segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Bach na viola caipira e a festa na roça

Por Ronaldo Faria

Imagine o compositor clássico, cravista, regente, organista, violonista e violista  Johann Sebastian Bach a saber que a sua obra viajou do barroco europeu para as cordas de uma viola caipira à terra distante chamada Brasil no longínquo 2017. Ou seja, 267 anos depois de sua morte. Será que ele entenderia a proposta de tal homenagem? E mais, saberia aplaudir a amplitude de tal gesto? Com certeza sim. Afinal, nas cordas de Neymar Dias isso virou realidade e obra de arte. Um Bach que ganha expressão própria que ele não imaginaria existir.  

Artista que toca com maestria viola caipira, guitarra, violão, baixo elétrico, guitarra havaiana e bandolim, Neymar Dias mostra em Feels Bach que a boa música é universal e transcende tempo e instrumento. Ao todo são 20 faixas. Desde as conhecidas Jesus, Bleibet Meine Freude (Cantata BWV 147) e Prélude, Fugue Et Allegro (BWV 998) a composições que não são usuais aos ouvidos daqueles que não têm em Bach um sinônimo de audição constante. No meu caso, acho que ele foi o maior compositor erudito. Talvez por ser um fã do barroco, do som do cravo e daquilo que há entre o sentimento e o silêncio, o sacro e a alma de cada um (apesar de ser ateu). A obra de Bach me traz essa transcendência num espaço tão pouco próprio a reviver sentimentos e paz – a modernidade atual. Mas Neymar Dias transpôs todos os limites dessa geometria sensorial e nos trouxe o erudito em som maior.

Eu o descobri num programa da Rádio USP chamado Revoredo (https://jornal.usp.br/radio-usp/duos-apresentam-a-viola-caipira-e-o-acordeom/). Nele, três duos de viola caipira e acordeão foram apresentados: Valdir Verona e Rafael de Boni; Thiago Paccola e Jonecir Fiori; e Neymar Dias e Toninho Ferragutti. A junção de Neymar Dias com este acordeonista nascido em Socorro (SP) gerou inclusive uma indicação ao Grammy Latino de 2014, concorrendo na categoria de melhor álbum de música raiz com o Festa na Roça. Toninho Ferragutti é outro instrumentista que perpassa a linha da genialidade ímpar.

Seu pai foi Pedro Ferragutti, compositor socorrense que era amigo de meu sogro, o maestro e músico de vários instrumentos Francisco Costa. Enfim, expandindo fronteiras musicais neste texto, o CD Festa na Roça, com suas 14 faixas, é outra pérola mágica que merece ser ouvida em comunhão com aquilo que a arte e o interior do Brasil têm de poético e definitivo – a beleza de dois instrumentos que chegaram a nossas terras com os colonos portugueses e ganharam vida e sonoridade próprias além das plagas lusitanas.  

Nele estão clássicos da música sertaneja tocados de tal forma que qualquer apartamento de cidade grande perde a sua urbanidade para virar um alpendre de casa cercada de serras, pássaros a gorjear e um cigarro de palha a pedir uma dose de aguardente. Tudo num universo de deleite e paz. Um CD que eu defino como marco obrigatório para quem ama o que é bom. Eu, carioca da gema, me rendi ao sertanejo clássico, de raiz, com suas violas e acompanhantes instrumentais, há muito. Talvez, em parte, pela infância nas perdidas fazendas que se banhavam no Rio Real, entre Sergipe e Bahia, à luz de lampião e cheiro de queimadas e grama molhada, a ouvir sanfoneiros nas noites de lua cheia.

Enfim, ficam as dicas, nas cordas e mãos de Neymar Dias: um passeio imperdível entre o erudito e o sertanejo. Assim, há opção para todos os gostos. Onde o principal é saber que a viola com suas dez cordas brincando de cinco pares está mais do que bem representada. Que o instrumento e seu par, aquele que o toca como se ambos fossem um só, são corpo e alma. E viva a eternidade das emoções. Onde São Gonçalo, padroeiro dos violeiros, fica deitado numa nuvem distante, de botas, com sua calça azul e blusa verde, capa marrom e chapéu preto, a se deleitar com aquilo que vida ainda tem de viver e sonhar.

O CD sobre Bach e o Festa na Roça você ouve no Spotify, no Deezer e no Amazon Music. O barroco ainda tem no https://discografia.discosdobrasil.com.br/discos/neymar-dias-feels-bach-viola-brasileira-solo

sábado, 29 de janeiro de 2022

Verônica Sabino a nos olhar

Por Ronaldo Faria

Prometi escrever aqui, aos poucos, sobre os integrantes do Céu da Boca, grupo musical carioca que nos anos de 1981 e 1983 ganhou o prêmio de Melhor Grupo Vocal, conferido pela Associação de Críticos de São Paulo, e marcou seu espaço como a integração de vozes masculinas e femininas num tempo onde o normal era ter quartetos de um sexo ou outro apenas (é o segundo artigo deste blog). Pra relembrar, no Céu da Boca despontaram para o cenário musical Paula MorelenbaumMaucha AdnetMárcia RuizVerônica SabinoRosa LoboPaulo “Pauleira” MalaguttiPaulo BrandãoChico AdnetRonald Valle e Dalmo Medeiros

Aqui vou tratar de um show da Verônica Sabino: Bossa, Balanço e Balada. O DVD é o Esse Seu Olhar. Filha do grande cronista, jornalista, músico, baterista e escritor Fernando Sabino, um mineiro/carioca ou um carioca/mineiro, ela começou a carreira fonográfica solo em Metamorphose, de 1985, com a produção de Roberto Menescal, que a acompanhará em músicas e papo nesse espetáculo.

A partir daí nasceram outros dez álbuns solo entre vinil e CDs/DVDs. Em Esse Seu Olhar ela percorre as décadas de 50/60 do último século musical no Brasil, o bolero e rock de Elvis Presley. Você tem, de certa forma, Geraldo Viramundo, um andarilho criado por seu pai em O Grande Mentecapto, que vai de cidade em cidade em busca da felicidade. Como ela fala no making of, além disso há o prazer do encontro. E este marcou o show que percorreu Ouro Preto, Araxá, Uberaba, Tiradentes, Belo Horizonte e Juiz de Fora, onde foi gravado. A carioca de raízes mineiras de volta ao lar afetivo.

Dos Anos 50/60, Verônica traz para os nossos ouvidos e corações as canções Demais, Ouça, Saia do Meu Caminho, Por Causa de Você, Insensatez, Besame Mucho, Kiss Me Quick, Adeus América e Influência do Jazz.

