quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A viola da Filarmônica que rompe veredas

Por Ronaldo Faria

A viola caipira é incrível, coisa sonora que fala por si e nos remete às plagas mais recônditas da alma do sertanejo, do brasileiro que descobriu com o passar dos tempos, neste instrumento vindo de Portugal com nossos colonizadores, uma assinatura melódica do Interior de São Paulo, do Sul de Minas Sul, de Goiás, Mato Grosso e Norte do Paraná, principalmente. Mas tem a viola nordestina também. Todas arraigadas nas cordas de aço e nas mãos do violeiro que a toca a criar notas mil. Hoje eu vou falar sobre a Orquestra Filarmônica de Violas, criada em 2001, com sede em Campinas e que tem três CDs – o Orquestra Filarmônica de Violas I e II e o Encontro das Águas gravados. O primeiro é de 2005, o segundo foi gravado em 2010 e o terceiro é de 2017. São três CDs que não podem faltar para quem ama esse instrumento e a música de raiz. E uma notícia prazerosa: este ano o grupo completa 20 anos de vida sonora. Logo, que mais 20, 40, 60 e tantos outros venham pela frente!

O primeiro disco, o Orquestra Filarmônica de Violas, tem 14 composições e 33 violeiros. Todas elas clássicos do gênero. Logo na abertura tem Vide, Vida Marvada, do grande Rolando Boldrin, a quem vou dedicar um texto obrigatoriamente logo mais. Nessa música, o arranjo do diretor musical do grupo à época, Ivan Vilela, um ícone e uma referência no estudo das raízes da música brasileira, mantém o lirismo e a poesia melódica. Depois vem Estrada da Vida, de Zé Rico, com vozes de João Paulo Amaral, que viria depois a assumir o lugar de Vilela como diretor musical, e Messias. Daí segue com Canoeiro, de Alocin e Carreirinho, clássico que o ex-presidente JK amava; Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, numa prova de que o Nordeste pode respirar na viola; a eterna Chalana, de Mário Zan e Arlindo Pinto, com batida no fundo da viola a marcar uma percussão; e Luar do Sertão, de Camilo da Paixão Cearense e João Pernambuco, outro marco da MPB, que tem as vozes de Osório e Ana Luiza ao fundo. 

Na sequência temos a bela Arredores, música e solo de Vinícius Alves; Rio de Lágrimas, composta por Tião Carreiro, Piraci e Lourival dos Santos, uma epopeia de Piracicaba e clássica memorável; Vaca Estrela e Boi Fubá, do poeta nordestino e brasileiro Patativa do Assaré, num ritmo melancólico e que remete às tardes de sol a cair; De Papo Pro Ar, dos grandes Joubert de Carvalho e Olegário Mariano, executada pelo Trio Carapiá; A Moda Mula Preta, de Raul Torres; e Cabocla Tereza, de João Pacífico e Raul Torres nas vozes de duas deusas da MPB – Suzana Salles e Ná Ozetti. Daí rola O Menino da Porteira, de Teddy Vieira e Luizinho, que dispensa falação; e finalmente, para fechar o CD, um pouco de respirar São João com Pula Fogueira, de Amor de João Bastos Filho. E haja vontade de ouvir de novo.

No Orquestra Filarmônica de Violas II, com 21 violeiros no dedilhar, há o início de uma virada de composições e alvo, com um trabalho mais esmerado, abrangente além do sertanejo (que continua como mote) e de beleza inconfundível. Ao todo são 12 músicas. Começa com o Você Vai Gostar (Casinha Branca) do monumental Elpídio dos Santos; vai para o clássico Romaria, de Renato Teixeira, de quem um dia falarei. Ela tem a voz de Ana Gilli para abençoar quem vive como caipira; vem então Primavera Pantaneira, de Messias das Violas e Vinícius Alves, num estilo “rasqueado”; e chega a Correnteza, do Maestro Soberano Tom Jobim com Luiz Bonfá, numa prosa de que o instrumento vive para brincar de poesia. A letra tem a voz do grande Renato Braz, que foi tema de um artigo do Edmilson Siqueira aqui no blog; Anastácio, de Anderson Batista, e a folclórica e eterna Índia, de José Asunción Flor e Manuel Ortis Guerreiro, com versão de Zé Fortuna e a voz de Tetê Espíndola dão o tom depois. 

O Orquestra Filarmônica de Violas II continua com Improviso, de Antonio Madureira, na beleza das violas do Duo Catrumano; Cana Verde, de Tonico e Tinoco nas vozes de Messias da Viola e Osório Cardoso; a eterna Chico Mineiro que João Paulo Amaral e Osório Cardoso cantam no clássico de Tonico e Francisco Ribeiro; Campo Branco, do incrível Elomar, com Lenine Santos a cantar; a Coisa Tá Feia, de Tião Carreiro e Lourival dos Santos; e finalmente São Jorge, daquele que é um mito da MPB – Hermeto Paschoal. Ou seja, música para todos os gostos.

No CD Encontro das Águas há as seguintes músicas: Viola Chic Chic (Tião Carreiro e Zelão), Bachianas Brasileiras nº 5 - Ária (Heitor Villa-Lobos), Fé Cega, Faca Amolada (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos), Tocando em Frente (Almir Sater e Renato Teixeira), Alvorada (Chrystian Dozza), Encontro das Águas (Tavinho Moura), Terra Clara (João Paulo Amaral e Luis Felipe Gama), Lamento Sertanejo (Dominguinhos e Gilberto Gil), Brejeiro (Ernesto Nazareth) e Going to California (Robert Plant e Jimmy Page). Ou seja, um passeio por gêneros e tempos onde a viola caipira se inclui e se faz. Até no rock britânico de Led Zeppelin. Neste CD, 17 violeiros resistindo ao tempo e provando que a cada novo disco do grupo há uma amplitude de proposta e a coisa fica ainda melhor. Ou seja, o tempo lapida o diamante que sempre foi de milhares de quilates, mas vira algo maior com cada ano vivido e tocado.

Como disse o diretor musical João Paulo Amaral ao blog Cantares e Esquinas (https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/05/filarmonica-de-violas-de-caipira-ou.html). “A gente não tem vontade de fazer a música tradicional de viola simplesmente como ela foi composta há 50 ou 60 anos. A gente tem necessidade de botar um pouco da nossa geração e mostrar essa possibilidade que a viola traz justamente com a linguagem da música caipira junto com a técnica que a viola vem ganhando nos últimos anos. A abertura de ser um instrumento que toca em diversos universos, não só da música de raiz, como no choro, na música instrumental e muito mais. Há coisas que estavam desde nosso primeiro disco. Estamos dando sequência nisso. Mas há mais. Pensando em responder a esse anseio de todos nós de querer fazer um disco mais sofisticado que o anterior, no sentido do desafio, ao mesmo tempo que o grupo é heterogêneo. Tem gente aqui que ainda não é profissional e os arranjos têm de conceber essas condições de ter um naipe mais simples. Mas o arranjador mesmo assim tem condições de fazer coisas bacanas. Logo, não é dizer que é tudo complicado. A gente usa a inteligência desses arranjadores que trabalham junto com a gente, a maior parte sendo do próprio grupo, para tirar o melhor da orquestra. E trazer desafios.” 

Para Amaral, “o terceiro CD é, com certeza, um disco que demandou muito esforço de cada um, de estudo individual. Eu gosto de lembrar que alguns, por conta do disco, passaram a fazer aulas de música em paralelo, para conseguir facilitar esse processo de aprender arranjos novos. Então, isso é um fato que mostra o movimento do grupo. Ou seja, não é nada vertical do tipo tem que fazer isso e pronto. O próprio grupo é que está se movimentando. E esse é o interesse que a gente tem: de mostrar a viola e ainda mais com a coisa dos solistas, algo que foi um desafio e traz um pouco mais de responsabilidade para a gente. Ao chamar e integrar no projeto caras como Nailor Proveta, Toninho Ferragutti, Fabio Presgrave, Chrystian Dozza, Alexandre Ribeiro e Ricardo Herz, cada um que é exponencial na sua área, a gente quis fazer um trabalho que justificasse chamar esses camaradas. Não é uma coisa a reboque, do tipo tem um figurão lá que foi dar uma força. Não. Nós queremos fazer um trabalho que justifique a presença deles e que eles se sintam felizes de participar de um trabalho como o nosso.” Ou seja, nos preparemos para novos voos para os próximos anos. Com a benção de São Gonçalo do Amarante e quem mais for.

