segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Questiúncula

 Por Ronaldo Faria


-- Não vai pedir um sanduba?
-- Pra quê?
-- Para ficar mais forte e assim poder sobreviver.
-- Quer que eu te mande ir para a puta que pariu agora ou depois?
-- Sei lá. Fica à sua vontade.
Na mesa do bar, abarrotada de cascos mil, Gabriel, que nada de anjo tem, mas chora hoje até de comédia pueril ou medalha de Olimpíada, não sabe mesmo o que responder. Logo, melhor mesmo um puta que pariu. Quem era Sandoval para lhe dar conselhos? Logo ele, um putanheiro de carteirinha.
-- De boa, prefiro outra gelada. E que chegue logo pra ser tragada.
O dia tinha sido de marasmo profícuo. Desses marasmos sem fim que ninguém quer descobrir. Talvez um crepúsculo orgástico e débil, fatalidade quântica e tântrica, o inusitado fado que percorre as terras causticantes de um Nordeste infértil. Coisa de lembrança tênue e na parcimônia que nos flagra em cada noite bêbada, boêmia e trôpega, mesmo que estejamos a meio metro da cama que acolherá o corpo do aprendiz de poeta e esteta.
O garçom, solícito e em busca dos dez por cento, traz uma daquelas de perna de servente de obra. Na verdade, de perna de velho. E logo nos lembramos da foto da mineira então casada com um mineiro e que nos fez levar ao Rio uma baiana de barro sem quebrar e sem cobrar um centavo sequer. Emoções boas não se cobra e nem se desdobra. Tudo vale por ter valido.
-- Tem certeza de que não vai comer nada?
-- Sim.
-- Mas amanhã vai ser a ressaca programática. Uma dor de cabeça e o andar maluco de não saber o porquê do barulho da noite anterior...
-- Eu encaro tudo de frente como sempre fiz. Afinal estarei aqui no amanhã?
Gabriel não deixava de ter razão. Quem lhe garantia que não morreria na noite que se antecede logo ali? Tantos assim já se foram. Até quem se enterrou com a camisa do Timão. Aos poucos o tempo se destempera e obriga o escritor a escrevinhar linhas tortas e métricas na tela branca que se forra de letras pretas. Coisa do destino, bazofia sem fim. Ou um filme que diz como era gostoso o meu francês. Aliás, foi essa língua que salvou o pobre menino no vestibular, quando ainda era possível optar.
-- É verdade que a sandália antiga hoje simplesmente se quebrou?
-- Pra você ver...
-- Então vamos nos ver nalgum tempo sem nos ver?
-- Quisera saber, quisera saber...
Na questiúncula mínima e semântica daquele que não sabe como sabe o tal português, na verdade sabe sequer como chegou aqui sem conseguir sequer digitar de forma rápida o não, ficam a loucura de achar que a vida de depois há e tudo é apenas mera ilusão. Senão, vivamos segundos sem lucidez ou retidão.
-- Quer saber, somos um 171 que se deu bem e deu certo. Mas o que é se dar bem ou certo? Se acima do chão e ainda na trilha, tanto faz...

(Com Zeca Baleiro)

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