Senão, “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”. Desencontrado, o poeta profetiza a efeméride tardia e vadia. Nos próximos dias, saber-se-á, a vida entrará no seu quadrado.


sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Papo de poeta ou poetiza, no piano

 Por Ronaldo Faria


-- E aí, Lívia, podemos ir pra minha casa?
-- Acho melhor que não.
-- Mas eu moro sozinho. É isso mesmo? Vai rolar só uns beijinhos?
Lívia, dessas mulheres que se pode chamar de lívida ou senhora de si, dá o ultimato: “Não. Te ligo”.
-- Tudo bem. Até quando der outra vez.
Na voz de Paulo, o pulular de quem não sabe sequer o que é parar de pular ou ulular. Perdido, liga o carro e arranca nas rebentações de além-mar.
-- Boa noite, senhor Jairo...
Em casa, Lívia, abre um vinho, liga a tevê e vê a derradeira ou próxima reprise que se antevê. Mulher plena, dessas que o poeta mais velho a colocará no patamar de deusa efêmera, não precisa de pênis, corpo peludo ou ser impoluto para viver. Muito menos emplastado. Dona de si, diáfana naquilo que o parnasiano mais tresloucado escreveria, apenas se basta. Na varanda, uma pomba dessas de varanda ou rua, troca suas penas.
-- E aí, Bastião, valeu!
Paulo chega ao apartamento apertado que algum deus lhe deu. Vai da entrada à sala e o quarto num segundo. Depois, mijar célere no banheiro imundo. Abre a geladeira e vê a cerveja derradeira. “Devia ter comprado mais.” Liga a televisão e desliga logo. No celular, o algoritmo diz que uma velha amada está a ligar. Desliga o aparelho, acende o cigarro e se põe a pensar: “Porra, a Lívia bem que podia querer topar somente poder vir trepar.”
Na cidade que é uma efeméride constante, inconstante em seu limiar, a noite percorre os corpos que acordados ou adormecidos fizeram o dia trilhar. Lívia e Paulo, acomodados no seu sonhar, são apenas sombra que a sinfonia noturna que se beija na madrugada singular faz e refaz para mais um redescobrir que a vida é um constante nunca chegar.


quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Piano ao fim do álcool

 Por Ronaldo Faria


 

O copo está quase vazio. Do balcão o garçom diz que já vai fechar. No piano, o músico pede, aos prantos, o fim do expediente no bar. “Tem barbitúrico?” A resposta é que não há. E agora, onde as mágoas do amor despejar? Over The Rainbow. Como que por algo mecânico, o pianista vira apenas artista de boulevard.
Os poucos casais que ainda se postam nas mesas que ninguém mais quer limpar, descobrem que o gelo que virou água não irá se repor. Se ele conquistou ou não a amada, só a fada da foda noturna/madrigal/marginal irá dizer ou argumentar. Se ela conquistou o seu desejo só o bruxo do ensejo/sobejo/casual falará.
Na avenida que prenuncia um tanto de orgias e outros poucos ou muitos tantos de remédios para dores de ressaca, cabeça e tristeza, carros se volatilizam na poesia. Flanelinhas correm atrás dos trocados tresloucados que bêbados lhes darão. No orfeão da vida, premida e prenha, perdida, os faróis piscam como clamídias.
O último freguês abre a última garrafa. Seu ser solitário ultima o alvorecer encardido e vazio na cama que nem box é. Paga a conta e conta quantos passos dará até o seu lar. Alardeia, em devaneios, os meios que amanhã terá. Talvez uma vez irá esbarrar com o amor na rua, ou quem sabe um carro louco o atropelará.
À saída do resistente, o dono do bar cerra as portas. O pianista, vulgo artista, agradece. “Sobrou algo na cozinha?” – pergunta em voz rouca de quem cantou de Sinatra a La cumparsita. O cozinheiro diz que sim. Tem batata, arroz e algo chinfrim. No mundo que se esvai, o tempo agora apenas se distrai.


segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Ao piano de todos nós

 Por Ronaldo Faria


Um piano geme nos dedos daquele que mal consegue beber o seu uísque entre uma música e outra. Que mal fez quem tentou fazer da música o seu labutar? Poucos o ouvem. O som das mesas é apenas gracejar ou conquistar o final e letal. Meio que esquecido num canto de bar, adormecido e quase carcomido em teclas pretas e brancas, o piano gorjeia notas musicais feito sinais que apenas o amor deixa fluir. Como beijos em solfejos, peles nuas e suadas a se embrenharem nos lençóis que branqueiam o negror que vem de fora. Como mãos de dois amantes, passeiam sem limites a um lugar para chegar. Tocam seios róseos e brancos, olham olhos fechados ao acalanto de um gozo seminal, sem embrenham em pelos engrenhados de barba e cabelos genitais. No ar, As Time Goes By.

E o piano continua à espera da mulher nua. Brinca de acordes (sem acordar quem já dorme), notas que denotam o arfar de ambos, partituras dessas que se partem e desapartam brigam de pernas e braços tentando o outro engolir e conquistar. Lá fora, o mar arrebenta a santa água benta de sal e acreditar. Na janela cheia de maresia e poesia, insanas paixões serão somente senões. Mas ficarão o calor dos dois, a doidivanas centelha que o amor faz brotar em cada chegar. Quem sabe, na próxima tarde, o entardecer não se faça somente saudade. Na aurora boreal, que nunca avançou um sinal sequer, a mulher lambe o corpo do amado. Embrenhados em si, ensimesmados de um tudo torpe e louco, apenas descobrem aquilo que o tempo soube em teclas de marfim metamorfosear.


sábado, 25 de novembro de 2023

Na forrozada inchada de ciúmes paternais

Por Ronaldo Faria


A viola rasga o espaço que está partido de risos branqueados das donzelas namoradeiras e rapazes enlouquecidos pelos batons cor de carmim que bronzeiam os lábios a se conquistar. Coitados, terão muito que esperar. Quem sabe a vida inteira. As meninas, embranquecidas pelo pouco de sol imposto pelos pais donos de cintos às mãos e ciúmes atrozes, apesar de suas artroses, sabem que dançar um forró colado é coisa que há de se privar. “Painho, é só um chegar junto sem encoxar. É uma dancinha só.” Com olhos vermelhos de aguardente e ódio pelo pequeno garanhão que quer chegar, o velho, a mascar fumo de rolo e bater a espora no chão, só diz um simples e definitivo não. “Esse bosta que vá carpir um terreirão!”

O violeiro, que nada tem com a cena, chama o sanfoneiro pra ajudar. Aí a festa vira um festão. E as coitadas das meninas, de pernas finas de tanto ficarem sentadas sem aceitar uma dancinha, vão vendo o tempo passar até as dez da noite chegar. “Está na hora de moça direita parar.” E lá se iam todas, com seus progenitores a ver uma esperança feminina sucumbir. No salão ficavam os moçoilos prestes a buscar a casa que queimava lampião com celofane vermelho ou o que desse para esquecer mais esse sombrio viver. No palco, sem microfone ou infames, os músicos faziam aquilo que podiam para deixar o dono do forró sorrir. No balcão, Zé Formiga gritava que a pinga estava em promoção final. Era só achegar e tomar.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Xangai e Elomar

 Por Ronaldo Faria


Incelências se iluminam nos olhos das beatas que rezam com seus terços e véus. As velas a queimarem na capela cobrem de amarelo o tanto que parece e se enaltece negro nas roupas das mulheres com suas peles velhas e enrugadas. Andrajos, homens aboiam o pouco gado que sobrou e a seca ainda não levou. Vão devagar a divagar o despropósito que há entre o irreal e o ilógico. “Nascer pra quê?” - questionava Longuinho. Mas, no sertão da caatinga sem começo ou fim, senão, não há o que se perguntar.