O Orquestra Filarmônica de Violas I e Encontro das Águas podem ser ouvidos no Amazon Music, no Spotify e no Deezer. Já o Orquestra Filarmônica de Violas II não está disponível nessas plataformas.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Mais dois resgates musicais do Farol...

Por Edmilson Siqueira

Gil e Jorge

Ele estava escondido no meio da estante de CDs, um trabalho único realizado em 1975 por dois dos maiores compositores e cantores brasileiros e agora tem estado em primeiro lugar no hit parade lá de casa. Gil e Jorge eu tinha em vinil. Até sei onde desapareceu: ficou na casa de um irmão ou cunhado de um amigo chamado Pardal. Acho que foi uma festa, eu levei o disco, esqueci lá e nunca mais voltei para apanhar. Por quê? Sei lá.

O fato que interessa é que muitos anos depois ele foi reeditado em CD e eu fui um dos felizes compradores. Saiu numa série chamada, muito a propósito, Colecionador. A impressão que se tem é que colocaram os dois geniais músicos dentro do estúdio e, sem ensaio, eles começaram a cantar, deixando que o talento de cada um se encarregasse de tudo. E não deu outra.

O CD começa com uma oração, Meu Glorioso São Cristóvão, de Jorge Ben (naquele época ele ainda não era Benjor) que, parece, o Gil não sabe a letra. Vai repetindo tudo o que Jorge canta, em 8 minutos de gravação. Depois vem aquele suingue que Gil fez em Londres e que por aqui ninguém entendeu, Nega, com 10 minutos de música e improviso de deixar gringo babando. Outros 10 minutos são ocupados por Jurubeba, do Gil também, uma brincadeira com todas as qualidades medicinais da planta, num ritmo alucinante. 

Quem Mandou, de Ben, é “curtinha”: apenas 6 minutos e 46 segundos desse ‘sambalada’ romântico, delicioso. Depois temos 12 minutos do clássico Taj Mahal, talvez a mais elaborada do disco, com percussão e contrabaixo. Depois vem outra de 6 minutos: Morre o Burro Fica o Homem, composição bem ao estilo de Jorge Bem, seguida de mais uma brincadeira de Gil, Essa é Pra Tocar no Rádio, que parece ter sido feita no estúdio mesmo, já prevendo que o disco jamais cairia nas graças dos programadores de rádio. Ainda mais que os dois não faziam parte dos esquemas de mutretas que imperavam (imperam?) nas emissoras. O clássico Filhos de Ghandi também mereceu 12 minutos de pura magia nas vozes e violões dos dois.

E, para encerrar, um sarro. Pois é, a música chama Sarro mesmo e, para espanto geral, só tem 1 minuto e 23 segundos. É apenas um batuque com Gil improvisando uns sons, encerrando essa verdadeira jam session tupiniquim, na voz e no talento de dois dos maiores representantes da MPB que já aportaram por esse planeta musical chamado Brasil.


O samba não morre

Como o verão anda meio reticente – talvez nesse domingo ele já tenha se instalado por aqui, mas quando escrevo, 6 dias antes, as manhãs ainda têm um arzinho frio e nas noites não dá para ficar no terraço bebericando uma Bohemia – eu vou tentando melhorar o clima ouvindo um sambista da gema, desses que fazem samba como se conversassem com a gente, tal a fluidez da melodia, a precisão do ritmo e a beleza das letras. Estou falando de Moacyr Luz e seu último CD, Samba da Cidade, que anda em primeiro lugar na parada de sucesso lá de casa.

Moacyr está com 45 anos (ele é de abril de 58), carioca e cada vez melhor. Também pudera: além do talento para fazer samba, se alia a parceiros como Aldir Blanc, Martinho da Vila, Paulo César Pinheiro, Nei Lopes e Luiz Carlos da Vila. Às vezes inverte a proposta: faz a letra e Wilson da Neves, por exemplo, faz a música. E tome samba das melhores lavras. 

O CD flui calmo, sem arroubos de avenida mesmo quando canta, com Martinho, a querida Vila Isabel (Afilhada da Portela /Olhei pro céu e vi /Jaburu, Waldir, Monarco/Diz como te amo Vila Isabel). Ou então quando homenageia o grande Lan, numa parceria com o genial Aldir Blanc. Lan, um mito entre os desenhistas brasileiros, é retratado pela fina pena de Aldir como num samba-enredo que acaba se tornando uma homenagem a muitos outros artistas que passaram pelo traço de Lan.

Um dos pontos altos do CD é um samba de Moacyr com Paulo César Pinheiro, onde o tema é ninguém menos que o velho Pixinguinha. Chama-se Som de Prata e tem um arranjo que mistura na flauta temas do genial Pixinga. Algumas das músicas nos remetem às origens africanas, como uma das classificadas num festival da Globo – Eu Só quero Beber Água – ou então à saudável e antiga malandragem carioca, como em Briga de Família, um delicioso samba de costumes.

Moacyr Luz é uma dessas provas de que o samba agoniza, mas não morre. Nesses tempos em que o samba começa a retomar seu lugar – ocupado por uns tempos pelos nefandos pagodes, hoje restritos a programas de televisão classe C – é muito bom saber que tem gente que leva o samba à posição que ele merece, num trabalho sério, honesto e que não tem como único objetivo a caixa registradora da gravadora e os bolsos dos “artistas”. Moacyr Luz faz samba e cultura. Daqui a cem anos, ninguém vai se lembrar dos tchans da vida. Mas Moacyr é presença obrigatória em qualquer enciclopédia da música popular brasileira.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Chico a fechar o clã Adnet

Por Ronaldo Faria

São dez faixas em 30 minutos. O CD, de 2018, traz a assinatura pessoal de todas as composições desse carioca de família vocal e genial e uma única parceria – em Eu Quero as Tuas Canções, onde o dono do piano, Chico Adnet, assina a música junto com Luiz Fernando Gonçalves. Na verdade, Leva no Piano, é um disco do Chico Adnet mas passaria bem como do outro homônimo, o Buarque, ou do Tom Jobim, ou do Edu Lobo ou do Francis Hime. Afinal, todos eles batem no mesmo diapasão - o da boa música, dessa que faz a gente acreditar que a MPB é um baú incansável e inigualável de beleza e sonoridade.

Chico Adnet surgiu também no Céu da Boca, onde a sua irmã Maucha era outra integrante. E como todos os meninos e meninas daquele grupo, não deu erro. Virou um diferencial. Francisco José Gonçalves Adnet, nascido no Rio de Janeiro em 1961, é parte de uma família que já foi citada aqui em textos anteriores e que incluem Mario, Maucha, Muiza e Antonia. Ele é pai do Marcelo Adnet, outro genial que desandou para a comédia, mas se quisesse poderia ter seguido os passos paternos, dos tios ou da prima. Aliás, em sambas-enredos ele já virou referência e parceria para a avenida na Acadêmicos do Sossego, de Niterói (RJ), além das paulistas Gaviões da Fiel, Leandro de Itaquera, Dragões da Real e Rosas de Ouro, e a carioca São Clemente. Enfim, o raio caiu várias vezes nessa dinastia musical. 

Leva no Piano tem sambas e muito mais. Foi gravado tendo como base o piano do Chico na sua casa e complementado em estúdio.  Ao todo, as dez canções são Leva no Piano, Leva no Pandeiro, Eu Quero as Tuas Canções, Bem-Vinda, Samba da Feira, Acorda (Jobiniana), Rua da Conceição 25, Samba de Cor, Luiza, Solidão (Beco das Garrafas) e Sete Pecados Capitais.

A primeira das composições tem somente um pandeiro (Marcos Suzano) e um baixo (Jorge Helder) a acompanharem o instrumento-tema. E nem precisava mais. É um samba belíssimo, uma ode ao Rio de Janeiro, ao chorinho e aquilo que tem beleza e harmonia. Em Eu Quero as Tuas Canções, apenas o piano de Chico e o flugelhorn de Aquiles Moraes. É uma composição intimista, dessas de se ouvir na madrugada pensando na amada, a mostrar que “o sonho é uma ilusão de ser feliz”. Em Bem-Vinda, outra que romperia a noite, com o clarinete de Joana Queiroz a acompanhar as teclas pretas e brancas. “Me arrasta na incerteza/ Inunda meu coração/ Mergulha nas minhas águas”.