Em Chega de Saudade, ela chama a plateia a cantar, como no Japão cantaram numa apresentação sua, e sai do palco. Quem estava no Cultural Bar, em Juiz de Fora, naquela noite de março de 2013, não deixa por menos. Segue o instrumental em cada nota, no tempo dela mudar de visual e trazer à vida outros clássicos da Bossa Nova. Vêm Você e Eu, além de Se é Tarde Me Perdoa. Depois, uma homenagem aos 50 anos de O Barquinho, com a presença vocal e no violão de Menescal. Ele que a acompanha ainda em Samba de Verão. Depois, Verônica une numa coisa só duas garotas: a de Ipanema e a Nacional. Uma simbiose perfeita, única e plural. 

O show termina com ninguém menos do que Milton Nascimento, em Nada Será Como Antes. Essa música foi o tema da minha formatura na turma de Jornalismo da PUC em 1981. E de forma incrivelmente real, para mim, nada foi como antes. Mas volta a ser quando revivo Verônica Sabino. Nos 54 minutos de show e nos CDs que tenho dela, o Rio de Janeiro retorna pleno. 

A sua trajetória musical e de outros ex-integrantes do Céu da Boca nos dá conta de que tudo pode ser como antes. Afinal, se você une talento, qualidade musical e vontade, não há porque ser diferente. Neste DVD e em tudo que fez na MPB, Verônica Sabino é a prova viva e universal desse teorema.

É possível ouvi-la neste disco no Spotify, no Deezer e no Amazon Music. Para uma geral dessa musa da MPB, https://www.ouvirmusica.com.br/veronica-sabino/

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Obrigado, Yo-Yo Ma

Por Edmilson Siqueira

De pais chineses, Yo-Yo Ma nasceu em Paris. O pai era maestro e compositor e a mãe cantora. Estudou violino, viola e quando foi para o violoncelo não largou mais. Esse amor pelo instrumento aconteceu aos quatro anos de idade. Aos seis, o primeiro concerto, ao lado do pai. Em seguida, a família se muda para Nova York e aos oito aparece na televisão americana num concerto produzido por ninguém menos que Leonard Bernstein. 

Yo-Yo entrou para a Juilliard School (na qual tinha aulas com Leonard Rose), e passou um semestre estudando na Universidade de Columbia, antes de se matricular na Universidade de Harvard. Nessa idade, pouco mais de 15 anos, ele começou a se questionar se valeria a pena continuar a estudar até que, nos anos 70, o estilo do genial Pablo Casals o inspirou. Aí ele retorna à França para tocar com a Orquestra Nacional da França e com a Orquestra de Paris, sob a direção de Myung-Whun Chung. 

A carreira começa a ficar mais que sólida, pois desde a infância e adolescência, Yo-Yo possuía uma fama bastante estável e havia tocado com algumas das melhores orquestras do mundo. Suas gravações e interpretações das suítes para violoncelo solo de Johann Sebastian Bach são particularmente aclamadas.

Pois bem, esse prodígio que tem encantado o mundo com seu violoncelo, aos 47 anos (hoje ele em 55) reuniu um ótimo time de compositores, cantores e instrumentistas brasileiros para fazer um disco só com a tal de MPB. 

O disco, que poderia se chamar "Obrigado, Yo-Yo Ma" por levar a fina música brasileira mais longe ainda, tem no nome uma situação inversa. É Yo-Yo quem agradece ao Brasil pela excelência de sua música. Um dos textos do encarte diz: "Esta gravação é um tributo de todos eles [Yo-Yo e os artistas], para a rica cultura brasileira que produziu essa única, maravilhosa e variada tradição musical através dos anos".

O time é mesmo dos melhores e produziu um fantástico trabalho tanto instrumental quanto vocal, com escolha de um repertório dos mais sérios e ecléticos. Cesar Camargo Mariano, Rosa Passos, Cyro Baptista, Hélio Alves, Paulo Braga, Sergio e Odair Assad (o Duo Assad), Oscar Castro-Neves, Egberto Gismonti e Romero Lubambo são os brasileiros que participam do disco. A eles se juntaram Paquito d'Rivera e Katrym Stott para mostrar ao mundo uma pequena e preciosa parte do melhor produto de exportação que o Brasil produz: a nossa música. E que atrai gente com o talento de Yo-Yo Ma para registrá-la para a eternidade, dando-lhe novas nuances que acabam por encantar a todos.

O repertório, como disse, é dos mais ecléticos, quase todo instrumental, como Cristal (Cesar Camargo Mariano) que abre o disco. Apenas duas músicas são cantadas, ambas de Jobim e Vinicius e ambas por Rosa Passos: o clássico Chega de Saudade e O Amor em Paz. 

Mas há muito mais. A Lenda do Caboclo de Heitor Villa-Lobos com o Duo Assad; Doce de Coco (Jacó do Bandolim) com Paquito D'Rivera e Romero Lubambo. Dansa Brasileira e Dansa Negra, de Camargo Guarnieri, com o piano de Katryn Stott. Apelo (Baden Powell e Vinicius). O famoso 1 a Zero, choro de Pixinguinha, com Paquito, Romero e Cyro. A sensível Menino, de Sergio Assad. 

Um sucesso instrumental de Cesar Camargo Mariano também está presente. É Samambaia, do disco do mesmo nome. A música seguinte é nada menos que Carinhoso, de Pixinguinha. Alma Brasileira, de Villa-Lobos, Bodas de Prata e Quatro Cantos, ambas de Egberto Gismonti se unem numa só faixa, com o próprio Egberto ao piano. 

O disco iria terminar com um apoteótico Brasileirinho, de Valdir Azevedo, onde a clarineta e o violoncelo de Paquito e Yo-Yo se complementam fantasticamente. Mas há uma faixa bônus, Salvador (Egberto Gismonti) onde os dois praticam algumas peripécias encerrando o disco com um som futurista que se mistura a um longo e triste solo de cello.

Ouvir todos esses clássicos da MPB convertidos para os pungentes sons do violoncelo de um grande artista, além do prazer imensurável que dá, é prova cabal da riqueza da nossa música. 

Num longo texto de Philip Huscher no encarte do disco, está escrito: "O Brasil, vislumbrado nos instantâneos musicais desta gravação, é uma terra definida pelo seu ecletismo, pois em nenhum outro lugar do mundo os sons da África, da Europa e da América se unem para fazer uma música tão distinta e atemporal." 

Além de concordar totalmente com Huscher, deixo aqui meu agradecimento não só a Yo-Yo Ma pelo grande trabalho, mas a todos que se uniram para produzirem essa espécie de tesouro musical, onde a MPB se mostra em todas as suas belas faces.

