terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Três mulheres incríveis do clã Adnet

Por Ronaldo Faria

Venho, através deste, homenagear três mulheres da família Adnet: Muiza, Maucha e Antonia. As duas primeiras, irmãs. Antonia, a sobrinha. As duas primeiras, irmãs de Mario e Chico Adnet. Antonia, filha de Mario, que foi tema do brilhante texto do último sábado escrito pelo Edmilson Siqueira. Logo, me senti na obrigação de falar das três, citadas no texto. E logo vem a pergunta: como uma família pode ser tão pródiga musicalmente? Certamente um gene fantástico caiu pelas bandas de lá. E frutificou de forma desbragada, para a alegria de nossos ouvidos e emoções sonoras. Acho que se fosse pai dessa prole e avô de Antonia (junte-se ainda Marcelo Adnet) levantaria todas as noites e dias as mãos para os céus e diria: “acertei na loteria da cultura e da arte”. E essa não há dinheiro que compre. Ou se tem ou não se tem. E os Adnet têm.

Da Muiza eu tenho uma obra-prima que homenageia um dos maiores compositores, arranjadores, músicos e maestros brasileiros - Moacir Santos (morto nos Estados Unidos em 2006). Um ícone que fez carreira reconhecida e reverenciada no Tio Sam e aqui foi quase esquecido. Como maestro, dominava “apenas”, com excelência, saxofone, o piano, a clarineta, o trompete, o banjo, o violão e a bateria. Alguém que foi mestre somente de Baden PowellPaulo MouraJoão DonatoNara LeãoRoberto MenescalSérgio Mendes, entre outros.  

Muiza conheceu o maestro graças a Mario que, junto com o saxofonista Zé Nogueira, preparava o CD Ouro Negro, para homenagear Moacir Santos (este é outro CD/DVD de que falarei um dia, por ser algo que nem o nome obra-prima define). Mas, enfim, a partir desse encontro inicial Muiza decidiu também fazer sua homenagem ao maestro. E surgiu As Canções de Moacir Santos. Ao todo são 12 composições que mostram um lado pequeno daquilo que o maestro criou. Sob direção musical e arranjos de Mario Adnet, o disco reúne, além do próprio Mario, o grande Moacir Santos, Milton Nascimento, Ivan Lins, Zé Nogueira e Ricardo Silveira, entre outros.

Há obras escritas no Tio Sam e cantadas em inglês e coisas do Brasil. Desde Nanã (uma de suas músicas mais conhecidas) às lúdicas A Santinha Lá da Serra e Ciranda, onde Muiza divide a voz com Moacir (em A Santinha, Milton se une aos dois). Mas todas as composições incluídas nessa produção merecem ser eternizadas. De 2007, o disco teve lançamento posterior à morte do maestro e perpetuou nele a sua voz e o seu talento. Com todo o carinho que lhe era peculiar, deixou uma frase marcada para a intérprete: “Se eu fosse o imperador, Muiza seria a minha cantora”.  Esse CD é, sem dúvida, algo que não pode passar despercebido pelos ouvidos de quem ama a música de excelência.

Já o CD da Maucha é o The Jobim Songbook. A conheci como cantora ainda no Rio de Janeiro, quando a via nos palcos como integrante de o Céu da Boca (tema de um texto anterior neste blog). Esse disco é de 2006. Consegui comprá-lo só via importação (ele não veio como lançamento para o Brasil). Gravado em julho de 2004 em Nova York, onde ela mora até hoje, traz 13 composições do Tom. E Maucha tem todo o direito de gravar as coisas do Antonio Carlos e fazer esta homenagem nos dez anos da morte do maestro soberano. Afinal ela fez parte da Banda Nova, que acompanhou Tom durante dez anos, entre 1984 e 1994, ou seja, até a morte daquele que marcou a MPB. 

Neste CD há a participação de Mario Adnet, do baterista Duduka da Fonseca (seu marido), Joe Lovano (sax), Romero Lubambo (guitarra acústica), Randy Brecker (flugelhorn), Claudio Roditi (flugelhorn), Jay Ashby (trombone), Nilson Matta (violão acústico) e Helio Alves (piano). Com esse elenco, vê-se o que Tom tinha de mais popular de volta; Garota de Ipanema, Águas de Março, Ela é Carioca, Insensatez, Samba do Avião, Chega de Saudade e Desafinado, entre outras. Na voz de Maucha, um leque de músicas de alguém com quem ela conviveu nos palcos e no dia-a-dia. Na contracapa do CD, um pouco daquilo que Tom pensava dela: “Maucha and i have travelled the world with the Banda Nova. She is a marvellous singer. Her voice is deep, rich and mysterious. It makes me long for the Brazilian Forest. She is a great artist (Maucha e eu viajamos pelo mundo com a Banda Nova. Ela é uma cantora maravilhosa. Sua voz é profunda, rica e misteriosa. Isso me faz ansiar pela Floresta Brasileira. Ela é uma grande artista).” E não precisa dizer mais nada.

Por fim, Antonia Adnet. Filha de Mario, ela é arranjadora, compositora, violonista e cantora. Dela eu tenho o CD Discreta, de 2010, produzido por ela e seu pai com a participação de Roberta Sá, Marcelo Adnet e João Cavalcanti. Ao todo são 12 composições. Dessas, sete são dela, sendo quatro próprias em letra e música, sem parcerias. Em várias músicas os arranjos são dela também. Ou seja, a garantia de que o clã Adnet não irá parar tão cedo. 

Na faixa que leva o nome do CD, divide a voz com Roberta Sá. Composta por ela em parceria com João Cavalcanti (ex-Casuarina e filho de Lenine), a música tem uma letra e melodia que valem nomear o disco. Mas Antonia mostra que não é só cantora no CD. Ela toca seu violão de sete cordas na faixa instrumental Vitrine, do eterno Moacir Santos. E volta ao violão em Primeiro Choro. Na verdade, todo o disco é um discorrer de novidade musical, com as incríveis Dois, Um Dia Quem Sabe e Vem e Vai. Em Pessoas Incríveis, divide a voz com o seu primo Marcelo. Afinal, como diz a letra, “fundamental é dividir um prazer”. Para Quero um Xamego, de Dominguinhos e Anastacia, a voz que a acompanha é de João Cavalcanti. E o ritmo nordestino vira um verdadeiro chamego para se ouvir. Por fim, vêm Bom Assim, Salineiras e Tema de Outono (outro instrumental com o violão de Antonia). E, para nossa tristeza auditiva, o disco acaba. Mas podia ficar rodando até gastar o laser.

Assim, há apenas uma verdade absoluta: que as Adnet se multipliquem para a eternidade. Nossa MPB só terá a agradecer.

Esses três álbuns você pode ouvir na Amazon Music, no Spotify e no Deezer.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Luiz Tatit, o intelectual da canção popular

 Por Edmilson Siqueira

Quem ouve Luiz Tatit cantar aquelas músicas singelas com letras cujas soluções nos surpreendem de tão óbvias e, ao mesmo tempo, tão criativas, e não sabe da carreira do artista, pode pensar que se trata de alguém que gosta de versejar, que sabe completar a rima difícil, uma espécie de repentista moderno com farto e preciso vocabulário. 

Pois Tatit é tudo isso e muito mais. Formado em Letras (Linguística) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, em 1978, e em Música (Composição), pela Escola de Comunicações e Artes (1979) da mesma universidade, obteve seu doutorado em 1986 na FFLCH da USP, com a tese Elementos Semióticos para uma Tipologia da Canção Popular Brasileira. É professor titular do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras & Ciências Humanas da USP.  

É mole? A tal da MPB tem um legítimo intelectual a lhe cantar os versos e a lhe esmiuçar as entranhas semioticamente, o que, convenhamos, é motivo de orgulho para todos nós, musicoólatras que somos. 