O Samba de Feira tem acompanhamento das vozes de Maucha e Muiza Adnet, além da percussão de Marcelo Costa e o clarone de Pedro Paes. Uma brincadeira entre aquele que quer conquistar e a sua futura amada a ver a corte que ele faz. Um colírio para os ouvidos, já que os olhos estarão presos nos chuchu, cajazinho, tacacá, feijão mulatinho, angu com quiabo, doce de coco e muito mais. Acorda (Jobiniana) é um presente auditivo na voz e piano de Chico, que certamente lembra em muito o Maestro Soberano para acordar Tatiana “vendo imagens de um filme com música de Tom Jobim”.  Em Rua da Conceição 25, só a flauta de Andrea Ernest vibra junto às pretinhas e branquinhas. Tudo como “velas ao vento a flutuar, cruzando tempo devagar”. Já em Samba da Cor tem a percussão de Marcelo Costa, a flauta de Edu Neves e o violão do irmão Mario Adnet.  “Não vou ao terreiro/ Não sou da folia/ Não levo no pandeiro/ Nem na palma da mão/ Mas tenho poesia/ Que eu sou brasileiro/ E o samba tá vivo/ No meu coração”.

Luiza é só voz e piano. Nem precisava mais. “Luiza/ Teu farol me guia/ Na escuridão/ Acalma outra tempestade/ No meu Coração/ Dançando ao meu redor/ Os sonhos em botão”.  Tom Jobim assinaria esta canção de olhos fechados, sem mudar uma letra, uma nota, uma vírgula ou uma cifra. Em Solidão (Beco das Garrafas), novamente piano e voz, na certeza de que a madrugada é mãe de todos os poetas e amantes. “Quando a lua/ Já vai alta no céu/ Às 4 da manhã/ Saio do Piano/ Há qualquer coisa/ Nos olhos do garçom. (...) Ah, querida/ Me espera pro café/ Eu já tô indo/ Eu levo o pão”. 

Finalmente chega Sete Pecados Capitais. A última faixa do CD. É a música que tem mais instrumentos juntos. Além do piano do Chico, o baixo de Paulo Brandão, o trombone de Éverson Moraes e a percussão de Marcelo Costa. O dueto de vozes é com Pedro Miranda. É um samba meio gafieira que fala de elogios brincalhões e próprios e de sete amigos que são tidos como os verdadeiros pecados capitais: Maucha, Muiza, Mario, Deda, Joana, Suzana e Jorge Helder, além dos demais. E os demais são aqueles que o acompanharam no disco. Esse samba teria a assinatura de Chico Buarque igualmente sem mudar nada.

Ou seja, Chico Adnet é genial, inteligente, eclético e fundamental à MPB. E prova neste disco que não é preciso ter uma banda gigantesca ou uma orquestra sinfônica ou filarmônica para se criar uma pérola rara do mundo musical. Basta ter nascido com um algo a mais: a música de qualidade como DNA intrínseco e real. Não deixem de ouvir também dois outros discos dele: Piano e Alma do Brasil, este último o primeiro da carreira solo e lançado quando Chico tinha 50 anos. Ambos fantásticos. Ambos com a assinatura de um Adnet, a família musical e que enche de orgulho a nossa terrinha continental.

Esse CD e os outros dois podem ser ouvidos e vividos no Amazon Music, Deezer e Spotify.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

AVISO!

 Excepcionalmente hoje não teremos o artigo de Edmilson Siqueira. Ele retorna na quarta-feira.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Resgate de crônicas

E pra não ficar mais uns dias ausente, vasculhei meus arquivos das mais de 400 crônicas que escrevi para a Revista Metrópole do Correio Popular e garimpei duas delas que seguem abaixo. Minha próxima vez aqui é segunda-feira. Acho que até lá vai dar pra voltar a escrever. 

Por Edmilson Siqueira 

Pimenta Pura 

Pois o choro, aquele mesmo que Pixinguinha, Ernesto Nazaré e Chiquinha Gonzaga andaram inventando no início do século 20, encontrou bom abrigo por essas plagas. Depois de pairar soberano por décadas no Rio de Janeiro, ele foi renascer justamente onde menos se esperava: em Brasília. Explica-se: no início dos anos 60 a capital do país saiu do Rio e foi para o Planalto Central. Muitos funcionários públicos cariocas tiveram que deixar as praias e ir respirar o ar seco do planalto central. E quando batia a saudade, o que rolava? Claro que um bom samba e um choro. Os filhos desses “candangos” cresceram ouvindo boa música e, no fim dos anos 80, já adultos, iniciaram uma pequena revolução musical instituindo o choro como música oficial em alguns botecos brasilienses. A moda pegou, claro.  

E aqui em Campinas? Nossa revoluçãozinha começou com a Sinfônica e o curso de Música da Unicamp atraindo talentos de várias partes do país. Daí a vida noturna intensa em matéria de música ao vivo que tivemos nos anos 80 e início dos 90, e que agora está retornando em diversas casas espalhadas por Barão Geraldo, Sousas, Joaquim Egídio, Cambuí, Vila Nova etc.  

Claro que por aí se ouve de tudo, jazz, rock e samba, mas um CD recém-lançado chama a atenção. É de “cinco bandidos” que se juntaram justamente para tocar na noite. E de bar em bar foram construindo uma identidade difícil de se encontrar mesmo nas melhores famílias. Eles são o Choro Bandido, uma das mais gratas surpresas musicais dos últimos tempos que essa cidade produziu.  Adriano, Anderson, Marcelo, Daniel e Chiquinho mostram no CD a mesma perfeição das tardes de domingo do Deck Sousas, quando, entre generosos copos de chopp da Brahma, a gente se esquece do tempo ao som do bandolim, do clarinete, do violão de sete cordas, do cavaquinho e do contagiante ritmo do pandeiro de Chiquinho do próprio. Ou então nas noites de terça do Santa Fé, quando o grupo faz a gente comer mais uma pizza mandando o regime às favas, só para ouvir mais um pouco o som dos ‘bandidos’.  

O CD se chama Apimentado, que é o choro que abre o disco, composição de Marcelo Falleiros, que não fica devendo nada para choros de Ari Barroso, Paulinho da Viola, Dilermando Reis, Jacob do Bandolim e Laércio de Freitas, cujas composições também estão presentes no CD, numa ótima seleção. Taí uma sugestão de presente tão bom de dar quanto de receber. 


Um elepê 

Foi na loja do Osny, a Hully Gully Discos, que vi a cara do elepê. Estava lá na estante onde ficam os elepês e não o teria visto se ele não fosse o primeiro da fila. Por desvalorizados 5 reais qualquer um poderia levá-lo para casa. O nome é simples: Plus. Na capa, sorridentes e trocando um olhar que parece significar algum caso entre eles, Astrud Gilberto e James Last. De Astrud qualquer amante amador da música como eu sabe que foi quem primeiro gravou, nos Estados Unidos, Garota de Ipanema em inglês, com João Gilberto e Stan Getz e ficou várias semanas em primeiro lugar na parada lá deles. Além disso, é dona de uma sólida carreira e suas interpretações percorrem mundo. Sem ser uma superstar, é respeitada e nos EUA e na Europa.  Já o maestro James Last era para mim um ilustre desconhecido. E é nessas horas que a internet é a maior amiga do homem, depois do uísque, claro. Por ela descobri que James Last é alemão, mas construiu sua carreira como maestro e arranjador nos EUA. E foi uma carreira com grandes sucessos, já que ele foi quem inventou um treco chamado “non-stop-dance” que vendeu como abobrinha na feira.    

Mas o que importa, no caso, é que o elepê Plus é um achado. Misturando uma orquestra completa, com alguns músicos brasileiros como Paulo Jobim, Marcelo Gilberto, Duduka Fonseca e Café mais a voz de Astrud cantando um repertório que inclui até clássicos do jazz como Caravan de Duke Ellington e Juan Tizol na qual Irving Mills e a própria Astrud botaram uma letra, a coisa funciona muito bem. A isso somam-se três músicas de Paulo Jobim com Ronaldo Bastos (Samba do Soho, Moonrain e Saci), duas da própria Astrud Gilberto (Champagne and Caviar e Amor e Som), além de duas parcerias suas, uma com Antonio Carlos Jobim (I’m not without you) e outra com Duduka Fonseca (Forgive me). Claro que não poderia faltar pelo menos uma de James Last, que é a With Love, feita em parceria com Ron Last. O álbum se fecha tendo como última música do lado B (lembram?) um clássico de Jobim e Vinicius – Água de Beber.  