O disco Obrigado, Brazil está disponível no Youtube    https://www.youtube.com/watch?v=4NdNgh0z8JA além do Spotify, Amazon Music e Deezer.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

A ópera que Cazuza não viu

Por Ronaldo Faria

O CD Cazas de Cazuza – A Ópera-Rock é de 2000. Dez anos após a sua morte, vítima da Aids. Dos discos que homenagearam de alguma forma o grande poeta da minha geração, este é certamente o que eu mais curto. A obra de Cazuza ou o que foi feito sobre ele, tenho tudo em CD ou DVD. Um dia escreverei sobre um ou mais deles. Nunca é demais falar desse carioca da Zona Sul e do mundo, frequentador do Baixo Leblon, das noites e madrugadas do Rio, morto em 7 de julho de 1990, aos 32 anos. Com uma carreira musical curta, de dez anos, ele ajudou a revolucionar o rock brasileiro, num período que esse gênero trouxe novidades incríveis para o cenário nacional. Na verdade, é desse período a maior safra de grupos do rock tupiniquim. A lista é imensa: Os Paralamas do Sucesso, Ira, Barão Vermelho (onde Cazuza esteve), Titãs, Kid Abelha, Legião Urbana, Capital Inicial, Engenheiros do Hawaii, Blitz, Ultraje a Rigor, RPM, Biquíni Cavadão, Nenhum de Nós, entre outros. 

Infelizmente não assisti esse musical ao vivo à época. Mas descobri há anos o seu som. Ele traz temas como o preconceito, sexo, drogas, amor, bares, exclusão social, noites e desemprego, cotidiano da gente Ou seja, a vida de muitos de nós quando nos jogamos à vida. Escrita e dirigida por Rodrigo Pitta, essa ópera voltou no ano passado aos palcos. Em dois atos, mostra o mundo de jovens do Baixo Leblon através da música do seu poeta. Quando foi lançada, em 2000, marcou a chegada de um estilo que os palcos brasileiros não estavam acostumados: um espetáculo musical com ares da Broadway.

Este CD – que pode ser ouvido na íntegra no Spotify (https://open.spotify.com/album/46IIkUE0ndfZbtuhobhNw9) – é uma entrega a muito daquilo que Cazuza nos legou. Em Brasil, a interpretação está incrível. Algo que o seu criador certamente aplaudiria por manter e ampliar a essência de uma música cada vez mais atual, diante de um país entregue à sua própria sorte. Mas não só. No pot-pourri que reúne Blues da Piedade e Pro Dia Nascer Feliz, a essência de várias vozes a invadir o universo de Cazuza, assim como em Obrigado a se misturar com O Quereres, de Caetano Veloso. 

Na verdade, todo o disco é de se ouvir várias e várias vezes, como já fiz muitas e muitas vezes. Os arranjos são bem feitos, todos atores/cantores compõem uma plêiade que vai além de sete e chega aos oito donos do palco com maestria absoluta. A verdade é que o CD, quando roda, passa rápido, apesar de ter 70 minutos de duração. E quando chega ao fim com Um Trem Para as Estrelas, Pro Dia Nascer Feliz e O Tempo Não Para, a vontade é que Cazas de Cazuza continue a trazer o poeta de volta. Mas, como trazer de volta quem nunca se foi? Nessa ópera-rock, a certeza de que o artista se vai mas sua obra está perpetuada às futuras e incontáveis gerações.

Se quiser saber mais sobre Cazas de Cazuza vá a https://pt.wikipedia.org/wiki/Cazas_de_Cazuza

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Vamos nos perder, Chet!

Por Edmilson Siqueira

"As notas que ele escolheu tinham uma profundidade incrível que realmente me atraiu. Mas Chet não só tocava. Ele também podia cantar."

Essas frases foram escritas por ninguém mesmo que Herbie Hancock, 81, pianista, compositor e um dos grandes mestres do jazz, e estão no encarte do disco Let's Get Lost, trilha sonora do filme do mesmo nome, um excepcional documentário sobre a turbulenta vida de Chet Baker produzido por Bruce Weber. 

Um dos maiores trompetistas de jazz de todos os tempos, Chet Baker também conquistou milhões de fãs com seu jeito suave de cantar, diferente de tudo que havia em termos de canto até então nos EUA. 

A trilha é um dos exemplos dessa, digamos, versatilidade, do moço bonito que surpreendeu o mundo com seu jeito de tocar e, depois de cantar. E viria a surpreender mais ainda, pois atrás daquelas feições suaves da juventude e daquele som tranquilo e certeiro, havia um viciado que teria sua vida conturbada e limitada pelas drogas e pelo consequente envolvimento com a polícia.

O documentário ganhou prêmios e é descrito como uma sincera biografia, que não poupa os piores momentos, principalmente nas entrevistas com pessoas que conviveram com Chet. A vida de Chet foi o oposto de suas apresentações, marcadas pelo talento de um músico único na história do jazz.

Ele deixou vasta obra gravada, mas morreu pobre, e até hoje se discute se seu fim se deu por suicídio, assassinato ou acidente. O fato é que ele foi encontrado morto numa calçada na Alemanha, depois de uma queda de quatro andares. Dizem que ele estava tentando deixar as drogas à época, quando realizou alguns concertos naquele país que, aliás, viraram dois discos.  Mas não se tem certeza. 

No disco, Chet Baker começa cantando Moon & Sand (A. Wilder, M. Palitz e W. Engwick) e faz um belo intermezzo ao trompete. É uma música triste de um amor perdido, como será todo o disco, como parece ter sido a vida de Chet. 

Mas nem por isso se trata de um trabalho menor, pelo contrário.  As músicas da trilha sonora do filme foram escolhidas de modo a se relacionarem com o que a tela mostra. Imagination (J. Burke e J. Heusen) que vem a seguir, também aborda um amor que só "se imagina". 

For Heaven's Sake (E. Breton S. Edwards e M. Duchess) o próprio nome já está mostrando o apelo à amada para que ela o ame "pelo amor de Deus". 

Every Time We Say Goodbye (C. Porter) é um clássico de jazz, com dezenas de gravações, e nela Chet coloca um tom intimista, quase um fio de voz a cantar as agruras de um adeus, seguida por um improviso no trompete tão pungente quanto seu canto.

I Don't Stand a Ghost of a Chance With You (V. Young, B. Crosby e N. Washington) é mais uma triste canção onde o desejo de conseguir a amada se dissolve na constatação de que tudo só pode ser um sonho. 

Todas as músicas do disco vão mais ou menos na mesma linha, mas não se trata de um disco que poderia enjoar, pelo contrário. O talento de Chet tanto para cantar esse tipo de música quanto para seus longos solos e improvisos, compensam qualquer clima mais pesado e transformam a experiência auditiva em algo prazeroso. 