Luiz Tati tem 70 anos e extensa bagagem que o coloca num panteão todo particular da MPB: não deve haver quem torça o nariz diante de sua produção musical. Sua música fala para todos e provoca repentina intimidade em que a ouve. 

Já seu lado intelectual, autor de inúmeros livros de semiótica, pode ser visto em ótima entrevista dada ao portal da Fapesp, a Marcio Ferrari, em 2016, onde ele fala também do início de sua carreira com o Grupo Rumo. Está nesse link: https://revistapesquisa.fapesp.br/luiz-tatit-a-forma-exata-da-cancao/

O começo com Grupo Rumo foi no início dos anos 80, fazendo o que, à época, considerou-se a vanguarda da música paulistana. Foram seis discos gravados, de 1981 a 1991. Em 2019 ainda participou de um disco - Universo - com o Rumo. 

Sua música, além de promover empatia imediata, traz, muitas vezes, uma deliciosa dose de humor, às vezes negro, às vezes meio inglês e outras, ainda, escrachado simplesmente.

Um dos melhores discos dele é Ouvidos Uni-vos, de 2005, sobre o qual vou falar um pouco mais aqui, mas toda sua discografia merece ser ouvida, pois é certo o prazer. 

Gravado pela Dabliú Discos, a obra começa com Baião do Tomás, parceria de Tatit com Chico Saraiva, uma surpreendente canção sobre o nascimento de um garoto que é orgulho da família toda (toda mesmo!) desde o berço.

Final Feliz, a segunda, apenas de Luiz Tatit, é mais introspectiva, na primeira pessoa, trata da fuga de casa, imaginária ou não, que todo e toda adolescente tenta realizar um dia. Quase um blue que termina onde começa e deixa no ar aquela enorme interrogação sobre o que faze no futuro que começa ali. E tudo isso numa linguagem simples e bonita.

A terceira faixa é um rock. Mas não um rock qualquer. É Rock de Breque, dedicada a seu amigo e parceiro Itamar Assunção (13/09/1949 - 12/06/2003), uma mistura deliciosa entre o ritmo norte-americano com o samba de breque estilizado, própria da difícil arte do “mestre Assunção, e cuja letra tem a frase que dá título ao disco”.

Depois da homenagem, Tatit mostra uma parceria com Assunção que retoma aquela linha do humor negro, onde todas suas dores são explicitadas e, de tão pungentes, acabam até por divertir quem ouve. Mas dói.

A grande cantora Ná Ozzetti tem sido uma constante na carreira de Tatit. E é ela que aparece na faixa seguinte, Minta, de Tatit e Ricardo Brein. Trata-se de uma canção de amor, acompanhada apenas pelo piano de Marcelo Jeneci, que Ná Ozzetti interpreta no tom certo, com aquele tom de amargura necessário. 

O tom irônico e divertido, constante obra de Tatit, volta em Perdido. A ajuda forçada que uma amiga quer dar ao personagem por considerá-lo necessitado, cria inusitada situação, numa longa letra que começa e termina do mesmo jeito, com a novidade de que a amiga se propõe a ficar com quem ela "curou". Hilária. 

Com Terceira Pessoa, Tati retoma uma espécie de realismo fantástico musical, misturando duas pessoas diferentes numa só, e preferindo sempre a outra ao invés daquela, embora ambas sejam a mesma. A letra é um achado, própria de quem domina a linguagem e suas entranhas.

Brincadeira, de Tom Ozzetti e Luiz Tati remete quase à bossa nova no início da letra, onde o otimismo do amor que começa parece caminhar para um final feliz, mas é confrontado com as agruras de um relacionamento que ama e odeia.

Um bom samba, Controlado, é o que vem a seguir. É a divertida (mais uma vez) confissão de um amor louco que tenta disfarçar a loucura, mas no fim não consegue, se entrega, mas diz que vai melhorar. Tudo num sambinha rasgado muito bem definido que tanto encanta quanto diverte. 

Tom de Quem Reclama descreve, numa canção singela, uma estranha relação entre o personagem e sua voz que, rebelde, fala muito mais do que seu dono pretende. Surrealista o resultado desse pequeno tratado de rebeldia de "uma voz que não controlo/e que sai da minha boca/eu só falo o necessário/ela é sempre tão barroca". 

A poluição e as enchentes do Tietê são tema da canção que leva o nome do rio. Tatit afirma, ironicamente, não entender por que um rio deixa o verde da serra (sua nascente) para vir pra capital, se sujar e causar enchentes no verão. A canção que dá suporte à reflexão é quase clássica, com acompanhamento de violinos, viola e celo. 

A Perigo, parceria com Edward Lopes, trata da desilusão amorosa que fere e faz sofrer, solucionada com uma letra confessional e muito bem resolvida.

O disco se encerra com um sucesso de Luiz Tatit e Zé Miguel Wisnik - Baião de Quatro Toques - música regravada por vários cantores e grupos, como Mônica Salmaso, Grupo Ordinarius, Grupo São Vicente a Cappela (que apresentou a música na Alemanha) e a dupla Luiz (Brasil) e Jussara (Silveira), entre outros. É uma ousada e criativa "versão" da Quinta Sinfonia de Beethoven "que decantou e ficou só a raiz", como diz a letra.  

O CD Ouvido Uni-vos se encontra à disposição no Youtube - https://www.youtube.com/watch?v=ckBiTyUL9hY&list=OLAK5uy_khffLwNP0GvfoHoE9TuQ7ocGZCiDOVfAA

Mas, como disse anteriormente, a obra de Luiz Tatit merece ser ouvida em sua plenitude. São nove CDs e três DVDs que se encontram à venda nas boas lojas virtuais do ramo.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Mario Adnet: um carioca de fina estirpe

Por Edmilson Siqueira

A voz dele lembra a de Tom Jobim. Mas Mario Adnet, além de amar o nosso maestro soberano, passeia tranquilo por várias influências. Nos 15 discos gravados, além de participação em outros, ele já andou por vários caminhos, todos bonitos e prazerosos.  Além de Jobim, ele se dedicou a esmiuçar Villa-Lobos, Moacir Santos, Luiz Eça, Baden Powell, entre outros. E ele mesmo, claro, já que é excelente compositor. 

Mario tem raízes musicais. É sobrinho da pianista Carmen Vitis Adnet e irmão do músico Chico Adnet e das cantoras Maúcha Adnet e Muiza Adnet. Além disso, é pai da também compositora Antonia Adnet, da musicista Joana Adnet. Já o famoso Marcelo Adnet, que tanto nos diverte com seu humor, é sobrinho de Mario. 

Aos 64 anos, Mario é dono de robusta carreira. Começou com um disco independente, junto com o parceiro Alberto Rosenblit, fez mais um disco independente e outro pela Biscoito Fino. Só 20 anos depois dessas primeiras aventuras - época em que se dedicou mais à produção - é que abraçou Villa-Lobos e partiu para outras aventuras, mostrando toda a influência que teve, com discos dedicados também a Jobim, a Vinicius e a Baden Powell. Embora considere Villa-Lobos como que um mestre a pairar sobre todos, o homem que deu a musicalidade ao brasileiro, é para Jobim que Mario Adnet dedicou mais estudos e discos. 

Tenho três discos dele e pretendo completar a coleção, já que ouvi-lo é um desses prazeres que se alongam pelo fim do dia, ganham a noite e, se deixar, varam a madrugada. Foi um dos mais tocados no CD player do nosso carro quando carros tinham  CD players. Agora, os três discos estão, com outras milhares de músicas, num pendrive. Como mando o programa escolher as músicas aleatoriamente, às vezes ele aparece para nos encantar. Mas ouço mais em casa mesmo. 