Agora é levar o elepê para o Osny de volta e encomendar um CD. Aliás, dois, pois quando peguei esse Plus na loja, ele me exibia todo orgulhoso, uma raridade de Adoniran Barbosa, que ele não vende de jeito nenhum, um disco-brinde, produzido pela Olivetti que não foi distribuído comercialmente e que tem até uma parceria de Adoniran com Hilda Hilst. É mole?  

Adendo atual: tanto o CD da primeira crônica quanto o LP da segunda são artigos raros por aí. Nem a Hully Gully ali na Doutor Quirino existe mais. Mas ficam as lembranças de um tempo, com certeza, mais generoso. 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Zeza, Alfredinho e Celinha: o trio perfeito

Por Ronaldo Faria

Falei do canário Dércio Marques no meu último texto. Ele era, ou ainda é, parceiro de cantoria e saudades do Zeza Amaral. Logo, vou falar agora de um disco ao vivo do Zeza junto com Alfredo Soares e Celinha. É o Olho de Prata. Este eu tenho físico, original, em CD. Mas amo do Zeza o Clareia também (e como amo), só que este era em vinil e só obtive em MP3. Eu conheço o Zeza Amaral desde 1982, no Diário do Povo, o centenário e assassinado jornal onde comecei a minha vida jornalística em Campinas. Eu e ele fazíamos a revisão dos textos do Wanderley Doná, repórter policial que era referência na cidade naqueles idos, e eu acabava sendo o interino do Zeza quando ele não podia escrever sua coluna diária no jornal (para tristeza dos leitores). Já o Alfredo (Alfredinho) Soares, conheci da noite e das mesas de botecos, entre eles o Água Furtada, no Cambuí, que depois virou padaria e até hoje é um imóvel tombado e vazio. E, claro, no Alfredo’s, bar que era referência musical na noite/madrugada local. Com Celinha não tive contato íntimo, mas a reverencio pela voz que lembra Bethânia. E que é dela, Celinha. Incrível. 

O show Olho de Prata foi em 1979. Dele, Zeza fala na sua entrevista ao Cantares e Esquinas (https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/05/amaral-acreditem-internautas-do-planeta.html). “Foi dentro do Bate Papo (restaurante no Cambuí, na Rua Irmãos Bierrembach, defronte ao Largo Santa Cruz), que resolvemos (ele, Alfredinho Soares e Celinha) fazer o show chamado Olho de Prata. O nome do show quem deu foi o J. Toledo (https://pt.wikipedia.org/wiki/J._Toledo). Ele foi nosso diretor artístico e cenógrafo, junto com o Geraldo Jürgensen. Nós ensaiamos quase quatro meses direto e estreamos lá no Teatro do Centro de Convivência. Fizemos três apresentações com casa cheia. Depois, o diretor do teatro, que na época era o Carlos Braggio, nos deu mais uma semana e enchemos de novo. Mas eu não sei por que, se foi por preguiça, nós não demos continuidade ao show em outras cidades.” 

Deste “triângulo amoroso perfeito”, como Zeza diz no disco, surgiu um show incrível. Uma mistura de samba, MPB e chorinho. Pena que este espetáculo tenha durado apenas poucas apresentações. No CD, as apresentações são do J. Toledo (dele ninguém melhor do que Edmilson Siqueira, meu parceiro neste blog, para falar sobre), que conheci na noite, inclusive numa disputa por uísque com Hilda Hilst no Alfredo’s. Tive ainda o prazer de um dia conhecer, a convite, a sua casa em Sousas para tomar umas; e também de Antônio Contente, jornalista, poeta, cronista e ídolo que foi o dono da orelha de meu primeiro livro – o C(s)em Contos. Logo, deixarei para eles falarem deste disco. Perto deles, quem sou eu...

De minha parte, assino embaixo (na minha humilde pequenez) o que estes dois seres iluminados escrevinharam e curto poder ouvir esse show incrível que rolou nessas plagas das campinas musicais. Um ouvir, porém, que por erro de prensagem me toma de assalto três das 14 músicas. Elas não rodam em nenhum aparelho ou programa. Mas, a quem reclamar o CD problemático? Não há. E até pouco importa. Que assim o seja, pois a vida pune aqueles que não viveram o fato. E eu, na época do show, ainda vivia no Rio de Janeiro. E segundo o Edmilson Siqueira, nunca houve um CD ou um LP do show: "Rolou uma cópia de fita K7 que foi reproduzida por aí. A minha fita eu transformei em CD no Osny".

Ao menos ouvi e ouço parte quase integral de um espetáculo memorável. Infelizmente não é possível encontrar este disco nas viagens do mundo virtual. Como tudo de bom, se esvai ao tempo do mundo. Mas, creio plenamente, que os olhos de prata que dele surgiram nas cenas cultural e musical, continuam a brilhar entre o escuro da madrugada que cheira a vida, os versos que rompem as emoções e a entrega que irrompe entre três vozes que Campinas entregou para o mundo. Logo, Saravá. Na energia do tempo, Olho de Prata têm cor de ouro, de brisa, de história e vida que sublima tempo e espaço.

Ps.: Terminei este texto ouvindo Rosália de Souza no Amazon Music com o CD D’improviso. Sei que não tem muito a ver com o texto acima. Ou tem. Afinal, a escuridão, a noite e a madrugada trazem lembranças que vem e vão sabe-se lá para onde, em mililitros de um álcool libertário, das efemérides tão parcas e inesquecíveis no tempo do universo que cada um de nós tem em si. Uma dica: neste disco Bossa 50 é uma música incrível. Aliás, todas são. Na fila de reprodução dessa artista (seu álbum principal e que rola também no Amazon Music é Garota Moderna), tudo é incrível. Definitivamente, a MPB é um poço de maravilhas. Logo, que os deuses salvem este ano, em outubro, das trevas que habitam a cultura nacional. A luz da beleza há de voltar a brilhar.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

A falta que Dércio Marques faz...

Por Ronaldo Faria

Ele morreu em 26 de junho de 2012, aos 64 anos. Este ano, portanto, completaremos uma década sem Dércio Marques. Compositor, violeiro, cantor, intérprete e estudioso das raízes da música brasileira, esse mineiro de Uberlândia nos deixou 13 discos e uma vida entregue à cantar a natureza, a pureza dos sons e brincadeiras infantis e das almas que estão além do simples chão. Aqui eu vou tratar de um CD que amo de paixão: Anjos da Terra, dedicado à sua filha Mariana e verdadeira brincadeira de roda, de vida e pureza musical. Dércio era uma espécie de ícone da natureza e das coisas boas. Por isso não entendi a sua morte tão cedo. Alguém que vivia em alfa, além do nosso mundo terreno, era para ter chegado aos 100 anos ou mais. Enfim, que Dércio Marques, onde estiver, certamente numa floresta cheia de verde, animais e paz, olhe por nós. Hoje, nas trevas que o Brasil vive, mais do que nunca precisamos de vozes e almas iguais as suas para vencermos os algozes. 

O mais próximo que estive de Dércio Marques foi num dia de chuva forte, dessa que lava a alma e o passado, quando o compositor, jornalista, cronista e cantor Zeza Amaral me recebeu na sua casa para uma entrevista feita sob a supervisão de seu homônimo emplumado, um canário norte-americano que Zeza garantiu ter onze cânticos diferenciados. O nome do pássaro era uma homenagem ao amigo. “Ele é como o Dércio: quando o cara vinha aqui em casa e começava a cantar, não tinha quem fizesse ele parar. O canário tem horas que fica mais de 20 minutos a trinar”, disse Zeza à época (https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/05/amaral-acreditem-internautas-do-planeta.html). 

À exceção do canário, porém, sempre curti Dércio Marques. Tenho todos os 13 discos dele. Nos meus arquivos em MP3 ele está num HD externo em MPB na pasta Bicho Grilo, que reúne, entre outros, as obras de A Barca, A Barca do Sol, Alceu Valença, Armandinho, Arrigo Barnabé, Asdrubal Trouxe o Trombone, Baby Consuelo, Bubuska Valença, Doroty Marques, Geraldo Espíndola, Grupo Agreste, Grupo Alma, Grupo D’Alma, Grupo Engenho, Grupo Rumo, Grupo Therra, Gutemberg Guarabira, Jessier Quirino, Lanny Gordin, Manacá, Mozart Terra, Moraes Moreira, Parafusa, Paranga, Paulinho Pedra Azul, Renato Terra, Rubinho do Valle, Rui Maurity, Sá, Guarabira e Zé Rodrix, Teatro do Descobrimento, Torquato Neto, Ventania, Walter Franco, Xangai e outros mais.

