sábado, 28 de setembro de 2024

O enterro da Jacinta

 Por Ronaldo Faria


- Você só pode estar de sacanagem querendo que eu vá ao enterro da Jacinta. Sinto muito, mas eu é que não vou!
- Mas, Cristiano, é sua irmã!
- Você que está dizendo. Pra mim, não é. Está com dó, jogue rosas você no caixão!
A roda de samba rolava com terra levantando e limões regados de cachaça a descer. Hemeregildo queria convencer a todo o custo Cristiano a ir ao enterro da irmã. Tudo bem que a Terra não sentirá falta nenhuma da defunta fresca e seus feitos estarão restritos a um hiato que de nada servirão nem de orelha de livro na existência finda. No som rola Dona Ivone Lara, que descansa ao lado do pai e com o filho e o espírito santo a tocarem repenique e pandeiro. Os anjos fazem o backing vocal e os instrumentos necessários para ela. Já para Jacinta, nem Pedro, o Pedrão da Porta, compareceu para deixar entrar. “Tenho mais o que fazer”, disse ele a um assistente virginal. “Mande descer pro limbo e já está bom demais” – sentenciou.
- Mas Cristiano, isso é heresia!
- Nem sei que merda é essa, mas se for um vá com Deus, está bem dito. E saravá Omolu.
- Como faço pra te convencer?
- Não faz. Você viu que o Cacique de Ramos vai sair logo mais? Aliás, já estou atrasado para a concentração.
- Se a gente pegar o trem chega rápido no Caju. A gente desce na passarela da Avenida Brasil e estamos lá... depois vamos no desfile.
- Hemeregildo, vulgo Gil da Feira, você já foi tomar no meio do cu? Vá e veja se é bom!
A tarde caía do céu com raios fulgidos, fugidios e fugazes. Coisa de poesia pura ou samba enredo raiz. A resenha dos amigos, porém, era como discussão de terra plana ou redonda. Uma zona proverbial. Ninguém nunca chegaria num ponto final.
- Sabe que hoje pela manhã eu achei que estava enfartando? Tinha certeza de que ia apagar também. Ser recolhido no rabecão e ficar à espera de alguém para me enterrar? Pois é. Fiquei no meio do fio da faca, mas estou aqui. A beber, ouvir o samba rolar, na expectativa de virar o Centro com o Cacique. Quero mais do que isso? Não! Então, larga do meu pé!
- Tudo bem, parei. Só pensei na Dona Eulália, que gostaria de ver você no enterro da filha dela.
- Você lembra que a Dona Eulália, minha santa mãe, já morreu há quase quatro anos?
- Eu sei. É que tem o espírito a vagar...
- Não tem mais. Agora é estrela brilhando no céu. Aliás, estou atrasado para a ala dos compositores do Cacique. Fui! Everaldo, pendura mais essa! Pago no quinto dia útil do mês que vem, como sempre.
Cristiano, Cristo num ano qualquer, como quis seu pai, austero e católico crente, saiu e tomou rumo do Centro. Nele, viveria sua vida. Saberia que tudo aquilo que o passado trouxe em replay era mera mentira do amor, coisa efêmera. Agora só restava esperar uma nova fêmea, o batuque sincopado e a certeza de que viver é sempre esperar o dilúvio que a finitude trará. No céu, uma chuva fina trazia o fim do sufoco dos foliões. Na capela funerária, vazia, a irmã cheirava a vela queimada.

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