Coração Popular, gravado no ano 2000, com a música de Villa-Lobos tornada mais popular ainda, foi o primeiro disco dele que tive. Trabalho primoroso de arranjos e orquestração, com a obra do mestre tratada com todo respeito. Pelas músicas percebe-se ainda mais a grandiosidade do maestro que se refugiou nas salas de concerto por total impossibilidade de sair por aí tocando tudo que criava. Ao site Borandá, Mario Adnet falou sobre Villa-Lobos: "Posso dizer, com segurança, que ele lavou a alma de várias gerações que passaram a gostar de música por sua causa. Colocou todo o Brasil para cantar: pobres, ricos, em colégios e nos estádios de futebol. Mas, apesar de ser tão popular, de adorar a rua, Pixinguinha, Cartola, Donga, o compositor, naquela época, só teve como caminho as salas de concerto.”

Sobre o disco, Mario declarou que “Joana (Adnet) e eu escolhemos pelo ouvido e, depois, quando percebemos, tínhamos coberto fases de toda sua vida. Não mexi muito. Porque é genial. É genial! Não desconstruí. Não desmontei o que ele fez.” 

E não desmontou mesmo, só tornou melhor, mais bonito, em suas inspiradas intepretações.  

No mesmo ano gravou também Para Gershwin e Jobim e no próprio encarte ele explica o que motivou a união desses dois gênios da música: "Desde pequeno ouço e admiro a música e Antonio Carlos Jobim. Através dele e dos Chopins e Debussys do piano da minha mãe, descobri o universo erudito, os grandes compositores, principalmente os que o influenciaram - e aí se inclui, naturalmente, George Gershwin. Com o tempo fui descobrindo as semelhanças entre os dois, como, por exemplo, o fato de que cada um, à sua época e guardadas as devidas proporções, revolucionou a música popular de seus país e atravessou fronteiras." 

E o disco é o resultado da influência desses dois gênios, entre os quais o próprio Adnet se imiscui, humildemente, para fazer suas homenagens. São apenas duas músicas de Gershwin (I Got Rhythm e Love Is Here to Stay) e uma de Jobim (Desafinado). Nas outras dez, Mario Adnet mostra todo seu talento com lindas canções que, com certeza, Jobim e Gershwim aprovariam.

Em 2002, sai Rio Carioca, onde Mario Adnet já se sente à vontade para subir mais alguns degraus na carreira. No disco, além de dividir músicas com alguns parceiros como Bernardo Vilhema, Lisa Ono e Lysias Enio ele abre o disco com Cidade Mulher, de Noel Rosa, canta música de Claudio Nucci e acrescenta três números instrumentais da maior qualidade. 

Há muito o que se ouvir de Mario Adnet, que considero um dos melhores compositores brasileiros da atualidade. Os três discos citados aqui não os encontrei à disposição no YouTube. Estão à venda nas boas lojas virtuais do ramo.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O grande Nelson Gonçalves

Por Ronaldo Faria

Amo Nelson Gonçalves. De paixão inenarrável. Em MP3 tenho muita coisa dele (porque é impossível ter tudo de quem gravou 183 discos em 78 RPMs e 128 álbuns na carreira). Tenho 73 discos. Em CD físico tenho apenas dez discos. Aqui vou destacar Nelson Gonçalves & Raphael Rabello e Nelson Gonçalves & Arthur Moreira Lima. Acho que esses exemplos, de dois músicos virtuoses se dedicarem a acompanhá-lo, dizem tudo sobre a importância de estar numa mesma obra com “O Boêmio”. Para mostrar a sua importância na MPB, basta esclarecer que esse gaúcho de Sant’Ana do Livramento foi o segundo cantor a mais vender discos na história fonográfica brasileira. Ao todo foram mais de 78 milhões, ficando atrás apenas de Roberto Carlos. E logo ele, que tomou conta dos ouvidos de gerações nessas terras tupiniquins por décadas, sofreu bullying na infância por conta da sua gagueira e viveu em luta depois contra o álcool e a cocaína. Mas, nunca a ponto de perder a voz que ninguém mais e nem menos do que Frank Sinatra elogiou como uma das mais lindas que escutou em vida.

Em Nelson Gonçalves & Raphael Rabello, Ao Vivo, há 14 músicas. O disco, lançado em 2002, virou documental, já que nenhum dos dois estava mais entre nós nesta data. As duas primeiras são um solo daquele que foi um dos maiores violonistas do Brasil, morto precocemente aos 32 anos em 1995 (Nelson morreu em 1998, aos 77 anos). São elas: Samba do Avião e Luiza. Para variar, o violão de sete cordas de Raphael Rabello desenha nessas composições de Tom Jobim uma obra-prima a se ouvir uma, duas, vária vezes. Depois, começa o repertório a seguir aquele que, do alto dos seus 70 anos à época, mostrava uma sonoridade impecável.  

Começa com Quem há de Dizer, Súplica, As Rosas Não Falam, Nunca, Chão de Estelas e Fracasso. Em todas, a beleza que marcou cada uma de suas mais de duas mil canções. Um marco dos 50 anos de carreira que então comemorava. Depois chega Velho Realejo, onde Raphael Rabello volta com seus acordes em destaque. Daí, Número Um, Deusa da Minha Rua e Três Lágrimas. Na próxima música – Naquela Mesa – ele rege a plateia, uníssona, num clássico brasileiro que se eternizou na obra de Sérgio Bittencourt. Por fim, o disco termina com Pra Esquecer, lírica do “baixo astral e dor de cotovelo”. Ou, como está escrito no encarte do CD, são 39 minutos de “uma seresta moderna”. Se é que seresta pode ter modernidade que não seja o enlevo de viver entre uma voz e um violão a brindar o amor.

Já em Nelson Gonçalves & Arthur Moreira Lima – O Pianista e o Boêmio temos 16 composições. O disco é um projeto cultural dos extintos Banco Nacional e Transbrasil. O disco é de 1992. Ele começa com Chão de Estrelas e vai na voz de Nelson com Camisola do Dia, a eterna A Volta do Boêmio e Caminhemos. Na quinta faixa é a hora de Moreira Lima tocar em solo Tico-Tico no Fubá. Nem precisa dizer que nas músicas anteriores o piano de cauda do virtuose se desfaz pleno como parceiro quase univitelino de Nelson. Como se ambos, piano e voz, fossem um só. Camisola do Dia é um exemplo claro e total. E o piano entrou no disco após Nelson fazer as gravações de voz a capella. Foi tudo mixado depois e virou um CD que, se juntasse ambos em estúdio, ao vivo e a cores, não seria melhor do que saiu. Basta dizer que o pianista e o boêmio fizeram juntos cerca de 50 shows pelo País.

No CD caminhamos com a magistral Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda (de novo abrilhantada pelo piano), a incrível Dolores Sierra (com introdução quase flamenca) e a Mulher que Ficou na Taça. A nona faixa é com um solo indescritível de Moreira Lima – Lamento. Seguem o grande bolero El Dia Que Me Quieras e as fantásticas As Rosas Não Falam, Fica Comigo Esta Noite, Meu Dilema, Escultura e Pensando em Ti. Haja adjetivos e substantivos neste texto... Mas é impossível não tê-los para esse disco. As duas próximas faixas são solos de Moreira Lima: Fon Fon e Apanhei-te Cavaquinho. O disco termina com a voz de Nelson em Último Desejo e Dos Meus Braços Tu Não Sairás

Enfim, temos o juntar de um piano irretocável e uma voz irreparável. Do Nelson Gonçalves recomendo também os três CDs antológicos que marcam parte da carreira do cantor no 50 Anos de Boemia I, II e III, e o próprio 50 Anos de Boemia Ao Vivo no Olympia (SP). Assim como recomendo os discos A Volta do Boêmio e Bacharel do Samba. Mas, imagino por fim, se não fossem o álcool e as drogas, se a voz do “Metralha” poderia, no fim da sua carreira, continuar inigualável como sempre foi. O show no Olympia mostra, porém, que pouco se perdeu e minha tese cai por terra. E ele continuava um fumante inveterado (teria sido o cigarro, inclusive, o vilão da sua morte por infarto). Mas, se não fossem esses arroubos de quem vive a noite e é um boêmio batizado em prazeres e inebriantes loucuras, seria ele o Nelson Gonçalves que foi?