Mas, afinal o que é uma pasta Bicho Grilo? É a essência de um momento em que viajar em sons na famosa “maionese”, longe da realidade triste e desconexa da vida. Que nos faz acreditar que há algo além da busca do vil metal, das contas e boletos que correm atrás de nós sem parar, das obrigações terrenas que nos abstraem daquilo que deveria ser a busca de um equilíbrio com a natureza. Que nos eleva de um mundo onde a essência da nossa rápida e efêmera passagem por esse planeta azul e redondo é esquecida. Dércio Marques e toda a sua obra estão nesse diapasão “bicho grilista”. Ainda bem que, ao menos, conheci o canário que deve ser a sua reencarnação num ser que ele soube mostrar em vida: o agregado de cantar e viver em sublimação naquilo que a Terra dá e ensina.

Anjos da Terra é uma mistura de pureza da infância e interação com o mundo que respira paz ao nosso redor. São 23 músicas em 49 minutos. Na verdade, uma entrega absoluta entre a brincadeira sonora e de qualidade e o que há de mais sublime para alguém criar e cantar. A letra da música que dá título ao disco é um poema universal. “Mas olha quanta gente que passa/ Sem controlar o sorriso/ São meninos da terra/ São meninos da lua/ Brincando de amor/ Ao redor do mundo/ Anjos da terra/ Beijos de maio/ Mães da alegria/ Que vem da lua/ Desce de um raio/ Cheio de estrela/ Brilho do sol/ Sol virou lua/ Brincar na rua/ Sou um sonhador.” 

Impossível não sonhar junto. Uma adaptação de Cuitelinho (com verso recuperado da composição em Santa Rosa do Viterbo) é linda. A Canção de Ninar, na voz de Titane e o som de Lucas ao fundo, nenê, é algo realmente para ninar o mundo. Tivéssemos tido esse acalanto, certamente seríamos moradores de um mundo melhor desde o berço. Como tudo que era belo e espontâneo em Dércio Marques, nenhuma música, à exceção de Cuitelinho, foi editada. Em Ser Criança, a verdade que cada um de nós deve ter guardada no fundo coração, ou deveria tê-lo feito. 

O disco, de 1991, tem um poema para o amor em Namoro: “Plantei um pé de avenca/ debaixo da tua janela/ E sonhei frutas em penca/ num galho de siriguela/ Plantei um pé de rosa/ lá detrás do murundu/ E sonhei-te mimosa/ com cheirinho de caju/ Plantei um chão de trevo/ no meio do teu caminho/ pra ver se ele se atreve/ a roçar o teu pezinho/ Que o trevo é talismã/ que é pr’eu fazer meu gosto/ de morder a maçã/ a covinha de teu rosto/ Plantei um pé de lírio/ na porta da tua escola/ Mas quero mais delírio/ com o gostim de carambola/ E já nem sei o que faço/ das tranças, da tua franja/ Quero ser teu bagaço/ teu docinho de laranja.”

Há até um blues para a rãzinha. Enfim, todas as composições, sejam na forma instrumental ou cantadas, são uma certeza única: se mais Dércios, fossem eles humanos ou pássaros, tivéssemos, mais viveríamos em outro estágio e realidade. Existiriam menos ganância, destruição da natureza, maldade, ódio e coisas que mostram que o homem às vezes não merece o lugar em que vive. Mas, loas a Dércio Marques e aquilo que ele nos deixou. Sua poesia e seu apelo por um mundo melhor e mais pleno resistem ao tempo. Triste é ver que ele foi bem antes daquilo que o planeta gostaria...

A última faixa do disco dedica os 13 segundos para a natureza e o SOS Amazônia: https://sosamazonia.org.br/

Você ouve essa obra-prima em https://www.letras.mus.br/dercio-marques/discografia/anjos-da-terra-1991/

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Ronaldo Bastos, um grande poeta da MPB

Por Edmilson Siqueira 

Se há um aspecto da MPB - da boa MPB, diga-se - em que o Brasil está bem servido, é a parte literária. Sim, desde sempre tivemos letristas que, muitas vezes, melhoraram o que compositor havia feito, tornando as melodias mais palatáveis por conta dos versos ali colocados.  

Uma das preocupações de Tom Jobim nos EUA, quando a bossa nova começou a tomar conta daquelas paragens - havia até cursos de dança especializados em bossa nova - era com as letras que iriam colocar em suas músicas, quase todas muito bem "letradas" aqui por gente como Vinicius de Moraes, Newton Mendonça (também compositor e que dividiu com Jobim música e letra de, por exemplo, Desafinado, e o próprio Jobim, um grande letrista, como provam as canções em que seu nome aparece sozinho. Wave, por exemplo, era só uma música instrumental com esse nome. Ele pediu a Chico Buarque para fazer a letra. Chico só fez o primeiro verso - "Vou te contar...".   Jobim completou a letra. Ou ainda, o sucesso mundial, como várias outras de Jobim, Águas de Março. 

Pois hoje a estrela desse meu artigo é um dos maiores letristas da MPB, cuja inspiração e versatilidade é admirada por todos que conhecem sua obra. Trata-se de Ronaldo Bastos, que estourou com o Clube da Esquina e, embora tenha uma afinidade muito grande com os mineiros todos, nasceu em Niterói. O que não quer dizer nada, já que Milton Nascimento é carioca de certidão... 

Pra se ter uma ideia da qualidade das letras de Ronaldo Bastos basta dar um olhadinha no Google e elencar seus parceiros: escreveu canções com Milton Nascimento, Celso Fonseca, Beto Guedes, Tom Jobim, Edu Lobo, Lô Borges, Caetano Veloso, Danilo Caymmi, Guilherme Arantes, Toninho Horta, Marina Lima, João Donato, Ed Motta, Flavio Venturini, Lulu Santos, Cleberson Horst, Tito Madi, Johnny Alf, Joyce Moreno, Luiza Brina, César Lacerda, Arthur Nogueira, dentre outros. E seus versos foram cantados por Elis Regina, Nana Caymmi, Milton Nascimento, Gal Costa, Jussara Silveira, Sarah Vaughan, Roupa Nova, Marina Lima, Tom Jobim, Chico Buarque, Simone, Ney Matogrosso dentre outros. 

Pois o disco em questão se chama Cais, nome de um dos seus primeiros sucessos em parceira com Milton, e é especial: dez músicas com os mais variados parceiros e cantadas por astros que não fizeram aquela parceria específica. Lançado como LP em 1989 e como CD em 1995, com produção de Milton Nascimento, Cais é um mini retrato da melhor qualidade desse poeta da MPB. 

Vou seguir a ordem das músicas do CD, mas ela é diferente da ordem do LP. O CD abre com Cais, numa emocionada interpretação de Caetano Veloso. Depois da gravação de Milton e de Elis dessa música, Caetano encarou o desafio com maestria e, detalhes, um arranjo perfeito, discreto e marcante. 

A parceria com Lô Borges, uma das mais frutíferas de Ronaldo, vem a seguir com Sonho Real. Gal se mostra suave em toda melodia de longa letra. Detalhe para o acompanhamento perfeito apenas dos teclados de Wagner Tiso.  

O grande sucesso de Milton Nascimento, Fé Cega, Faca Amolada, que Ronaldo escreveu com o próprio Milton, surge na terceira faixa na interpretação do grande Alceu Valença cujas qualidades todas o Ronaldo já enunciou no artigo anterior a esse. A música ganha um toque mais nordestino aqui na voz do pernambucano.  

A importância de Ronaldo Bastos se evidencia ainda mais na próxima música. Ninguém menos que Tom Jobim se incumbe de tocar piano cantar e fazer o arranjo de Trem Azul. E tem mais: a letra em inglês - que não está nesse disco e sim em Antonio Brasileiro - é do próprio Jobim. Para a gravação, nosso maestro soberano reuniu um timaço de músicos: Paulo Jobim, Danilo Caymmi, Jacques Morelembaum, Paulo Braga e Tião Neto. No vocal, as cinco cantoras que o acompanhavam sempre. Ficou tudo ótimo. 