Um dos destaques do disco é, quem diria, Antonio Carlos Jobim. Trata-se da mais longa música do disco (7m33s), talvez a única de Jobim que Chet gravou. É a famosa Zingaro, primeiro nome dessa música antes que ela recebesse a letra de Chico Buarque e se transformasse em Retrato em Preto e Branco. A letra, quando dessa gravação, já era conhecida, mas aqui é tão somente instrumental, com Chet passeando por toda melodia com seu trompete e, novidade no disco, um violão estilo bossa nova ao fundo, que também improvisa em boa parte da música, num ritmo mais balanceado do que o restante do disco, além de um longo improviso também do contrabaixo. Parece ser a música escolhida pelo conjunto para que todos mostrassem suas qualidades jazzísticas. É o momento, digamos, mais "alegre" de toda a gravação.

As outras quatro músicas que fecham o disco mantêm o clima sombrio, os amores impossíveis, enfim, o clássico repertório de Chet Baker que o tornou um ícone do jazz, que não deixou seguidores, mas influenciou muitos outros músicos e cantores. 

Em outro trecho do texto no encarte do disco, Herbie Hancock escreve: "As notas tornaram-se pivôs conectando os acordes. Sua intuição era impecável, suas escolhas musicais eram perfeitas. Foi então que descobri a grandeza de Chet Baker."

O documentário está disponível na Internet e pode ser acessado em https://insheepsclothinghifi.com/chet-baker-documentary/

O CD pode ser ouvido inteiro nesse endereço: https://www.discogs.com/pt_BR/release/1314441-Chet-Baker-Chet-Baker-Sings-And-Plays-From-The-Film-Lets-Get-Lost

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Vinicius, o filme necessário

Por Ronaldo Faria

Este artigo era para ter saído no último dia 21, mas a morte de Elza Soares mudou o cronograma. Logo, leiam o ontem do primeiro parágrafo como o dia 20 de janeiro de 2022.

São Sebastião teve ontem (dia 20) o seu dia comemorado na terra onde nasci, que de forma imponente é chamada de a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Hoje vou falar de um DVD (misto de documentário e pocket show) que eu acho uma obra-prima: Vinicius, de 2005. Afinal, quem melhor do que ele, o eterno Poetinha, para mostrar o jeito do carioca. Dirigido por Miguel Faria Jr, foi um sucesso no cinema e traz na interpretação de Camila Morgado e Ricardo Blat a vida e obra do grande poeta, crítico de cinema e autor de teatro, compositor, cantor, cronista, boêmio, amante, ex-diplomata e brasileiro esculachado, no bom sentido, como diria Ferreira Goulart no filme.

No documentário, junto a Goulart, há Antonio Candido, Tônia Carreiro, Edu Lobo, Caetano Veloso, Chico Buarque, as filhas Susana, Luciana, Maria e Georgiana de Moraes, Maria Bethânia, Baden Powell, Gilberto Gil, Francis Hime, Toquinho e Carlos Lyra a discorrerem histórias sobre o poeta e a relação dele com seus eternos amigos (afinal, como é dito, ele amava estar junto e odiava a solidão) e a vida. Já nas vozes de Caetano Veloso, Adriana Calcanhoto, Renato Braz, Edu Lobo, Chico Buarque, Francis Hime, Gilberto Gil, Mariana de Moraes, Miúcha, Mart’nália, Mônica Salmaso, Zeca Pagodinho, Gilberto Gil, Toquinho, Sérgio Cassiano e Olívia Byington, além do violão de Yamandu Costa, as músicas de quem contou e expôs como ninguém a alma do carioca e, muito mais, do brasileiro. São dois DVDs. O primeiro traz o filme em si. No segundo há mais cenas, entrevista com o diretor sobre o documentário e sua produção/escolha do repertório e fotos. 

No filme, ambientado como pano de fundo num espetáculo dentro de um pequeno teatro, recortes de Vinicius de Moraes a cantar, em papos caseiros com os filhos, regados a uísque, a recitar seus poemas, galerias de fotos e entrevistas diversas. E filmes de época incluídos – da família, de momentos do País e sua carreira musical e geral. Como Tom Jobim a falar que, no início, depois de Orfeu da Conceição, quando se apresentava e não o reconheciam, resolvia logo a dúvida dizendo que era o Tom do Vinicius.

Ao todo são 122 minutos de pérolas musicais, poéticas e cinematográficas. Como nas cenas onde Camila Morgado declama o Soneto da Fidelidade e o Poema de Separação com os olhos marejados e em lágrimas. Num verde molhado que nem as águas do mar que sempre tiveram parte nos parcos 66 anos de vida do Poetinha neste mundo veriam igual. Ou ele e Tom, já bastante “alegres”, a cantarem e contarem da revolta das mulheres que quebram garrafas de uísque na pia, de forma inócua, porque no dia seguinte eles compravam outras. Ouvi-lo dizer aos filhos Pedro e Susana, num vídeo caseiro incrível, a vontade de ter voltado a ver a mãe de ambos e depois, acariciado em cafuné, deitado, entregue, vê-lo exprimir em voz solene que achava não estar bem de saúde. 

Ouvir vários artistas e amigos a declamarem o maravilhoso poema Pátria Minha, tão em voga nestes tempos sombrios. Ouvir ainda Ferreira Goulart e Chico Buarque a falarem do riso de Vinicius como a coisa melhor que se pode lembrar do Poetinha. Um corpo inteiro a rir e o copo de uísque amparado no pé, sem cair. Na verdade, talvez seja isso que faça verdadeiramente falta ao Brasil de agora: alegria, riso livre, vontade de ver o mundo sob os raios do sol e não nas trevas da obscuridade que pairam em cada canto. Apesar de esse documentário completar 15 anos em 2022, ele permanece solene e pleno, atual e vivo, a contar e cantar, declamar e perpetuar Vinicius de Moraes. A relembrar que é possível se casar nove vezes por amor e viver cada amor enquanto houver chama, numa eternidade plena.

Senão, saber que Vinicius é um ser iluminado no mundo paralelo em que a música e a poesia convergem de forma desbragada e sincera. Alguém, que na última cena do filme, na voz do Chico, a relembrar um papo, foi indagado sobre se havia crença sua na ressureição. Em caso positivo, como o Poetinha gostaria de voltar. Ele não titubeou em dizer que gostaria de retornar igualzinho, só que “com o pau um pouquinho maior”. Saravá, Vininha! Daqui, nós, meros aprendizes, só temos a agradecer.