Enfim, é isso. Como disse antes, acho que ninguém vende mais de 78 milhões de discos à toa. Tem que ser diferente. Tem que ter algo a mais. Seja o que isso for. Só um último adendo: ele, junto com Elvis Presley (e apenas ambos), foi quem ganhou o prêmio Nipper da então gravadora RCA por mais tempo junto ao selo, além de faturar 38 discos de ouro e 20 de platina. Logo, tinha e tem que ser Nelson Gonçalves. E ele é só ele. E fim de papo. Um brinde à vida! Seja ela da forma que for ou tenha sido.

 Nelson Gonçalves & Arthur Moreira Lima – O Pianista e o Boêmio você encontra no Deezer e no Spotify.

Nelson Gonçalves & Raphael Rabello, Ao Vivo, você encontra no Deezer, no Amazon Music e no Spotify.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Bom de voz e de balanço: Miltinho

Por Edmilson Siqueira

No último 31 de janeiro, o senhor Milton Santos de Almeida teria feito 94 anos. Morreu aos 86, depois de uma enorme, vitoriosa e fantástica carreira que gerou unanimidade entre críticos: foi um dos maiores cantores que o Brasil já conheceu. E, pela sua qualidade vocal, pelo seu ritmo, pela sua facilidade de improvisar, teria feito sucesso em qualquer lugar do mundo. 

Estou falando de Miltinho, um pandeirista e integrante de grupos vocais que virou cantor solo para felicidade geral da nação. Anjos do Inferno, Namorados da Lua, Quatro Ases e Um Curinga, Milionários do Ritmo e Cancioneiros do Ar foram os grupos que tiveram Miltinho no elenco. Com o Anjos do Inferno chegou a ir para os Estados Unidos acompanhando Carmem Miranda. 

Mas ele explodiu mesmo quando lançou, no início dos anos 60 do século passado, o LP Um Novo Astro, gravado com Sexteto Sideral. O nome era premonitório, pois Miltinho se tornou um astro rapidamente: conquistou a todos com sua interpretação única, sólida e cheia de gingado. Nesse disco estava a música Mulher de Trinta (Luiz Antonio), que fez sucesso imediato e o próprio Miltinho gravou em outras ocasiões, sozinho ou, como em Miltinho Convida, gravado em 1997, em que ele divide essa música com João Nogueira, num dos melhores momentos do disco. 

E é nesse disco que vou basear esse artigo. Em 1997 Miltinho já estava com 71 anos e sua voz ainda tinha o brilho de sempre. A Globo/Columbia então resolveu fazer uma grande homenagem ao cantor e produziu um disco em que Miltinho canta ao lado de grandes astros da MPB, um repertório especial de seus sucessos, agora em novas e bonitas versões.

Logo de cara, é Luiz Melodia quem emenda a balançada trajetória de Menina Moça, do mesmo Luiz Antonio que fez Mulher de Trinta. Ambas as músicas estavam no LP de estreia de Miltinho e, regravadas mais de 30 aos depois, ainda comportam versões modernas que lhe caem muito bem. 

A segunda faixa traz Nana Caymmi, com sua voz diferenciada, participando de Canção da Manhã Feliz (Haroldo Barbosa e Luiz Reis) e o encaixe sonoro é perfeito. Mulher de Trinta vem a seguir e ambos, Miltinho e João Nogueira, dão um show de intepretação e entrosamento. 

Com Elza Soares, nossa rainha do samba que faleceu recentemente, Miltinho não gravou apenas Cara de Palhaço nesse disco-homenagem. Gravou nada menos que três LPs que receberam o nome Elza Miltinho e Samba, volumes 1, 2 e 3 e que hoje são antológicos. E todos em seguida, um fazendo mais sucesso que o outro, em 1967 e 1969. Depois, entre 1970 e 1973, gravou quatro com Dóris Monteiro, uma grande cantora que também entendia muito do balanço no qual Miltinho era mestre. São, por fim, sete LPs com aulas de interpretações e de como se faz a famosa ginga brasileira no samba. 

O grande João Bosco é o próximo convidado de Miltinho. Ambos cantam Lembranças (Raul Sampaio e Benil Santos), outro sucesso que tem uma poesia cativante. João Bosco, sempre chegado a um improviso vocal, deita e rola ao lado do mestre. 

O Poema das Mãos (Luiz Antonio) traz um grande sambista cantando um samba canção ao lado de Miltinho: Martinho da Vila, aqui com seu vozeirão grave fazendo um contraponto sensível às divisões diferenciadas que Miltinho faz com a melodia. Outra aula de interpretação.

O MPB 4 comparece com uma verdadeira festa musical. Os quatro cantores fazem com Miltinho um pot-pourri com Bolinha de Papel (Geraldo Pereira), Helena, Helena (Antonio Almeida e Constantino Silva) e Boneca de Pano (Assis Valente).  

O samba de Luiz Reis e Haroldo Barbosa - Notícia de Jornal - junta na mesma gravação Miltinho e Chico Buarque. Apesar da inibição que transparece na faixa, Chico se sai bem ao lado de Miltinho e conseguem passar o balanço amargurado da tragédia de Joana que erra na dose, erra no amor e erra de João.

O samba canção Meu Nome é Ninguém (Luiz Reis e Haroldo Barbos), que chegou até a ser ameaçado pela censura da época (antes da ditadura, diga-se) por sugerir uma noite da "ânsia louca incontida do amor" depois que a luz se apaga, é dividido com Fafá de Belém.

Outro grande cantor brasileiro, que também já se foi deixando importante obra, Emilio Santiago, divide a belíssima Eu e o Rio (Luiz Antonio) com Miltinho.  

Poema do Adeus, outro sucesso que Luiz Antonio compôs para Miltinho, traz a companhia suave e emocionada de Tito Madi.

A dupla Jair Amorim e Evaldo Gouveia não poderia ficar de fora nessa homenagem a Miltinho. É deles Poema do Olhar que Miltinho dividiu muito propriamente com Altemar Dutra Júnior, cuja voz faz lembrar o pai.

A penúltima música do disco tem ares jazzísticos. Miltinho canta Devaneio (Djalma Ferreira e Luiz Antonio) e o intermezzo da canção é feita pelo sax de Leo Gandelman, que invade a melodia em outras possibilidades e dá à faixa um tratamento de jazz que a completa muito bem.

A parceria que rendeu quatro LPs com Dóris Monteiro fecha o grande trabalho. E para tal comemoração nada menos que mais um pot-pourri: Recado, Lamento e Murmúrio, todas de Djalma Ferreira e Luiz Antonio, dão uma amostra do que foram aqueles discos que tanto sucesso fizeram no Brasil inteiro e em boa parte da América Latina.

Num outro disco-homenagem a Miltinho, nesse caso pelos seus 80 anos, feito pela Odeon e que mostra sua fase na gravadora, de 1966 a 1976, há um belo texto no encarte, escrito por Rodrigo Faour onde, entre muitas outras coisas, se lê: "Ele diz que aprendeu a ter tanto ritmo assim com Deus. Não teve professores. Desde menino tinha fixação em pandeiro. Todo Natal seu pai lhe perguntava o presente que queria ganhar, e ele: "Quero um pandeiro!" O pai resmungava: "Outro? Mas você já tem dez!" 