Chico Buarque se juntou a Mestre Marçal e a quase uma bateria de escola de samba para gravar Circo Marimbondo, também de Milton e Ronaldo.  

O grande sucesso Nada Será Como Antes surge com uma interpretação surpreendente de Herbert Vianna e os Paralamas do Sucesso, com um arranjo funkeado, com metais, guitarra e forte bateria.  

A belíssima letra de Ronaldo Bastos na música de Beto Guedes, Amor de Índio, traz o próprio Milton como intérprete, acompanhado apenas pelo piano de Tulio Mourão. Mais um momento emocionante do disco na voz de Milton, que torna a canção mais lenta, pronunciando muito bem cada palavra na voz que o consagrou. Uma aula de canto por um mestre. 

A feliz união da afinadíssima Ângela Maria com o grupo Nouvelle Cuisine foi a feliz escolha para Bons Amigos, parceria de Ronaldo com Toninho Horta, um violonista de peso que costuma passear pelo mais puro jazz em suas composições. A voz da cantora e de Carlos Fernandes, o cantor do Nouvelle, se misturam no excelente resultado da gravação. 

Flavio Venturini é autor da música a seguir - Todo Azul do Mar. Mega sucesso na gravação do 14 Bis, aqui é Beto Guedes que se incumbe de apresentá-la, com a especial ajuda do Roupa Nova no coral. Um show.  

A última música do CD é A Página do Relâmpago Elétrico, parceria com Beto Guedes. Apresentada pelo RPM, com uma versão mais pro rock balada que ficou muito boa. 

O disco termina com uma vinheta de 50 segundos. Com o som de ondas quebrando na praia suavemente, Caetano canta, à capela, os primeiros versos de Cais. Um final que engrandece ainda mais essa ótima homenagem a um dos melhores poetas da nossa MPB. 

O CD Cais está inteiro disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=qY7M6YFjYzw&list=OLAK5uy_k7RjoHJjsJNw6GR58QN7B9CUJzmtos_Bc

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Aquele que foi e depois acabou fondo...

Por Ronaldo Faria

Escrevo sobre este CD que você não encontrará em lugar nenhum onde ouvir ou comprar para relembrar um passado em que Campinas tinha vida cultural noturna. Na verdade, quanto ao disco, nem o astro dele tem um original. Ele ganhou uma cópia de mim. É o É a Lama Mess!, de Mário Lúcio & Los Lúcios – Pablo e Escobar, sua big banda principal. No endereço https://www.youtube.com/channel/UCiQGfpLJlRglM5ifm_gckHg você verá um pouco desse autodenominado “maior e melhor cantor pop-pornô-brega do universo”. Mas, se procurar pelo nome na internet terá acesso a outro artista, um homônimo cantor, compositor, escritor e pensador de Cabo Verde, na África. Mas o Rebelde Apaixonado tratado aqui ainda é um punhado de cacos na internet que você terá de juntar para ter noção exata daquilo que ele foi.

Mas, então, por que falar de um artista de um único CD que nem o próprio tem? Talvez porque ele faça parte do meu acervo particular e, mesmo perdido entre dezenas de milhares de discos, tenha um espaço no coração e no tempo. Senão, porque este blog seja dedicado à música e até aquilo que não pode ser registrado como música maior seja maior do que a razão de sê-lo. 

É a Lama Mess! é, como eu disse numa reportagem maior para o site Cantares e Esquinas (https://ronaldofaria57.blogspot.com/), um verdadeiro estupro sonoro, entre composições próprias de Los Lúcios e amigos e um hit da época. Todas inclusas no melhor brega musical que Campinas já viveu na década de 1980. Mas, como já escrevi, quem, em sã consciência da maior embriaguez ou do cigarro do capeta, não foi ao delírio a ouvir, por exemplo, Feiticeira, sucesso de Carlos Alexandre, com direitos comprados por trezentos reais para ser reproduzida em mil CDs e cantada de forma tão desafinada nos mesmos? Quem não sonhou em vestir terno de gosto duvidoso e malha cacharréu e subir no palco para pagar um mico que virou sucesso na terrinha?

Mário Lúcio é um fenômeno do acaso musical, que interrompeu há vários anos a carreira para a dor de suas fãs, mesmo que a maioria delas já esteja às portas da menopausa ou deixado essa há tempos. O nome no RG de Mário Lúcio é Marcelo José do Canto. Ele era um então estudante de Jornalismo e garçom no bairro boêmio de Campinas (Cambuí) no tempo em que lá existia música ao vivo para todos os bares e gostos. Foi num desses bares, o Ilustrada, na despedida da vida de garçom para assumir a vaga de repórter da editoria de Esportes no extinto e centenário Diário do Povo, que surgiu o mito das máriolucetes ou lucinetes.

“O show do Ilustrada eu acho que foi no dia 18 de dezembro de 87. Eu não lembro direito. Na época eu morava com Pablo e Escobar, também conhecidos como Márcio Denni Pontes, um baterista conceituado nacionalmente, e Ricardo Botter Maio, um tecladista também conceituado, até internacionalmente. Eu morava numa república com eles. E pensando essas baboseiras todas chego em casa e eles estavam ensaiando porque iam fazer um show com um grupo que o Ricardo tinha na época. Daí eu entrei e falei: ‘Gente, eu vou fazer um show de despedida no Ilustrada. Vocês topam fazer comigo?’ Mas eles disseram: ‘Pô, mas você nem canta’. Daí eu disse para eles ficarem frios que eu ia armar e inventar tudo direitinho. Só queria saber se eles estavam comigo. Eles aceitaram e daí matutei, matutei, matutei e decidi fazer um show brega. Não era ainda Mário Lúcio, não sabia nome e nem nada. Me remeteu também essa criação à minha irmã mais velha, Maria Vitória, que escutava coisas bregas como Ângelo Máximo e Rádio Tupi. Daí decidi: vou cantar Ângelo Máximo, Carlos Alexandre, Evaldo Braga e Wanderlei Cardoso.”

“De repente, começou a pintar tudo na cabeça e iria chamar o meu personagem de Adriano Roberto, que é o nome do Adriano Rosa, fotógrafo e amigo. Mas aí ele falou: ‘Vai por o meu nome como cantor brega?’ Daí teve a Vera Longuini, outra amiga, que estava com uma caderneta de chamada da faculdade que eu peguei e comecei a olhar. Olhei para antes do Marcelo, que era o meu nome, e vi que tinha alguém que se chamava Lúcio, mas não era da minha sala. E depois vi Mário. E ficou Mário Lúcio & Los Lúcios. Depois expliquei tudo para o Denni e o Ricardo. E eles gostaram da ideia. Arranjamos 20 músicas e já tinha tudo – repertório e nome. Só faltava eu aprender a cantar as músicas. Então fiz uma pastinha, copiei as letras e formatei o show.” 

“Depois do show, deu um prazo de 15 dias e começaram os convites de vários lugares para eu me apresentar. E olha que todos os bares do circuito campineiro tinham música ao vivo. Então eu decidi cobrar um cachê um pouquinho alto para a realidade da noite campineira, porque eu sabia quanto era cobrado na noite e os músicos ganhavam. E o mais incrível: o pessoal começou a pagar. A gente estranhava porque o Denni e o Ricardo faziam shows na noite. O Denni era do Soma, um dos melhores grupos que eu já ouvi em Campinas, junto com A Bandida. O Ricardo fazia shows. A família dele é de músicos, com gente até na Suíça e nos Estados Unidos. Mas aí começou a rolar a grana e cada vez mais nos apresentávamos. Nisso entra 1988 e a moçada que viu o show marioluciano aqui já indicava para festa brega na sua cidade. De repente, a gente estava fazendo show fora, dentro das possibilidades, porque eu já trabalhava no Diário, até sábado e domingo. A gente pegava essa Rodovia Anhanguera e fazia show para todo o lado. E eu na correria de conciliar a minha vida como jornalista esportivo e o personagem que começou a criar corpo.”

