segunda-feira, 3 de novembro de 2025

No luar sem fogo

Por Ronaldo Faria


Há uma grande lua lá fora. A chamam de Lua de Sangue, mas é apenas dourada. Não há vermelhidão qualquer ao seu redor. Logo, não existe sangue a escorrer pelas suas bordas. Nas entranhas, saber-se-á. Talvez sim, talvez não. Talvez São Jorge tenha, ao menos hoje, esquecido de transpassar com a sua lança o inexistente dragão. Quem sabe algum poeta ou amante tenha pedido um momento de paz em meio à tristeza que permeia o lugar...
Assim estava Samuel, a sumir de si para viver o sonho de felicidade no meio de tanto concreto da cidade. Na sua idade, há muito depois de qualquer cabo onde ainda haja esperança, ele apenas segue, cego de ilusão, entre esquinas desconhecidas que parecem a cada dia se transformar num limbo sem par. Um ou outro poste sequer tem mais a luminária acesa. Escuridão e claridade aos poucos viram somente a semente de algo em tons que brilham sob a lua e seu clarão ultramar.
Insone, a ouvir um violoncelo que soa solitário na janela entreaberta, entorpecido de saudades mil, lembranças perdidas e desejos que irão com ele à última morada que nada mais é do que as chamas em brasa, Samuel relembra o sonho num bordel. Cercado de belas mulheres, todas lúdicas e loucas, como ele, a dançar boleros que alguém, numa ravina, dedicou a Ravel. Bêbado, (in)feliz na sua loucura, a beber goles de luxúria, era somente aquilo que tinha que ser. E nesse momento nem precisa de mais nada. O tempo, as células que por algum motivo decidem que é hora de morrer, tomam seu tempo.
-- Que o destino não me apronte mais essa. Lucrécia, não! Se ela se for, que razão mais haverá?
Entregue ao nada, extirpado das partes mais lúcidas que ainda o habitam na forma de aluguel em que se é despejado por falta de pagamento, ele apenas olha a lua que se ergue soberba para os amantes e lunáticos dos hospícios e pede, sem verve, que o destino rompa todo o seu desatino e preserve a amada de sofrer. Sem prosas e versos, arrependimentos e credos, ele é só um ser só a observar a lua que sobe cada vez mais para sumir no fim do céu. Ou, quiçá, acordar com a claridade do sol que a deixou de ninar e aninhar. Na rua, em alta velocidade, a cidade segue seu rumo e destino.
 
(Ao som de violoncelos)

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