Na estrada de terra e pedra, um ou outro mandacaru, o importante é chegar em casa e ver o corpo de Maria nu. Deitar na esteira, ao cheiro que sobe na fumaça escura do lampião, e criar outra cria que o tempo um dia irá matar. Não há muito no que pensar. A roda do carro de boi a consertar, a burrega com o pouco de comida alimentar, o sonho dela virar grande e leite poder dar. Seu cavalo, quase tão seco quanto o derredor, vai em quatro patas traçar a troça de quem do alto dá vida para fazer o seu bdestino sangrar.
Mas as rezas enraizadas como a última esperança de quem nem sabe o que é dança, saídas de bocas sem dentes e dentaduras, tomam conta do lugar. Próximo, um último poço d’água marrom encharca a cacimba. Gargantas carcomidas de nada esperam nadar entre barro e líquido qualquer. No curral, a égua prenha prossegue seu parto em dor. Ao longe, uma queimada traz de volta e mata a terra que um dia o santo prometeu. Tudo como uma viagem travestida de solidão e redundante solitário lumiar.
Em meio a tanto entremeio, mágica ilusão sonha em brotar do chão. Quem dera e quisera fosse como estrela que vem, brota, aparece e desaparece num céu sem fulgor. No lamento sangrento do porco que é cortado de facão na barriga, a fadiga do boiadeiro que espera que o dono da terra batize outro petiz. No fogão de lenha, o cheiro é de comida que não foi carcomida pela realidade que existe em chiste. No quadro final que nenhum pintor criará, o pouco que, como diria o louco, faz de tudo um lugar.


terça-feira, 21 de novembro de 2023

Malandragem grampeada

 Por Ronaldo Faria


Geovenildo (mistura de Genoveva de mãe e Hermenegildo de pai) cruzou o trilho do trem devagar. Na quentura do Méier, era só uma rampa para outra. Coisa que até o Zé da Muleta Meia Boca conseguiria como fizesse salto à altura em Olimpíada. Tinha acabado de arrancar dois dentes no dentista paraguaio que atende num sobrado encarquilhado onde la garantía soy yo. Sob efeito da anestesia e duas cafungadas, o caminho reto parecia chegada de barco em marina cheia de maresia. “Calma que você logo chega lá”, dizia a si mesmo, nos tantos mesmos de si àquela hora e altura. Vendedores de biscoito Globo e Chá Mate, longe da praia, muambeiros com capa de celular e raquete de muriçoca, trabalhadores cansados de ralar se cruzavam atabalhoados. Para Geovenildo, Gegê ou Nildo aos íntimos, aquilo era um mercado persa. Ou será um persa em mercado suburbano? Com esforço sobre-humano, chega ao ponto desejado. Por sorte, não esbarra num despacho. “Porra, entrega pro santo agora não tem mais cachaça?” Disperso desse mundo, não viu o malandro que corria com a garrafa debaixo do braço. Pensou em pegar o frango, mas ele estava cheio de penas e bem mal passado. Desistiu. “Esse deve dar dor de barriga e pouca sorte”, à conclusão chegou.

Geovenildo, Gê ou Ni para os mais íntimos ainda, pegou o primeiro trem que parou. Conseguiu ao menos subir, meio empurrado pela massa e outro tanto pela sorte que Deus dá aos desvalidos e combalidos, quiçá fodidos do mundo. De pé, seguro pelas outras tantas centenas de passageiros nada fagueiros, foi de estação em estação. Engenho de Dentro, Piedade, Quintino, Cascadura, Madureira, Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro. Marechal Hermes e Deodoro. No fim, não tem jeito. “Ô, meu irmão, acorda! Tem que vazar!” Geovenildo desembarca da barca e segue pela passarela para chegar na rua. No centro espírita perto o incenso corre solto. O atabaque ressoa e a Pombajira (diria o Houaiss) gira sem parar. O cambono segura o refrão e Zé Pilintra dá risada. “Entro ou não?” Batizado e confirmado no ambiente, decide ao menos bater a cabeça para o santo. “O que não é mal feito, mal não tem.” Senta no banco de madeira, faz sua oração e pede socorro. “Meu Oxalá, cuida de mim, que te peço tão pouco”. Sai de lá meio torto e trôpego e serpenteia pelas ruas e ruelas, becos e biroscas, pontos de venda de produtos importados de La Paz ou Bogotá. No céu, uma lua redonda se faz rotunda para seu drama sem segunda sessão marcada e a cortina voltar a fechar.