Se pararmos para pensar, porém, no inusitado e naquilo que é divertido, no que rompe as barreiras do normal e libera sonhos e grilhões, Mário Lúcio foi um torpedo a destruir a métrica e a rítmica. Num momento em que o Brasil mal acabara de sair da ditadura militar, onde os jovens ainda se embrenhavam numa estrada meio sem volta, talvez ele tenha sido o reflexo onde o anormal de monstros e monstrinhas, como ele chama os fãs, animais que viviam presos em cada um e soltos na noite, se libertavam junto ao cantor performático e carismático. “Em 2003 foi o último show que nós fizemos. Em 2004 íamos fazer um na Estação Cultura, mas no dia tive um problema de falecimento na família e não fiz. E nesse dia foi muita gente ver e até levaram faixa e tudo. Mas não teve.” 

Passado tanto tempo, restou, para quem se aventurou a comprar É a Lama Mess!, gravado e mixado em 1996, ter em mãos um exemplar da MPB esculachada, divertida e despretensiosa. Ao todo são 13 faixas. Cada uma com a certeza de ouvir algo entre o riso e a tosquice da boa. Tem desde Feiticeira até composições dos Los Lúcios. Do Mário mesmo, nada, além da voz desafinada e engraçada. Há desde o bolero El Tesón Del Cone Sul (um épico) a Douglas and Juraci, passando por Blackout no Rodízio, Discarada, Ébria Maria e Pastor Alemão. Junte Lover Man, O Penúltimo Rebelde, Hole of Lock (O Buraco na Fechadura), Foguete Indomável, Perfume Raro e Agora, o Último Rebelde. Ponha tudo num liquidificador sensorial e terá um misto de brega e besteirol. A "arte" de Mário Lúcio se encaixava entre Falcão (o Mário Lúcio que deu certo), Premeditando o Breque e Língua de Trapo. Mas, como diria o Chacrinha, tudo foi um programa que acaba quando termina. Quem viu, viu. Quem não viu, nunca mais verá. Pois, como cantava Cazuza, o tempo não para. Só que, para Mário Lúcio e tristeza dos fãs, ele parou...

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Alceu Valença e suas oito pérolas

Por Ronaldo Faria

O disco é curto. São apenas 27 minutos e 49 segundos. E tem somente oito músicas. Entretanto, ele marcou a carreira de Alceu Valença, que já tinha sete discos em estúdio gravados anteriormente. Bateu a marca de 1 milhão de cópias na época e consagrou em definitivo esse pernambucano no cenário da MPB. Este ano Cavalo de Pau completa quatro décadas do seu lançamento e continua épico. Afinal, as canções nele contidas são até hoje hits valencianos. E quem, em 1982, que estivesse na faixa dos seus 20 e poucos anos, não curtiu paixões, noitadas, bebedeiras, amores ou loucuras do bem com essa raridade sonora... Afinal, esse era um tempo em que o Brasil tentava respirar liberdades, nos estertores da ditadura militar. A sensação de descobrir e redescobrir coisas novas explodia na juventude e na sociedade. Alceu foi um desses marcos de brasilidade renovada vinda do Nordeste, com seu maracatu e forró, misto de reggae e xaxado.  

O disco é autoral. Das oito composições, quatro Alceu conta com parceiros. Morena Tropicana e Pelas Ruas que Andei divide com Vicente Barreto. Já Maracatu tem parceria com Ascenso Ferreira e o grande e eterno Dominguinhos assina junto Lava Mágoas. Rima com Rima, Cavalo de Pau, Martelo Alagoano e Como Dois Animais são de autoria própria.

Alceu Valença, que está com 75 anos, é de São Bento do Una, no agreste de Pernambuco. Aliás, Pernambuco é um caso a ser estudado a fundo na MPB. É um estado onde a música brota do chão com a força do novo, do renovado, com expressões múltiplas e coletivas que arrancam desde a sonoridade do seu interior à urbanidade de Recife. Com grupos que mostram a potencialidade em notas e versos, há a vida que vai do caos das palafitas à revolta transformadora que junta genialidade e teatralidade.

Tentarei, no futuro, mostrar um pouco desse tanto que é Pernambuco, unidade da Federação que mais lança coisas boas à MPB. Tudo com traço local e universal. A música que vem de lá não pode ser rotulada como um gênero apenas. Quinteto Violado, Banda de Pau e Corda, Banda de Pífanos de Caruaru, Nação Zumbi, Cordel do Fogo Encantado, Cascabulho, Mestre Ambrósio, Mombojó, Mundo Livre S/A, Ave Sangria, SpokFrevo Orquestra, Quinteto Armorial e Comadre Fulozinha são apenas alguns exemplos de grupos.

Já compositores, músicos, cantores e cantoras formam um número sem ter fim. Além de Alceu Valença, há Accioly Neto, Bezerra da Silva, Anastácia, Dominguinhos, Jorge de Altinho, Chiquinha Gonzaga, Lenine, Lia de Itamaracá, Luiz Gonzaga, Lula Côrtes, Lula Queiroga, Luiz Vieira, Antônio Nóbrega, Nando Cordel, Otto, Paulo Diniz, Rildo Hora, Selma do Coco, Siba e Velho Faceta, entre tantos mais.

Mas, voltemos a esse grande Alceu Valença. Ex-advogado e jornalista (se formou no primeiro e foi correspondente do extinto JB em Recife), em 1971 foi cair no Rio de Janeiro para se aventurar na vida musical. Com o seu parceiro de vida Geraldo Azevedo lança em 1972 seu primeiro disco – Quadrafônico. Depois, mais 29 discos de estúdio, onze ao vivo e 12 coletâneas surgiriam. O último, do ano passado, é Senhora Estrada.

Mas Cavalo de Pau é, sem dúvida, um marco definitivo na sua obra. Com Morena Tropicana galgou todas as listas de audição nas rádios da época. Tornou-se hit nacional, mostrou que a sua música tinha se consolidado como irreversível às emoções e ouvidos de todos nós. Era impossível frequentar um bar de música ao vivo sem escutar algo de Alceu (e creiam que em Campinas já existiu um tempo onde a música nos bares era livre para deleite de todos). Era impossível frequentar uma festa em república sem rolar o disco na vitrola. Todas as oito faixas podiam afundar no vinil se alguém não se lembrasse de mudar. E para quê mudar? Para a noite e madrugada serem boas era só deixar Alceu rolar.

Esse é um disco histórico, que merece estar nos alfarrábios sonoros de todos que gostam de MPB. Sigo Alceu desde então. Para mim, a sua obra transcende o tempo, desde os idos de 1982, ano que desembarquei aqui em definitivo na profissão e fui viver. Além de Cavalo de Pau, tenho diversos discos da sua lavra que foram pérolas desse período de quatro décadas. Vou falar rapidamente de outro que um dia discorrerei com maior atenção e respeito musical: Valencianas, de 2014. Gravado junto com a Orquestra Ouro Preto, é um CD/DVD imprescindível também vital para ouvidos e corações. Mas isso fica para depois. Curtam agora os 40 anos de Cavalo de Pau. E voltemos no tempo na esperança que, com esse voltar, a tal de esperança chegue de volta também.

Cavalo de Pau pode ser ouvido na íntegra no Amazon Music, no Spotify, no YouTube Music e no Deezer.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Piazzolla/Mulligan: uma reunião de cúpula

Por Edmilson Siqueira

Um disco gravado em 1974 - lá se vai quase meio século - ainda hoje faz a cabeça de muita gente. É o registro do encontro entre o gênio do "nuevo tango" argentino, Astor Piazzolla (1921-1992), e o saxofonista de jazz norte-americano Gerry Mulligan (1927-1996). O disco recebeu o nome de Summit em inglês e Reunión de Cumbre, em espanhol. Ou também Tango Nuevo, como foi chamado em alguns países. Pra nós, Reunião de Cúpula fica de bom tamanho, afinal, são dois expoentes, cada qual com seu particular talento, juntando suas qualidades e nos brindando com quase 40 minutos (os LPs tinham uma limitação de tempo bem inferior aos CDs) de uma música que nos leva por distantes fronteiras de um mundo dividido, mas que poderia se juntar e produzir coisas belas. Acho que essa é uma das mensagens possíveis do disco: a Argentina que estava, até o ano anterior ao da gravação, sob uma feroz ditadura militar (como quase toda América Latina e no Brasil prosseguiria até 1985), e um dos seus mais inquietos artistas, vivendo na Europa, se junta a um norte-americano e, do encontro, sai um disco que, quase 50 anos depois, é exemplo de como a boa música transcende ideologias e agrega muitos valores ao ser humano. 

O disco, eu diria que é mais de Piazzolla que de Mulligan e isso talvez se deva à forte personalidade do argentino e também ao fato de que ele compunha sua obra, enquanto Mulligan, que também compôs, mas não muito, preferia ser um instrumentista. E era dos grandes. 