É possível assistir a esta obra no GloboPlay.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Toots e seu Brazilian cake (2)

Por Edmilson Siqueira

Como eu disse no artigo anterior, o segundo disco que Toots Thielemans gravou com os brasileiros ficou tão bom quanto o primeiro. Não era o caso apenas de repetir uma fórmula de sucesso - nem sei se o disco vendeu muito - mas sim de se aproveitar um maravilhoso repertório que, convenhamos, não se esgotou em dois discos e não se esgotaria em muitos deles, tal a qualidade do grupo que foi reunido para os "Brazilian cakes" de Toots e a quantidade de grandes músicas que cada um deles compôs. 

No disco número 2, Toots escreve algumas palavras de agradecimento e diz que se trata da "segunda parcela do bolo brasileiro que Miles Goodman e Oscar Castro-Neves prepararam para ele com ajuda da Private Music..." 

A primeira música, , de Ivan Lins e Vitor Martins, é instrumental. Uma ótima vocalize de Ivan substitui a letra. Os teclados de Ivan, o violão de Castro-Neves, o baixo de Brian Bromberg e a gaita de Toots completam o quadro.

Choro Bandido, parceria de Edu Lobo e Chico Buarque, não abre mão da bonita letra de Chico sobre a melodia de Edu, que participa cantando. Toots entra num ótimo improviso, mantendo a estrutura melódica e lenta do "choro".

Chico Buarque está presente também na terceira música, o já clássico Retrato em Branco e Preto, que Tom Jobim compôs e a chamou de Zíngaro, antes da letra de Chico. Eliane Elias no piano e Tom Clark no sopro preparam a entrada de Toots que navega como que deliciado pelas possibilidades que as longas frases da música lhe proporcionam.

Obsession, de Dori Caymmi, Gilson Peranezzetta e Tracy Mann, vem a seguir, com Dori fazendo os vocais e um time completo sustentando os floreios e improvisos de Toots.

O número seguinte dá uma nova sonoridade ao megassucesso de Milton Nascimento e Fernando Brant (letra em inglês de Gene Less) - Travessia. Milton e sua voz metálica fazem a introdução para Toots iniciar a melodia, sem mudar nada, solando mesmo, reverenciando a belíssima melodia, até que Milton voltam com alguns scats e assume a letra no famoso refrão. Se havia jeito de Travessia ficar mais bonita, não há dúvida que aqui está um exemplo. 

A gostosa melodia de Flora (Gilberto Gil) irrompe a sexta faixa, com Gil cantando suave, estendendo o tapete para Toots se divertir com a gaita, buscando caminhos não dantes imaginados e avançando num improviso que só enriquece a volta de Gil para cantar toda a melodia e misturar voz gaita num bonito final. 

Amor Incondicional (Unconditional Love) de Oscar Castro-Neves é aberta com um solo de violão de Lee Ritenour. A gaita de Toots passei pela lenta melodia dando espaço para o firme trompete de Mark Ishan.

A música de João Bosco e Capinan escolhida para o cake de Toots casou perfeitamente com o clima do disco: Papel Marché. João Bosco, muito à vontade com seu violão preciso, e Toots solando o bolero que, no caso, nem precisou da bela letra de Capinan para se destacar no conjunto. 

O sincopado samba de Chico Buarque, O Futebol, balança o clima a seguir. Chico canta a tabelinha que criou com alguns de seus ídolos do futebol e deixa o acompanhamento harmônico e um seguro improviso. Destaque para o solo de guitarra de Ricardo Silveira.

Caetano Veloso comparece com a romântica Linda (Você é Linda), devolvendo ao disco aquele clima mais íntimo. Só o teclado imitando violinos, violão de Caetano e a gaita de Toots são suficientes para que Linda se se mostre em toda sua beleza singela.

Samba de Uma Nota Só, mais um clássico de Jobim com Newton Mendonça tem arranjo diferente no início. O piano de Eliana Elias se encarrega de fazer uma lenta introdução, até disfarçando o que surge a seguir com Toots. Mas a gaita coloca as coisas no lugar o "sambinha" da dupla de criadores da bossa nova se mostra como ele é tocado no mundo inteiro. 

Na última música, Toots faz breve introdução para a voz de Djavan iniciar Oceano, apenas com o violão e um discreto piano de Dave Grusin. No fim, a união dos três instrumentos mais a voz de Djavan preenchem o clima soft da performance.

E, por fim, a música de Luiz Bonfá e Antônio Marina - Manhã de Carnaval - outro sucesso mundial que recebeu letra em inglês de André Michel Salvet - encerra o grande disco num clima de samba e (quase) Carnaval.

Assim, o cake de Toots Thielemans se completa com o mais puro sabor brasileiro e internacional. 

Esse disco, como o primeiro, está à venda no Mercado Livre e em outros sites de vendas. Ele pode ser ouvido no Amazon Music, no Spotify e no Deezer.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Toots e seu Brazilian cake (1)

Por Edmilson Siqueira

A ideia deve ter sido de Miles Goodman e Oscar Castro-Neves. Convidaram o grande gaitista de jazz Toots Thielemans, colocaram na parada a gravadora de música instrumental Private Music, de Los Angeles, e reuniram um time de artistas brasileiros num trabalho primoroso de escolha e acertos de agendas. 

Luiz Bonfá, João Bosco, Chico Buarque, o próprio Oscar Castro-Neves, Dori Caymmi, Djavan, Elaine Elias, Gilberto Gil, Edu Lobo, Milton Nascimento e Caetano Veloso. É mole? E com cada um deles Toots Thielemans gravou duas músicas que resultaram em dois discos que, de tão ricos de intepretações e arranjos, serão mostrados aqui em duas colunas seguidas. 

O trabalho todo, feito em 1991 e 1992, recebeu o nome de The Brasil Project e, no segundo disco, Toots já o chamou de "Brazilian Cake", pois ele considerava uma delícia tocar aquelas músicas todas ao lado de seus autores, o que deu um brilho todo particular à performance.

Toots era um artista já consagrado mundialmente - o melhor gaitista de jazz do mundo, segundo muitos críticos - ganhou prêmios nos EUA raramente concedidos a estrangeiros (ele nasceu na Bélgica) quando se dedicou ao "cake" brasileiro. Ele amava a música brasileira. Tanto que gravou um disco, em 1969, na Suécia, com ninguém menos que Elis Regina, que se chama Aquarela do Brasil e que será assunto nesse blog dia desses, pois é uma obra prima de ambos. 

Nos dois discos, 26 músicas, 25 delas brasileiras, com os autores na gravação e uma delas, Bluesette, de Norman Gimbel e Jean-Baptiste Thielemans (nome deToots) onde nove brasileiros participam e com letra em português também, de Ivan Lins.

O primeiro disco abre com Começar de Novo, com a gaita fazendo uma longa introdução, já demonstrando toda a qualidade do improviso que sobrevoaria todo o disco. Quando Ivan começa a cantar a primeira estrofe, percebe-se sua emoção depois de tão nobre interpretação de sua música. O arranjo, acertadamente, reserva apenas uma pequena parte da música cantada para Ivan. O astro é Toots e sua incrível gaita. 