O disco Miltinho Convida pode ser ouvido inteiro no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=AB6DeAOYrNI 

Já a homenagem aos 80 anos, Miltinho Samba e Balanço está em https://immub.org/album/miltinho-samba-e-balanco

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Wandi Doratiotto, genial e pronto

Por Ronaldo Faria

Ele surgiu com o Premeditando o Breque, em 1976, grupo criado quando estudantes da ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo) resolveram divergir um pouco da histórica ligação da Música da ECA com a formação para o erudito – fato que ocorre até hoje. Depois virou Premê e os amigos tiveram novos integrantes, marcaram época e espaço no universo musical paulistano e nacional como um grupo onde as composições misturavam irreverência, humor e qualidade nas letras e arranjos. E foi a partir do Premê que Wandi Doratiotto surgiu genial e pronto. É desse paulistano de 68 anos, ator no teatro e TV, escritor, apresentador na TV Cultura (no marcante Bem Brasil), compositor e músico, além de garoto-propaganda, que vou discorrer hoje. Logo, pela apresentação, ele já é um cara completo. Com certeza pronto! Uma figura que mostra e escancara a arte naquilo que ela tem de mais incrível.  

Aqui eu vou falar do seu primeiro CD solo – Pronto!. Gravado entre 2001 e 2002, ele traz 14 músicas em 44 minutos fonográficos e um clima que remete ao do Premê, com arranjos que mostram o que o grupo sempre teve na sua marca: irreverência, qualidade e humor. No CD, todas letras e músicas são dele. Na verdade, divide apenas Sujeito Discreto com o genial Eduardo Gudin. Para definir a sua “paulistanidade”, Wandi nos traz o samba Nóis que, se fosse assinado como criação do lendário Adoniram Barbosa qualquer um aceitaria como realidade. Afinal, é só seguir a letra e ver que o santo do mestre baixou e ficou.
“Nóis só qué toma umas breja
E azarar algumas mina
Reforçar o movimento
Um maluco em cada esquina.
Nóis nunca tem muita pressa
E nóis fuma um cigarrinho
Reforçando o movimento
Quem qué tê paz no caminho.
Nóis não é violento, não
Mas nóis tem o pavio curtinho
Por isso, Zé Mané, oi oi oh
Não mexe com que está quietinho.”

Wandi, que teve contato com a música sertaneja através da sua mãe, que cantava em dupla com uma irmã, inclui no CD uma viola, na faixa Harmonia. Como o seu pai era violonista e cavaquinhista, seguiu a trilha.  Em A Benson, Baden, temos um solo de violão sensacional. Mas o disco tem de tudo um pouco. A maior parte é um som que remete ao samba de breque. Ou seja, uma alegria para os ouvidos. Em Fio da Navalha, Cocada, Wanda, Chapéu, na Boca da Mina e Dostoiévski, aquilo que de melhor há no que esse poeta do cotidiano pôs a mão desde que quis premeditar algum breque. Em Dostoiévski, a certeza de que o humor registra sua marca na plenitude.
“Se Dostoiévski viveu lá na Sibéria
E não se congelou
Entre facínoras, dementes, assassinos
E gigolôs.
Se Dostoiévski vivendo na cadeia
A tudo observou
Recordações da Casa dos Mortos
Ele ali gerou.
Por que que eu, vivendo livre em Ipanema,
Nada produzi, xii
Será que o Sol em demasia em minha testa
Foi queimando o meu QI, que é isso...
É muito chato, gente
Me sinto um empecilho
Eu não plantei uma árvore
Não escrevi um livro, não tive um filho.”  

Em Pat, Cão à Toa e Neném, a batida de quem mexe com a música com maestria absoluta. Mas é em A Tua Cara que Wandi homenageia mais uma vez a sua megalópole São Paulo tão mítica, divergente, convergente, plural e insana que é o retrato do Brasil.
“São Paulo, tu és bacana
Tens emprego, cultura e a Mãe Joana
Recebes o branco, o preto, o sacana
Mas és bem melhor pr’aquele que tem grana.
São Paulo, a tua cara
É Marilyn Monroe, Padim Ciço, Sargento O’Hara
Tens gnomos, gaúchos e paus-de-arara
São Paulo, take it easy, vê se para.
São Paulo, se algum te afaga
Te escondes, te fechas, apagas
No entanto, se algum te cospe
A boca fúria de dentes-prédio, súbito esmaga
São Paulo, tu és bacana.”

Enfim, este é um CD que vale escutar para saber que o Premê vive em alma e essência na voz e composições de um dos seus criadores; curtir um som de primeira qualidade e manter o plural Wandi Doratiotto no arquipélago da MPB a surfar entre notas, arranjos e letras. Afinal, precisamos manter nas marés perdidas em maremotos e tsunamis de agora um resto de calmaria em que valha a pena navegar.
 
Este disco pode ser ouvido no Spotify e no Deezer. Ele está também no https://www.letras.mus.br/wandi-doratiotto/discografia/

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Stacey Kent, um caso de amor com a MPB

Por Edmilson Siqueira

Stacey Kent nasceu em South Orange, New Jersey, (EUA) em 1965. Estudou literatura comparada nos EUA e Música e Drama na Guildar School de Londres. Foi onde conheceu Jim Tomlinson, com quem se casou em 1991. E, desconfio, foi aí que começou a nasceu seu amor pela música brasileira. É que Jim, saxofonista dos muito bons e ótimo compositor também, gravou, em 2001, o disco Brazilian Sketches, com a maioria de músicas brasileiras e as norte-americanas com franco sotaque de bossa nova. E convidou a patroa para cantar, ela que já havia gravado cinco discos, ganhado prêmios e grandes referências na crítica mundial como excelente cantora de jazz. Stacey canta quatro músicas, sendo duas brasileiras - Vivo Sonhando e So Nice. 

A partir daí, Stacey inclui em alguns dos álbuns posteriores algumas músicas brasileiras e aos poucos, foi conhecendo melhor o que se fazia, o que já se tinha feito por aqui e a paixão cresceu, já que seu estilo se encaixa perfeitamente nas leves e suaves harmonias não só da bossa nova, mas da boa música brasileira em geral.  

Em 2006, Stacey gravou The Lyrics, que abre com Manhã de Carnaval e segue com Corcovado, além de gravar ainda Outra Vez, mostrando que já estava incorporada a um repertório brasileiro da melhor qualidade. E, em 2009, inclui no disco Breakfast in the Morning Tram a música Samba Saravah que é o nome que recebeu o nosso Samba da Bênção na França, numa versão de Pierre Barouh. A música tocou adoidado nas rádios francesas e até ganhou prêmio por lá. 

O sucesso na França de Samba Saravah e de duas outras músicas francesas de Sergei Gainsbourg (autor de Je T'aime, Moi Non Plus, música proibida aqui no Brasil pela ridícula censura da ditadura e que a turma mais antiga se lembra muito bem), levou-a a gravar, em 2010, Raconte Moi, um disco só com músicas francesas ou com versões em francês, como é o caso da música que abre o disco: nada menos que Les Eaux de Mars, o megassucesso mundial de Jobim, Águas de Março que, na França, ganhou versão de George Moustaki. Resultado: o disco vendeu muito e a música de Jobim estourou nas paradas francesas, com muitos elogios também para a magnífica letra de Moustaki, que incorporou elementos franceses sem fugir do tema, mantendo o clima criado por Jobim.

O sucesso na França levou-a a gravar um show no Teatro Cigale em Paris, que se transformou em disco, com cinco músicas brasileiras de um total de catorze.

E no novo disco de Stacey, gravado em 2013, The Changin Lights,  Stacey revela completamente sua paixão pela música brasileira: nove das 13 músicas são brasileiras. 