Assim, das oito faixas do disco, apenas uma é de Mulligan. Nas outras sete, Piazzolla desfila seu repertório "tanguista", porém cheio de referências universais, numa mistura que, feita com capricho e talento, o colocou no centro do cenário da música instrumental da segunda metade do século 20.  

O disco foi gravado em três dias de setembro e quatro dias de outubro em Milão, Itália, onde Piazzolla vivia à época. No estúdio, uma banda moderna, eletrificada, com piano Fender Rhodes, órgão Hammond, duas guitarras elétricas, bateria e percussão, acrescida de um trio com violino, viola e cello acústicos, formou a base para que Piazzolla e Mulligan desfilassem melodias, arranjos e improvisos na viagem musical que se propuseram. 

Piazzolla se encarregou dos arranjos todos, mas percebe-se que sua preocupação com o sax tenor de Mulligan é grande: em momento algum o jazzista fica sem parte importante do solo ou dos improvisos. A camaradagem entre os dois fica evidente e só melhora tudo. 

O clima sombrio da primeira faixa - Twenty Years Ago - dá o mote para o disco, embora haja nele momentos de complexa estrutura musical. A divisão dos trabalhos - o bandoneon e o sax às vezes solando, às vezes casando-se perfeitamente, aponta para uma sequência de prazeres auditivos. 

Close Your Eyes and Listen, a segunda faixa, assume, logo de cara, ares de uma balada romântica ao estilo Chet Baker, com o sax comandando a sessão no início e, depois, dividindo com o bandoneon a tarefa de completar a música, improvisar e torná-la, inclusive, mais alegre. 

A próxima faixa - Years of Solitude - é a mais famosa de Piazzolla no disco. Feita para o espetáculo musical Libertango (também gravado em disco), é a faixa de maior impacto, com marcante percussão que delineia a bela melodia, onde se juntam, no solo, sax e bandoneon, deixando sua massa sonora mais forte.  

Deus Xangô foi feita especialmente para o encontro entre os dois. Nela, Piazzolla expõe um clima misterioso, numa forte presença rítmica que cresce e dá a base para todo o resto, tanto para o bandoneon quanto para o sax, que dividem os solos.  

Twenty Years After não se trata de uma continuação da primeira faixa. É outro clima, muito mais para tango que para jazz, uma música ligeira, que vai para todos os lados possíveis, como a buscar um canto onde possa se instalar, o que parece acontecer na parte final, quando o ritmo alucinante é contido por alguns momentos, para depois voltar àquela urgência. 

A única faixa composta por Mulligan parece ser uma homenagem a Piazzolla: Aires de Buenos Aires. Obviamente, o espírito jazzista se sobrepõe, mas é o bandoneon que comanda toda primeira parte. A segunda parte, mais lenta, traz linda melodia.  

Reminiscense, a sétima e mais longa faixa do disco (6m30s), tem a estrutura clássica de Piazzolla: um começo vibrante, com bateria marcante, até uma espécie de ápice, quando a melodia se desmancha e alguns elementos psicodélicos antecipam a segunda parte, composta por longas frase do bandoneon e do sax para, claro, tudo voltar ao princípio, num ritmo quase frenético a caminho do fim. 

A música que dá título ao disco, encerra os trabalhos: Summit, com pouco mais de três minutos e meio, é uma síntese mesmo do encontro: vibrante do começo ao fim, tem elementos latinos e jazzísticos. Piazzola e Mulligan se despedem em alto estilo, proporcionando um grand finale a um disco excepcional, fruto do talento e da criatividade de dois grandes artistas.  

Esse disco está disponível para ouvir na íntegra no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=OLiJwjc6F1A 

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Hendrix, o maior das cordas e do tempo

Por Ronaldo Faria

Hoje (terça-feira, dia 8), dia que voltei para casa pensando no quanto a vida é efêmera e que cada segundo nada mais é do que passado (o presente é abstrato e o futuro, incerto, não existe, já que sempre será um segundo presente que vira passado no próximo segundo), resolvi escrever sobre o disco Blues, de Jimi Hendrix. Para falar dessa obra, roubo um pedaço da Wikipédia: Blues, de 1994, contém onze canções anteriormente gravadas entre 1966 e 1970. São sete composições próprias junto com regravações de famosas canções de blues como Born Under a Bad Sign e Mannish Boy. E a ouvir a guitarra Fender desse gênio do rock, morto em 1970 prematuramente aos 27 anos, de overdose, me atenho àquilo que pode ser chamado de fama e de finitude. Ele teve a fama e “optou” pela finitude que o levou à eternidade como lenda do rock. 

Tenho toda a discografia oficial de Hendrix, em estúdio ou ao vivo, baixada e lançada entre 1964 e 2008, além de outros discos póstumos e de homenagem, como Blues. Assim como revejo muitas vezes a sua apresentação em Woodstock (também tenho o que foi gravado e reproduzido naquele que foi o ícone dos festivais, em três discos posteriores), além do DVD alusivo. Para mim, esse guitarrista representa muito do rock e da loucura dos Anos 60. Da liberdade que se lançou naquela década para o planeta: o romper de parâmetros e padrões, o movimento hippie, a luta contra a guerra do Vietnã, a ênfase na luta de libertação e igualdades das mulheres, a juventude em revolta nos continentes, a contracultura, o amor livre, as descobertas e fugas pelas drogas, o romper com a caretice vigente, o combate ao racismo explícito nos Estados Unidos, o rock se impondo, o embate declarado a tudo que era antiquado e opressor.

Nasci em 1957 e, portanto, dos Anos 60 guardo apenas um pouco da minha infância e pré-adolescência. Infelizmente, pouco. Na verdade, trago desse período mais as minhas raízes com o Nordeste, sua música e sua gente do que a febre que marcou a década. E, claro, trago um pouco de Tropicália, das canções que cantava. Nessas horas queria ter nascido no início dos Anos 50 para ter vivido a loucura transformadora que a década seguinte impôs ao planeta. Não quis o destino, porém, que assim fosse. E contra o destino e o encontro de espermas e óvulos não se tem como brigar.

Jimi Hendrix com certeza é um ícone dessa realidade nova, assim como Janis Joplin, Creedence Clearwater Revival, Joe Cocker, The Who, Jefferson Airplane, Santana, Joan Baez e tantos outros que estiveram em Woodstock em 1969. Após a sua morte não faltaram exclamações declaradas e textos sobre a sua genialidade como guitarrista, escritos e repetidos nos Estados Unidos, Inglaterra e no mundo. Votações e especialistas, publicações como a Rolling Stones, o colocaram como maior guitarrista que o planeta já viu. Da sua guitarra saíam sons estridentes e incríveis. Da sua voz, interpretações fantásticas. Em Blues, a certeza de que ele era realmente uma voz plural e envolvente, mágica e comovente, total, enlouquecida e sóbria em cada nota, em cada acorde, na sua plenitude. 

É difícil descrever cada música implícita no álbum pelo simples fato de escrever sob o seu som. E o som de Hendrix não é de se explicar e dizer algo técnico ou definitivo. É de se ouvir e sentir, se envolver. Algumas delas nem parecem blues. São verdadeiras orgias de rock declarado. Mas o rock não tem raízes no blues? Logo, tudo no liquidificador das emoções vira uma coisa só, embalada por Jimi Hendrix, bandas e o que vier. O que eu sei é que é um disco a se ouvir, assim como toda a discografia desse moço de Seattle encontrado morto em Londres. Assim como a execução do hino nacional dos Estados Unidos em Woodstock, em que a sua guitarra virou uma metralhadora, não pode ser desprezada pelos ouvidos de quem ama a música (https://www.facebook.com/watch/?v=1848692391934700). Sob a ação de LSD ou não, ali Hendrix mostrou que "loucura" e “sanidade emocional” convivem numa coisa só. E essa foi a essência de sua passagem rápida pela Terra: mostrar que ambos são objetos vivos dessa coisa incrível chamada música. Essa expressão que une musicoólatras por todo o planeta. A certeza de que amor e paixão haverão de prosperar na sua finitude planetária e sobreviver no inconsciente coletivo, mesmo que esse coletivo seja um grupo mirrado de ensandecidos, notívagos e sonhadores.  Sejamos, pois...

Esse álbum você encontra no Deezer e no Amazon Music.

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