quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Mistureba de gêneros em exatidão

 Por Ronaldo Faria


O bar está botecateado entre as garrafas de cerveja e o carteado. No truco, que para Souza até hoje é igual a turco (nunca saberá), as apostas e gestos de olhares e mãos tomam conta da cena. Grata surpresa é a gata cor de mel que chegou no lugar para ronronar por um pedaço de linguiça mineira apimentada e acebolada. Manfredino, tinha um zap nas mãos (seja lá o que isso possa ser, mas deve ser bom) e queria decidir a partida ali. Mas, esperto, tão perto da derrota que decide jogar o tudo ou nada, Valêncio levanta a mão e diz que não aguenta mais segurar: “Tenho que ir no banheiro!”
A regra do jogo era sagrada: pediu pra mijar, tem que parar. Os outros três da mesa não têm como negar. Baixam as cartas e pedem mais um balde de cervejas. Afinal, quem perder paga. E até a jogatina acabar há muito a se beber e jogar. Valêncio, na crise da meia idade, aproveita a ida ao mictório para olhar as mesas que ainda restam com corpos a rodear. Numa delas vê Ofélia, um tanto de menina no pouco de velha. Era bela? Era. Talvez como um amanhecer no luar pirotécnico que meteorologistas disseram ser de sangue. Senão, melhor do que a gozação que sofreria ao perder outra nova rodada.
 
No som que saía das caixas acústicas, um tanto de resto de Wando e o que poderia vir (agora parei de escrever para ver o que irei escutar).
 
Entra Benito de Paula. Paulatinamente, feito semente que brota de forma descomplacente, surge um samba que urge na brincadeira de ouvir e escrever. Mas qual, Valêncio já tinha esquecido a urina de mentira e pregado os olhos em Ofélia. Os três da mesa? Que se virassem da forma que quisessem. A mulher em questão era melhor que qualquer rainha, fosse de que naipe fosse. Ouro? Valia mais. Copas? Haja coração! Espadas? Só se for pra arrancar o peito que se entregava. Paus? Quem dera o seu se fizesse ereto diante do fato. Dono de si, decide ir até a mesa onde estava seu alvo sentado.
-- Boa noite. Meu nome é Val (ele tinha vergonha do Valêncio e achava que seus pais o odiavam desde o nascedouro).
-- O meu é Ofélia (ela curtia assim se chamar ao saber que era personagem importante de um autor inglês e que um dia um príncipe ela enfim encontraria).
Na mesa do truco, seus adversários não entendiam a demora.
-- Será que ele está com a bexiga presa?
-- Acho que não. Pode ser que a fila esteja grande?
-- Não. Deve ser entupimento da glande.
Mas qual. Valêncio e Ofélia estavam numa prosa prosaica em que prosopopeia e eufemismos se misturavam ao léu. Falavam de passado, de presente e, quiçá quem sabe, futuro soturno. Afinal, entre um furo e outro que o amor deixa nas paixões derradeiras sempre há espaço e fresta para o furto de um amor brejeiro.
E como a vida não deixa deixas para o ator do momento fazer da alegria lamento ou vice-versa, ambos brincam de direitos, dinheiros, sujeitos e defeitos. Tudo em ordem na desordem indevida e imperfeita da vida. O restante, batismo de bamba ou babalorixá, é apenas pena da galinha que foi degolada na encruzilhada mas não depenada.  Talvez uma farofa sem sal, a garrafa de pinga que nunca foi marafo, o prato de barro no parto que a gira fez girar.
-- E depois? – perguntaria o mais sábio dos raros leitores.
Sei lá! Que cada nota, letra, sílaba ou verso sejam apenas a loucura de descobrir que o truco é o enigma que um tal carioca de raízes nordestinas nunca saberá se é malandragem ou sorte do destino. Nos goles que saem dos copos e transbordam nas línguas de Valêncio e Ofélia, pouco ou nada importa. A porta fechada da casa empoleirada no refeito e rarefeito mundo é uma espécie de ninho, desses que nem marca de leite em pó pode se apropriar. Detrás dela, os dois se amam em louvor. Na mesa do bar, o trio, cansado de beber e esperar, paga a conta e vai dormir ou vomitar.

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