Sobre esse CD, que eu recomendo fortemente aos amantes do jazz e da MPB, Zuza Homem de Mello, um grande conhecedor de música que nos presenteou com vários e importantes livros sobre o tema, mostra, no encarte que acompanha o DC, toda sua admiração por Stacey, compara-a até a João Gilberto e se surpreende com sua incrível capacidade de aprender português - não só para cantar - num curto espaço de tempo.  

E acrescenta: "Em suas tournées ao Brasil e nas gravações que realizou, a canção brasileira foi contemplada com novas e surpreendentes intepretações de Stacey, que parecia não ter o menor receio de risco com relação ao ritmo, às melodias e à poesia da nossa música. Sua evolução foi de tal ordem que agora ela não é mais uma cantora americana que sabe cantar em português. Stacey absorveu com tanta sensibilidade a alma da música do Brasil que deus às suas interpretações a essência e a afetividade que caracterizam o grande mestre da interpretação da música brasileira, João Gilberto. A ternura com que Stacey interpreta uma canção é a mesma que deixou a plateia do Carnegie Hall, em novembro de 1962, envolvida por João, Tom, Carlinhos Lyra, Roberto Menescal e mais aqueles jovens músicos desconhecidos nos Estados Unidos que trouxeram o frescor da Bossa Nova para a música. Stacey entrega cada canção com esse perfume fundamental".

Bom, depois desse trecho do encarte, escrito por Zuza Homem de Mello, acho que só posso dizer para que vocês ouçam esse disco - The Changing Lights - e se deliciem com a fabulosa e meiga Stacey Kent.

O CD inteiro está disponível no Youtube Music  - https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_mLPnKRAvH8TR_VUecTaXGDj1oiWOv11Rk

Outros CDs da moça também se encontram na rede e à venda nas boas lojas virtuais do ramo.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Bach na viola caipira e a festa na roça

Por Ronaldo Faria

Imagine o compositor clássico, cravista, regente, organista, violonista e violista  Johann Sebastian Bach a saber que a sua obra viajou do barroco europeu para as cordas de uma viola caipira à terra distante chamada Brasil no longínquo 2017. Ou seja, 267 anos depois de sua morte. Será que ele entenderia a proposta de tal homenagem? E mais, saberia aplaudir a amplitude de tal gesto? Com certeza sim. Afinal, nas cordas de Neymar Dias isso virou realidade e obra de arte. Um Bach que ganha expressão própria que ele não imaginaria existir.  

Artista que toca com maestria viola caipira, guitarra, violão, baixo elétrico, guitarra havaiana e bandolim, Neymar Dias mostra em Feels Bach que a boa música é universal e transcende tempo e instrumento. Ao todo são 20 faixas. Desde as conhecidas Jesus, Bleibet Meine Freude (Cantata BWV 147) e Prélude, Fugue Et Allegro (BWV 998) a composições que não são usuais aos ouvidos daqueles que não têm em Bach um sinônimo de audição constante. No meu caso, acho que ele foi o maior compositor erudito. Talvez por ser um fã do barroco, do som do cravo e daquilo que há entre o sentimento e o silêncio, o sacro e a alma de cada um (apesar de ser ateu). A obra de Bach me traz essa transcendência num espaço tão pouco próprio a reviver sentimentos e paz – a modernidade atual. Mas Neymar Dias transpôs todos os limites dessa geometria sensorial e nos trouxe o erudito em som maior.

Eu o descobri num programa da Rádio USP chamado Revoredo (https://jornal.usp.br/radio-usp/duos-apresentam-a-viola-caipira-e-o-acordeom/). Nele, três duos de viola caipira e acordeão foram apresentados: Valdir Verona e Rafael de Boni; Thiago Paccola e Jonecir Fiori; e Neymar Dias e Toninho Ferragutti. A junção de Neymar Dias com este acordeonista nascido em Socorro (SP) gerou inclusive uma indicação ao Grammy Latino de 2014, concorrendo na categoria de melhor álbum de música raiz com o Festa na Roça. Toninho Ferragutti é outro instrumentista que perpassa a linha da genialidade ímpar.

Seu pai foi Pedro Ferragutti, compositor socorrense que era amigo de meu sogro, o maestro e músico de vários instrumentos Francisco Costa. Enfim, expandindo fronteiras musicais neste texto, o CD Festa na Roça, com suas 14 faixas, é outra pérola mágica que merece ser ouvida em comunhão com aquilo que a arte e o interior do Brasil têm de poético e definitivo – a beleza de dois instrumentos que chegaram a nossas terras com os colonos portugueses e ganharam vida e sonoridade próprias além das plagas lusitanas.  

Nele estão clássicos da música sertaneja tocados de tal forma que qualquer apartamento de cidade grande perde a sua urbanidade para virar um alpendre de casa cercada de serras, pássaros a gorjear e um cigarro de palha a pedir uma dose de aguardente. Tudo num universo de deleite e paz. Um CD que eu defino como marco obrigatório para quem ama o que é bom. Eu, carioca da gema, me rendi ao sertanejo clássico, de raiz, com suas violas e acompanhantes instrumentais, há muito. Talvez, em parte, pela infância nas perdidas fazendas que se banhavam no Rio Real, entre Sergipe e Bahia, à luz de lampião e cheiro de queimadas e grama molhada, a ouvir sanfoneiros nas noites de lua cheia.

Enfim, ficam as dicas, nas cordas e mãos de Neymar Dias: um passeio imperdível entre o erudito e o sertanejo. Assim, há opção para todos os gostos. Onde o principal é saber que a viola com suas dez cordas brincando de cinco pares está mais do que bem representada. Que o instrumento e seu par, aquele que o toca como se ambos fossem um só, são corpo e alma. E viva a eternidade das emoções. Onde São Gonçalo, padroeiro dos violeiros, fica deitado numa nuvem distante, de botas, com sua calça azul e blusa verde, capa marrom e chapéu preto, a se deleitar com aquilo que vida ainda tem de viver e sonhar.

O CD sobre Bach e o Festa na Roça você ouve no Spotify, no Deezer e no Amazon Music. O barroco ainda tem no https://discografia.discosdobrasil.com.br/discos/neymar-dias-feels-bach-viola-brasileira-solo

sábado, 29 de janeiro de 2022

Verônica Sabino a nos olhar

Por Ronaldo Faria

Prometi escrever aqui, aos poucos, sobre os integrantes do Céu da Boca, grupo musical carioca que nos anos de 1981 e 1983 ganhou o prêmio de Melhor Grupo Vocal, conferido pela Associação de Críticos de São Paulo, e marcou seu espaço como a integração de vozes masculinas e femininas num tempo onde o normal era ter quartetos de um sexo ou outro apenas (é o segundo artigo deste blog). Pra relembrar, no Céu da Boca despontaram para o cenário musical Paula MorelenbaumMaucha AdnetMárcia RuizVerônica SabinoRosa LoboPaulo “Pauleira” MalaguttiPaulo BrandãoChico AdnetRonald Valle e Dalmo Medeiros

Aqui vou tratar de um show da Verônica Sabino: Bossa, Balanço e Balada. O DVD é o Esse Seu Olhar. Filha do grande cronista, jornalista, músico, baterista e escritor Fernando Sabino, um mineiro/carioca ou um carioca/mineiro, ela começou a carreira fonográfica solo em Metamorphose, de 1985, com a produção de Roberto Menescal, que a acompanhará em músicas e papo nesse espetáculo.

A partir daí nasceram outros dez álbuns solo entre vinil e CDs/DVDs. Em Esse Seu Olhar ela percorre as décadas de 50/60 do último século musical no Brasil, o bolero e rock de Elvis Presley. Você tem, de certa forma, Geraldo Viramundo, um andarilho criado por seu pai em O Grande Mentecapto, que vai de cidade em cidade em busca da felicidade. Como ela fala no making of, além disso há o prazer do encontro. E este marcou o show que percorreu Ouro Preto, Araxá, Uberaba, Tiradentes, Belo Horizonte e Juiz de Fora, onde foi gravado. A carioca de raízes mineiras de volta ao lar afetivo.