A segunda música já ostenta um ritmo mais marcante. É Obi, de Djavan, que acompanha Toots ao violão e também canta sua música acompanhado de Toots, numa harmonia singela e gostosa.

Oscar Castro Neves, produtor do disco e também grande violonista e compositor, entra com sua Felicia e Bianca, apenas instrumental, com, além de Toots e solo de guitarra de Lee Ritenour, Mark Isham no trompete e Cassio Duarte na percussão. 

A famosa canção O Cantador, defendida por Elis Regina num festival da Record, onde ela ganhou o prêmio de melhor intérprete, vem a seguir, com o autor da música, Dori Caymmi (a letra é de Nelson Motta). Com seu vozeirão, Dori inicia a dolorida e bem resolvida letra de Nelson, apenas a primeira estrofe para que a gaita de Toots complete o trabalho com delicadeza e com improvisos que, no talento do gaitista, parecem óbvios de tão belos. Dori volta pra completar a música cantada, abrindo espaço novamente para Toots encerrar com a competência de sempre. 

Chico Buarque e sua Joana Francesa, uma delicada canção com toques, obviamente, franceses, não poderia se encaixar melhor no som da gaita de Toots, já que o acordeom, de som semelhante, é instrumento recorrente da música francesa. Chico só introduz os versos e deixa para Toots continuar, até voltar, misturando francês e português, naquelas soluções linguísticas que a genialidade de Chico sabe encontrar. E com um gênio da gaita como Toots, a canção acaba ganhando uma roupagem de gala.

O samba volta a imperar, agora mais forte ainda, na voz e violão de João Bosco, com Coisa Feita, dele, de Aldir Blanc e Paulo Emílio. Toots o acompanha na letra inteira, até assumir o arranjo e completar, sem perder o ritmo e assumindo a melodia meio complicada do samba em inspirado solo. 

A melodiosa Preciso Aprender a Só Ser, uma variação como uma nova "filosofia" que Gilberto Gil criou sobre o sucesso dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle (Preciso Aprender a Ser Só), cai como uma luva pra longos solos de Toots, numa gravação marcante, onde Gil mantém o tom da sua interpretação, deixando para o gaitista a trabalho de colocar a cereja no bolo.

Fruta Boa de Milton Nascimento e Fernando Brant é a próxima canção que ganhou roupagem nova e de luxo no disco, "apenas" com os teclados de Gilson Peranzzeta, a voz de Milton e a gaita de Toots. Um momento marcante. 

Um dos primeiros sucessos de Caetano Veloso foi a música escolhida para a nona faixa: Coração Vagabundo, que ele fez ainda na Bahia, antes de "descer" para o Rio e São Paulo. Aqui Toots inicia a canção com alguns floreios que a triste melodia permite, acompanhado pelo violão batido de Caetano, que entra cantando sem maiores alardes, comme il faut pro clima. Toots vem em seguida com um solo primoroso, inventando nova melodia sem perder a ambiência. 

O sucesso mundial de Luiz Bonfá, Manhã de Carnaval, é outra música apenas instrumental do disco. E nem precisou ganhar as palavras da magnífica letra de Antonio Maria para que nós brasileiros, ao ouvirmos o disco, lembremos dela. O solo inicial é do violão de Castro-Neves, depois entra a gaita, com a cozinha rítmica ganhando espaço conforme aumentam os improvisos de Toots. Um show. 

Casa Forte eleva a temperatura novamente do disco, com Edu Lobo, seu autor, ao violão e vocal, abrindo os trabalhos para a gaita entrar acompanhada de forte percussão. Em seguida dá lugar aos improvisos de Peranzzeta nos teclados, para numa mistura de voz, violão, gaita e teclados, preparar o final da forte música de Edu que, pelo que sei, jamais ganhou letra.

Eliane Elias, a pianista e cantora brasileira que se firmou no mundo jazz nos EUA, é a autora de Moments, pujante balada jazzística que Toots e o piano de Eliane, com um discreto baixo de Marc Johnson, se incumbem de interpretar com elevado talento, em dois minutos e 32 segundos. 

Por fim, nesse primeiro disco, aquela música em que a trupe brasileira do disco homenageia Toots, cantando a sua Bluesette, num ritmo de bossa nova, por 9 minutos e 39 segundos. É um festival de solos e vozes, em português e inglês de quase todos os participantes do disco com a gaita de Toots entrando eufórica e algumas passagens. 

O próximo disco, que comentarei no próximo artigo, é tão bom quanto esse, gravado um ano depois do primeiro, num projeto que mostra a importância de nossa música e a influência que ela exerceu e exerce sobre muitos dos maiores músicos e cantores do mundo.

Esse CD está à venda no Mercado Livre, a preços entre 50/60 reais. Ele pode ser ouvido no Amazon Music, no Spotify e no Deezer.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Elza, a voz se fez eterna

Por Ronaldo Faria

Ela viveu 91 anos, mas foi como ter vivido centenas deles, pela intensidade de como a sua vida se deu. Tenho todos os discos dela e, ao saber ontem da sua morte, no mesmo dia que faleceu o seu maior amor, Mané Garrincha, o gênio das pernas tortas, há 39 anos, não tive dúvidas: guardei o agradecimento a Vinicius de Moraes e São Sebastião, padroeiro carioca que teve seu dia ontem também, e vim agradecer a Elza Soares por ela ter existido. Foi difícil escolher de qual disco falar. Por mim, falaria de todos, mas há um espaço gráfico a se respeitar. Assim, decidi por dois: Se Acaso Você Chegasse, de 1960, seu primeiro, e Deus é Mulher, de 2018, que virou um marco para mim. 

Em Se Acaso Você Chegasse, a música que dá nome ao vinil é do grande Lupicínio Rodrigues. Nela, Elza joga pela primeira vez num bolachão o falsete que a acompanharia na carreira. Ela mostra neste álbum que surgia para ser uma rainha do samba. Uma voz para marcar o ritmo e fazê-lo ganhar espaço e importância. Nesse disco inicial há também outro clássico – Mulata Assanhada, do não menor Ataulfo Alves, onde ela repete o falsete. Ao todo, são doze canções que compõem o vinil. Nele, a nova cantora era apresentada, num subtítulo, como “A Bossa-Negra”, talvez em contraponto à Bossa Nova em voga.  Não tive este disco em mãos por dois motivos: quando ele saiu, eu ainda não tinha completado os três anos e, como disse na apresentação do blog, nunca tive um vinil (repito aqui que por ter aderido às fitas cassete e depois migrado para o CD, não por não aceitar a qualidade dessa mídia).