 (Ao samba de breque do Rio)

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Deoclécio no césio da vida

 Por Ronaldo Faria


Deoclécio acordou todo feliz. Esqueceu do ensinamento do mestre Moreira da Silva e pensou ter acertado no milhar. “Agora deu. Não tinha como não dar. Chega de pobreza! Zelinda, pode ir na 25 de Março encher a sacola! Ganhei dez vezes mais do que apostei! Se dei bem!”
Eufórico, crente de tudo, meio demente pelo porre recente, tinha a certeza plena de que sua hora enfim tinha chegado. “Zelinda, hoje eu quero picanha e cerveja de litrão! Nada de asa de galinha e Samba. Vamos ao bar do Camundongo Molhado e fechar a pendura. Agora é só na fatura.”
No seu mundo pouco afeito aos números e afazeres do anotador que molha a mão de quem manda e cobra de quem joga, saiu para a rua todo feliz e cuidadoso com o papel carimbado da PT e da Coruja, da milhar e da centena, pegou o ônibus com passe de idoso, do seu avô Cardoso, e desceu no ponto central. Deu tchauzinho para a moça de boa idade que rodava bolsa na esquina, saudou o homem que dormia sob a marquise e sorriu ao malandro que andava armado, com o berro escondido.
De peito cheio de orgulho, além de oxigênio com gás carbônico que vinha do lado de fora do esgoto que corria a céu descoberto, aberto e sem afeto, parou na frente do Mão sem Braço, chefe do pedaço, e disse resoluto de antes do luto: “Vim dar preju pra você”. Orgulhoso, tirou o papel do bolso e mostrou. “Pode ser em nota alta. Chega de merreca no bagulho”. Perto, um pombo em arrulho voa.
-- Tu tá doido, Zé Ruela? Papo reto, isso aqui foi de anteontem. Hoje deu foi jacaré na cabeça. O burro já passou de ilusão.
Se Deoclécio ainda tivesse coração sobrando no momento, teria morrido na hora. Olhou direito o papel, correu para o poste mais perto e lembrou que sexta-feira já tinha ido. Usou de novo o cartão do avô, seguiu cabisbaixo pro barraco, nem via a paisagem de trilho de trem e casa sem reboco. Ao chegar, ouviu um barulho nos fundos, do lado do córrego seco, e lá estava Zelinda, com um churrasco completo e repleto na mesa, barril de chope às pampas e os vizinhos a gritarem que Deoclécio era o Jesus do presépio. Feliz, o português do Camundongo Molhado segurava um camalhaço de dívidas mil.
 
(Ao Bezerra da Silva)


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Se aos depois dos 80 chegarmos, cheguemos assim

 Por Ronaldo Faria


Encarquilhado, defenestrado, com alguém que nem a gente (em mente) a dizer na fila do ônibus, “por favor, pode subir”. Carros pararem nas ruas e os motoristas com um gesto de afeto a mexerem as mãos num “pode passar”. Gumercindo estava assim: entre o começo do fim definitivo e o fim efetivo do começar a dormir a sete palmos. “Nem fodendo, quero ser cremado. “Do pó viestes, ao pó voltarás!” Do alto, se alto ou algo existir, Deus briga por sua alma com Satanás. Na rua, um samba de pagode eclode.

Numa tela dessas que fica ligada nas vitrines de loja popular pulula um vídeo do Ney Matogrosso. “Quero chegar aos 82 que nem ele. Lógico que não terei a grana que ele tem, mas me basta o seu pique. Não estar babando na fronha.” O pensamento de Gumercindo se espraia pela noite que se embrenha numa futura madrugada tragada de mais um dia. E brota de notas que se denotam ao silêncio quieto que surge feito grotão escondido num pequeno senão. Como a grota em Angico que matou Lampião.

Sonoro, bêbado, embriagado, feliz por ter comprado dois reais e vinte centavos de bala de canela, Gumercindo se refastela nas vielas que separam seu dilema da trama grandiloquente que sobrevive sem trema. Na trama subsequente (e cadê a trema de novo?), está no barraco a ferver um ovo. Beberá um gole de pinga barata e logo dormirá naquilo que deitar de bruços vale um largar. Ney canta que vale romper tratados e trair os ritos. Na vida de caminhos tortos, que sobrevivam os poucos e derradeiros sangues latinos.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...