Dos Anos 50/60, Verônica traz para os nossos ouvidos e corações as canções Demais, Ouça, Saia do Meu Caminho, Por Causa de Você, Insensatez, Besame Mucho, Kiss Me Quick, Adeus América e Influência do Jazz.

Em Chega de Saudade, ela chama a plateia a cantar, como no Japão cantaram numa apresentação sua, e sai do palco. Quem estava no Cultural Bar, em Juiz de Fora, naquela noite de março de 2013, não deixa por menos. Segue o instrumental em cada nota, no tempo dela mudar de visual e trazer à vida outros clássicos da Bossa Nova. Vêm Você e Eu, além de Se é Tarde Me Perdoa. Depois, uma homenagem aos 50 anos de O Barquinho, com a presença vocal e no violão de Menescal. Ele que a acompanha ainda em Samba de Verão. Depois, Verônica une numa coisa só duas garotas: a de Ipanema e a Nacional. Uma simbiose perfeita, única e plural. 

O show termina com ninguém menos do que Milton Nascimento, em Nada Será Como Antes. Essa música foi o tema da minha formatura na turma de Jornalismo da PUC em 1981. E de forma incrivelmente real, para mim, nada foi como antes. Mas volta a ser quando revivo Verônica Sabino. Nos 54 minutos de show e nos CDs que tenho dela, o Rio de Janeiro retorna pleno. 

A sua trajetória musical e de outros ex-integrantes do Céu da Boca nos dá conta de que tudo pode ser como antes. Afinal, se você une talento, qualidade musical e vontade, não há porque ser diferente. Neste DVD e em tudo que fez na MPB, Verônica Sabino é a prova viva e universal desse teorema.

É possível ouvi-la neste disco no Spotify, no Deezer e no Amazon Music. Para uma geral dessa musa da MPB, https://www.ouvirmusica.com.br/veronica-sabino/

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Obrigado, Yo-Yo Ma

Por Edmilson Siqueira

De pais chineses, Yo-Yo Ma nasceu em Paris. O pai era maestro e compositor e a mãe cantora. Estudou violino, viola e quando foi para o violoncelo não largou mais. Esse amor pelo instrumento aconteceu aos quatro anos de idade. Aos seis, o primeiro concerto, ao lado do pai. Em seguida, a família se muda para Nova York e aos oito aparece na televisão americana num concerto produzido por ninguém menos que Leonard Bernstein. 

Yo-Yo entrou para a Juilliard School (na qual tinha aulas com Leonard Rose), e passou um semestre estudando na Universidade de Columbia, antes de se matricular na Universidade de Harvard. Nessa idade, pouco mais de 15 anos, ele começou a se questionar se valeria a pena continuar a estudar até que, nos anos 70, o estilo do genial Pablo Casals o inspirou. Aí ele retorna à França para tocar com a Orquestra Nacional da França e com a Orquestra de Paris, sob a direção de Myung-Whun Chung. 

A carreira começa a ficar mais que sólida, pois desde a infância e adolescência, Yo-Yo possuía uma fama bastante estável e havia tocado com algumas das melhores orquestras do mundo. Suas gravações e interpretações das suítes para violoncelo solo de Johann Sebastian Bach são particularmente aclamadas.

Pois bem, esse prodígio que tem encantado o mundo com seu violoncelo, aos 47 anos (hoje ele em 55) reuniu um ótimo time de compositores, cantores e instrumentistas brasileiros para fazer um disco só com a tal de MPB. 

O disco, que poderia se chamar "Obrigado, Yo-Yo Ma" por levar a fina música brasileira mais longe ainda, tem no nome uma situação inversa. É Yo-Yo quem agradece ao Brasil pela excelência de sua música. Um dos textos do encarte diz: "Esta gravação é um tributo de todos eles [Yo-Yo e os artistas], para a rica cultura brasileira que produziu essa única, maravilhosa e variada tradição musical através dos anos".

O time é mesmo dos melhores e produziu um fantástico trabalho tanto instrumental quanto vocal, com escolha de um repertório dos mais sérios e ecléticos. Cesar Camargo Mariano, Rosa Passos, Cyro Baptista, Hélio Alves, Paulo Braga, Sergio e Odair Assad (o Duo Assad), Oscar Castro-Neves, Egberto Gismonti e Romero Lubambo são os brasileiros que participam do disco. A eles se juntaram Paquito d'Rivera e Katrym Stott para mostrar ao mundo uma pequena e preciosa parte do melhor produto de exportação que o Brasil produz: a nossa música. E que atrai gente com o talento de Yo-Yo Ma para registrá-la para a eternidade, dando-lhe novas nuances que acabam por encantar a todos.

O repertório, como disse, é dos mais ecléticos, quase todo instrumental, como Cristal (Cesar Camargo Mariano) que abre o disco. Apenas duas músicas são cantadas, ambas de Jobim e Vinicius e ambas por Rosa Passos: o clássico Chega de Saudade e O Amor em Paz. 

Mas há muito mais. A Lenda do Caboclo de Heitor Villa-Lobos com o Duo Assad; Doce de Coco (Jacó do Bandolim) com Paquito D'Rivera e Romero Lubambo. Dansa Brasileira e Dansa Negra, de Camargo Guarnieri, com o piano de Katryn Stott. Apelo (Baden Powell e Vinicius). O famoso 1 a Zero, choro de Pixinguinha, com Paquito, Romero e Cyro. A sensível Menino, de Sergio Assad. 

Um sucesso instrumental de Cesar Camargo Mariano também está presente. É Samambaia, do disco do mesmo nome. A música seguinte é nada menos que Carinhoso, de Pixinguinha. Alma Brasileira, de Villa-Lobos, Bodas de Prata e Quatro Cantos, ambas de Egberto Gismonti se unem numa só faixa, com o próprio Egberto ao piano. 

O disco iria terminar com um apoteótico Brasileirinho, de Valdir Azevedo, onde a clarineta e o violoncelo de Paquito e Yo-Yo se complementam fantasticamente. Mas há uma faixa bônus, Salvador (Egberto Gismonti) onde os dois praticam algumas peripécias encerrando o disco com um som futurista que se mistura a um longo e triste solo de cello.

Ouvir todos esses clássicos da MPB convertidos para os pungentes sons do violoncelo de um grande artista, além do prazer imensurável que dá, é prova cabal da riqueza da nossa música. 

Num longo texto de Philip Huscher no encarte do disco, está escrito: "O Brasil, vislumbrado nos instantâneos musicais desta gravação, é uma terra definida pelo seu ecletismo, pois em nenhum outro lugar do mundo os sons da África, da Europa e da América se unem para fazer uma música tão distinta e atemporal." 

Além de concordar totalmente com Huscher, deixo aqui meu agradecimento não só a Yo-Yo Ma pelo grande trabalho, mas a todos que se uniram para produzirem essa espécie de tesouro musical, onde a MPB se mostra em todas as suas belas faces.