Se Acaso Você Chegasse traz, além das duas músicas citadas, Casa de Turfista Cavalo de Pau, Era Bom, Samba em Copa (com falsete), Dedo Duro, Teleco-Teco nº2, Contas, Sal e Pimenta, Cartão de Visita, Nego Tu Nego Vós Nego Você e Não Quero Mais. É um disco curto. A música mais longa tem dois minutos e trinta e oito segundos (Samba em Copa). A mais curta, Não Quero Mais, bate no único minuto e 54 segundos. Quer dizer, sambas curtos, com arranjos simples e a voz incrível da cantora que menos de dois anos depois desse vinil, em 1962, conheceria o Mané Garrincha, craque da futura Copa que dedicaria o título mundial e o coração a ela. Enfim, uma mulher nascida em 1930, no hoje bairro de Padre Miguel, na favela da Vila Vintém, e que gravou apenas quase 30 anos depois.

De lá pra depois, tragédias e perda de quatro filhos (entre eles, Garrinchinha, aos nove anos de idade, num acidente de carro), carreira em ascensão e queda, perseguição de muitos que diziam que ela teria destruído o casamento do craque (apesar dela ter segurado a onda do alcoolismo crônico do eterno camisa 7 do Botafogo e da Seleção). Uma vida onde a trégua pouco aparecia.

Enfim, vale destacar outro disco, como disse: Deus é Mulher, que surgiu 38 anos depois de sua estreia fonográfica. Nele, há onze músicas. São elas: O Que se Cala, Exu nas Escolas, Banho, Eu Quero Comer Você, Língua Solta, Hienas na TV, Clareza, Um Olho Aberto, Credo, Dentro de Cada Um e Deus Há de Ser. Com a participação de Edgar e Ilú Obá de Min em duas faixas, este CD é um soco no estômago daqueles que há quase quatro décadas queriam reduzir Elza Soares a uma caixa de repeniques, tamborins e surdos. Neste CD a música mais curta tem quase um minuto a mais que a mais longa da sua estreia. 

Nele, do alto dos quase 90 anos, Elza explicitou uma força musical plena, com um som rítmico que mostra que a música negra tem mil visões e formas de expressão. Arranjos incríveis e trabalhados, bem diferentes do vinil etéreo e puro inicial da sua carreira. Afinal, ela já não era mais somente uma sambista a mais. Já era, há muito, uma deusa da MPB, um ícone no mundo musical, reconhecida e admirada dentro e fora do Brasil. Na faixa Eu Quero Comer Você, talvez a multiplicidade que ela assumiu em ser plural (que ela já havia mostrado três anos antes em A Mulher do Fim do Mundo) e intérprete no novo tempo. Impossível não amar este disco. Impossível não amar Elza Soares – um ser que se fez volátil para sobreviver àquilo que a vida lhe impôs. 

Uma guerreira sem par. Que lutou com unhas e dentes, garras e força contra tudo, quase todos e o destino, e venceu. Ontem, nos deixou com uma voz que ninguém teve ou terá. Que só melhorou com o passar dos anos. Agora ela irá repousar, rever seu grande amor e filhos. Agora, irá soar no céu a voz que nunca morrerá. Que os anjos e santos a recebam com aplausos e homenagens mil. Afinal, a mulher dentro dela saiu de dentro de casa, ganhou o mundo e hoje é do universo.
 
É possível ouvir esses discos no Spotify, no Deezer e no Amazon Music, além de diversos sites.

No https://pt.wikipedia.org/wiki/Elza_Soares, um pouco dessa mulher infinita.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Elis Regina no Fino da Bossa

Por Edmilson Siqueira

Eu sei que elogiar Elis Regina é chover no molhado. Sei também que ontem, 19 de janeiro, marcou a trágica morte da estrela, em 1982. Mas hoje, aqui, além de manter minha convicção de que ela foi e ainda é a melhor cantora do Brasil, vou comentar sua incrível performance num programa de TV que durou três anos como campeão de audiência (e não foi na Globo) e vou encher de elogios um homem responsável por eternizar esses momentos de Elis em companhia de outros craques da MPB, que estariam inevitavelmente perdidos e só existiriam na lembrança de alguns por algum tempo. Eu, por exemplo, me lembrava de alguma coisa, mas mínimas perto do que foram os programas O Fino da Bossa exibidos pela TV Record nos anos de 1965, 66 e 67. Pois o responsável pela preservação desse tesouro da MPB foi o grande Zuza Homem de Mello, que morreu em outubro de 2020, e que fazia a engenharia do som (ele não gostava de ser chamado de sonoplasta) nos shows da emissora de maior audiência na década de 1960 do século passado. 

Conheci Zuza quando trabalhava no Correio Popular e, entre outros afazeres, eu escrevia uma coluna chamada Farol, na revista semanal do jornal, a Metrópole. Ele lia minhas colunas, onde música era assunto constante, pois tinha uma casa em Indaiatuba onde passava fins de semana, e acho que comprava o Correio de domingo em alguma banca da cidade. Por conta da amizade dele com Nelson Homem de Mello, então diretor Editorial do Correio (à época ambos estavam tentando descobrir se eram parentes), Zuza deve ter falado sobre mim e Nelson resolveu promover um almoço entre os três, o que me deixou todo orgulhoso, pois conhecia Zuza como autor de alguns ótimos livros sobre música e, principalmente, sobre os Festivais da Record, que eu havia comprado anos antes. 

Zuza, como engenheiro de som da Record, conta nos CDs detalhes das peripécias tecnológicas que fazia para extrair dos parcos recursos à época o melhor som possível e gravá-los por perceber que naquele palco estavam ocorrendo momentos históricos. 

Elis Regina, ainda jovem, (20 anos!), mas com o todo talento que lhe era peculiar, comandava, junto com o brincalhão e ótimo cantor Jair Rodrigues, o show que trazia a nata da MPB para São Paulo, onde ensaiavam à tarde o que iria ser apresentado à noite. Orquestra completa e grupos de jazz e bossa nova (Zimbo Trio, Os Cariocas, O Quarteto, Quinteto de Luiz Loy) completavam o cenário. O auditório estava sempre cheio e não eram "claques" e sim um público pagante que fazia fila para comprar ingressos. 

Nas centenas de noites em que o programa foi apresentado, Zuza gravou quilômetros de fita de rolo. Depois tentou, por muitos anos, transformá-las em disco. O pouco caso com música de qualidade que foi se acentuando no Brasil no fim do século passado, fez com que, durante quase 30 anos, as fitas permanecessem estocadas, ainda bem que sob os cuidados do próprio Zuza. 