O disco Obrigado, Brazil está disponível no Youtube    https://www.youtube.com/watch?v=4NdNgh0z8JA além do Spotify, Amazon Music e Deezer.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

A ópera que Cazuza não viu

Por Ronaldo Faria

O CD Cazas de Cazuza – A Ópera-Rock é de 2000. Dez anos após a sua morte, vítima da Aids. Dos discos que homenagearam de alguma forma o grande poeta da minha geração, este é certamente o que eu mais curto. A obra de Cazuza ou o que foi feito sobre ele, tenho tudo em CD ou DVD. Um dia escreverei sobre um ou mais deles. Nunca é demais falar desse carioca da Zona Sul e do mundo, frequentador do Baixo Leblon, das noites e madrugadas do Rio, morto em 7 de julho de 1990, aos 32 anos. Com uma carreira musical curta, de dez anos, ele ajudou a revolucionar o rock brasileiro, num período que esse gênero trouxe novidades incríveis para o cenário nacional. Na verdade, é desse período a maior safra de grupos do rock tupiniquim. A lista é imensa: Os Paralamas do Sucesso, Ira, Barão Vermelho (onde Cazuza esteve), Titãs, Kid Abelha, Legião Urbana, Capital Inicial, Engenheiros do Hawaii, Blitz, Ultraje a Rigor, RPM, Biquíni Cavadão, Nenhum de Nós, entre outros. 

Infelizmente não assisti esse musical ao vivo à época. Mas descobri há anos o seu som. Ele traz temas como o preconceito, sexo, drogas, amor, bares, exclusão social, noites e desemprego, cotidiano da gente Ou seja, a vida de muitos de nós quando nos jogamos à vida. Escrita e dirigida por Rodrigo Pitta, essa ópera voltou no ano passado aos palcos. Em dois atos, mostra o mundo de jovens do Baixo Leblon através da música do seu poeta. Quando foi lançada, em 2000, marcou a chegada de um estilo que os palcos brasileiros não estavam acostumados: um espetáculo musical com ares da Broadway.

Este CD – que pode ser ouvido na íntegra no Spotify (https://open.spotify.com/album/46IIkUE0ndfZbtuhobhNw9) – é uma entrega a muito daquilo que Cazuza nos legou. Em Brasil, a interpretação está incrível. Algo que o seu criador certamente aplaudiria por manter e ampliar a essência de uma música cada vez mais atual, diante de um país entregue à sua própria sorte. Mas não só. No pot-pourri que reúne Blues da Piedade e Pro Dia Nascer Feliz, a essência de várias vozes a invadir o universo de Cazuza, assim como em Obrigado a se misturar com O Quereres, de Caetano Veloso. 

Na verdade, todo o disco é de se ouvir várias e várias vezes, como já fiz muitas e muitas vezes. Os arranjos são bem feitos, todos atores/cantores compõem uma plêiade que vai além de sete e chega aos oito donos do palco com maestria absoluta. A verdade é que o CD, quando roda, passa rápido, apesar de ter 70 minutos de duração. E quando chega ao fim com Um Trem Para as Estrelas, Pro Dia Nascer Feliz e O Tempo Não Para, a vontade é que Cazas de Cazuza continue a trazer o poeta de volta. Mas, como trazer de volta quem nunca se foi? Nessa ópera-rock, a certeza de que o artista se vai mas sua obra está perpetuada às futuras e incontáveis gerações.

Se quiser saber mais sobre Cazas de Cazuza vá a https://pt.wikipedia.org/wiki/Cazas_de_Cazuza

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Vamos nos perder, Chet!

Por Edmilson Siqueira

"As notas que ele escolheu tinham uma profundidade incrível que realmente me atraiu. Mas Chet não só tocava. Ele também podia cantar."

Essas frases foram escritas por ninguém mesmo que Herbie Hancock, 81, pianista, compositor e um dos grandes mestres do jazz, e estão no encarte do disco Let's Get Lost, trilha sonora do filme do mesmo nome, um excepcional documentário sobre a turbulenta vida de Chet Baker produzido por Bruce Weber. 

Um dos maiores trompetistas de jazz de todos os tempos, Chet Baker também conquistou milhões de fãs com seu jeito suave de cantar, diferente de tudo que havia em termos de canto até então nos EUA. 

A trilha é um dos exemplos dessa, digamos, versatilidade, do moço bonito que surpreendeu o mundo com seu jeito de tocar e, depois de cantar. E viria a surpreender mais ainda, pois atrás daquelas feições suaves da juventude e daquele som tranquilo e certeiro, havia um viciado que teria sua vida conturbada e limitada pelas drogas e pelo consequente envolvimento com a polícia.

O documentário ganhou prêmios e é descrito como uma sincera biografia, que não poupa os piores momentos, principalmente nas entrevistas com pessoas que conviveram com Chet. A vida de Chet foi o oposto de suas apresentações, marcadas pelo talento de um músico único na história do jazz.

Ele deixou vasta obra gravada, mas morreu pobre, e até hoje se discute se seu fim se deu por suicídio, assassinato ou acidente. O fato é que ele foi encontrado morto numa calçada na Alemanha, depois de uma queda de quatro andares. Dizem que ele estava tentando deixar as drogas à época, quando realizou alguns concertos naquele país que, aliás, viraram dois discos.  Mas não se tem certeza. 

No disco, Chet Baker começa cantando Moon & Sand (A. Wilder, M. Palitz e W. Engwick) e faz um belo intermezzo ao trompete. É uma música triste de um amor perdido, como será todo o disco, como parece ter sido a vida de Chet. 

Mas nem por isso se trata de um trabalho menor, pelo contrário.  As músicas da trilha sonora do filme foram escolhidas de modo a se relacionarem com o que a tela mostra. Imagination (J. Burke e J. Heusen) que vem a seguir, também aborda um amor que só "se imagina". 

For Heaven's Sake (E. Breton S. Edwards e M. Duchess) o próprio nome já está mostrando o apelo à amada para que ela o ame "pelo amor de Deus". 

Every Time We Say Goodbye (C. Porter) é um clássico de jazz, com dezenas de gravações, e nela Chet coloca um tom intimista, quase um fio de voz a cantar as agruras de um adeus, seguida por um improviso no trompete tão pungente quanto seu canto.

I Don't Stand a Ghost of a Chance With You (V. Young, B. Crosby e N. Washington) é mais uma triste canção onde o desejo de conseguir a amada se dissolve na constatação de que tudo só pode ser um sonho. 

Todas as músicas do disco vão mais ou menos na mesma linha, mas não se trata de um disco que poderia enjoar, pelo contrário. O talento de Chet tanto para cantar esse tipo de música quanto para seus longos solos e improvisos, compensam qualquer clima mais pesado e transformam a experiência auditiva em algo prazeroso. 

Um dos destaques do disco é, quem diria, Antonio Carlos Jobim. Trata-se da mais longa música do disco (7m33s), talvez a única de Jobim que Chet gravou. É a famosa Zingaro, primeiro nome dessa música antes que ela recebesse a letra de Chico Buarque e se transformasse em Retrato em Preto e Branco. A letra, quando dessa gravação, já era conhecida, mas aqui é tão somente instrumental, com Chet passeando por toda melodia com seu trompete e, novidade no disco, um violão estilo bossa nova ao fundo, que também improvisa em boa parte da música, num ritmo mais balanceado do que o restante do disco, além de um longo improviso também do contrabaixo. Parece ser a música escolhida pelo conjunto para que todos mostrassem suas qualidades jazzísticas. É o momento, digamos, mais "alegre" de toda a gravação.

As outras quatro músicas que fecham o disco mantêm o clima sombrio, os amores impossíveis, enfim, o clássico repertório de Chet Baker que o tornou um ícone do jazz, que não deixou seguidores, mas influenciou muitos outros músicos e cantores. 

Em outro trecho do texto no encarte do disco, Herbie Hancock escreve: "As notas tornaram-se pivôs conectando os acordes. Sua intuição era impecável, suas escolhas musicais eram perfeitas. Foi então que descobri a grandeza de Chet Baker."

O documentário está disponível na Internet e pode ser acessado em https://insheepsclothinghifi.com/chet-baker-documentary/

O CD pode ser ouvido inteiro nesse endereço: https://www.discogs.com/pt_BR/release/1314441-Chet-Baker-Chet-Baker-Sings-And-Plays-From-The-Film-Lets-Get-Lost

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...