 Mas o fato de a gravadora Velas ter se interessado pelo acervo e transformado-o em três CDs somente em 1994, acabou colaborando para que o som extraído por Zuza não perdesse muita  qualidade. Afinal, quase trinta anos depois a tecnologia de gravação havia evoluído muito e foi possível aparar possíveis arestas contidas nas velhas fitas de rolo que Zuza guardou como um tesouro pirata. Zuza explica como foi difícil transformar em disco a fitas depois de várias tentativas ao longo dos anos: "Para minha decepção, nenhuma dessas tentativas frutificou, até que a sensibilidade e o espírito de músico de Vitor Martins, Ivan Lins e Paulo Albuquerque, da [Gravadora] Velas, os levasse a assumir a decisão de lançar essas fitas, o que foi possível três anos depois de nosso aperto de mão inicial. E não apenas um, mas três CDs de uma só vez, em álbum triplo" (na verdade são três CDs independentes).

Prossegue Zuza: "Se de um lado o tempo provocou um desgaste natural às fitas, de outro, a tecnologia digital e os recursos atuais de recuperação permitiram reconstituir, na medida do possível, como na arqueologia, o som daquelas segundas-feiras dos anos 60". 

Zuza explica também muita coisa daqueles tempos de euforia musical, além de acrescentar um ótimo depoimento de Elis, dado a ele mesmo, em duas entrevistas feitas em 1978 e 1979 para o Programa do Zuza que ele mantinha na Rádio Jovem Pan. Os depoimentos de Elis são longos e ocupam os encartes dos três volumes. Enfim, os CDs são um documento precioso do que eu costumo chamar de raízes da moderna música popular brasileira. Ali estiveram desde nomes consagrados do samba como Ciro Monteiro, Dorival Caymmi e Baden Powell, como grandes intérpretes como Elza Soares, Lúcio Alves e Agostinho dos Santos. E jovens que estavam iniciando carreiras que viriam a se tornar históricas no Brasil, como Gilberto Gil, Wilson Simonal, Hermeto Paschoal, Edu Lobo e Jorge Ben (depois Benjor). Sem contar os instrumentistas todos de grupos como Zimbo Trio, Quinteto de Luiz Loy ou a grande violonista Rosinha de Valença.

Com esse time, e muitos outros bons nomes (Ataulfo Alves tem uma apresentação espetacular, Adoniran canta várias músicas com Elis e revela, inclusive uma, até então inédita, parceira com Vinícius de Moraes) à disposição, o resultado só podia arrancar aplausos em cena aberta em quase todos os números apresentados. 

Os três CDs, intitulados Elis Regina no Fino da Bossa Ao Vivo, são o retrato de uma época em que a televisão, em branco e preto, parca dos infinitos recursos de hoje, retratava, pelo menos em alguns programas, o que havia de realmente melhor na música brasileira. Durante três anos, o brasileiro amante da boa música tinha um encontro semanal de duas horas com o fino do fino da MPB, comandado por uma cantora que se firmava definitivamente no cenário musical brasileiro e por um cantor, Jair Rodrigues (sim, o programa era mais ou menos dos dois), que com sua alegria no palco, suas improvisações e suas ótimas interpretações, acrescentava a dose exata de humor e qualidade em noites memoráveis. A grandes momentos do Fino, Zuza acrescentou duas apresentações de Elis com outros artistas em dois outros programas da Record: o Show em Simonal e o Corte Rayol Show, também campeões de audiência à época. 

Os três CDs ainda estão à venda em sites na internet, mas quem quiser ouvi-los de graça, estão à disposição no YouTube, nos links abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=lFzPjf_NZ2M

https://www.youtube.com/watch?v=TBr2UaTBiO8

https://www.youtube.com/watch?v=NuOB8VyfyBE

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Voz, violão e coração

 Por Ronaldo Faria

Voz e violão apenas. É pouco? Precisa mais? Cadê a banda? O backing vocal onde ficou?  Acho que pouco importa. A junção dos dois, voz e instrumento, já traz à tona e alma aquilo que é essencial para quem ama a música: a certeza de que o intimismo do homem com as cordas far-se-á um só. Em Solo Contigo, Geraldo Azevedo consegue isto. E certamente não precisava mais do que isso. Gravado no Rio de Janeiro em 6 de Setembro de 2018, no Imperator - Centro Cultural João Nogueira, o show traz 24 músicas de uma carreira que “começou” aos cinco anos, quando ganhou um violão do pai, feito pelo próprio. A partir daí o caminho para uma obra expressa em 25 discos/CDs e três DVDs – Solo Contigo, Uma Geral do Azevedo e Salve São Francisco (além das três edições de O Grande Encontro). Aqui vou me ater ao primeiro da lista, que é o último lançado, em 2019. 

Nele, Geraldo Azevedo se atira ao cerne da sua obra. Vê-se a parceria com o grande ator e poeta Mário Lago, Fausto Nilo, Nando Cordel, Alceu Valença, Capinan e Zé Ramalho, entre outros. Há ainda canções de Vital Farias, Chico César, Sérgio Peres e Luiz Melodia onde ele se faz intérprete. Hoje, aos 77 anos completos no último dia 11 deste mês de janeiro, o artista se aventura pelos palcos junto com Chico César no espetáculo Violivoz. Ou seja, vitalidade não falta aos nossos quase octogenários musicais. Para nossa felicidade.

Aos poucos, à medida que o tempo passa e os ídolos musicais vão envelhecendo também, parece que parte da vida fica estagnada. Mas Geraldinho, Chico, Caetano, Gil, Zé Ramalho, Milton, Tom Zé, Gal, Bethânia, Alceu e outros mostram que não. Que há vida produtiva e solar àqueles que sempre foram grandiosos. Não é saudosismo apenas. Afinal é impossível não reviver momentos que marcaram junção entre canção e emoção com “Veja (Margarida)”, “Dia Branco” (que é cantado num coro afinado da plateia), “Caravana”, “O Charme das Canções”, “Você Se Lembra”, “Canta Coração”, “Sabor Colorido” e “O Princípio do Prazer”. Como não redescobrir a força que sempre houve em “Dona da Minha Cabeça” e “Bicho de 7 Cabeças II”. Aliás, nessa última Geraldo Azevedo volta com o solo que leva o público ao delírio. Ele e o violão continuam amigos do peito e em simbiose.

O fim do espetáculo vem com “Táxi Lunar” e a vontade de entrar num desses para fazer o tempo voar à frente ou voltar aos tempos bons, rompendo com a velocidade da luz esses tempos sombrios de agora, se torna uma catarse entre o artista e a plateia. Em cerca de uma hora e 22 minutos, é possível determinar que a saudade se faça palavra extinta dos dicionários para cravar em som o presente final – aquele em que achamos que é possível eternizar a plenitude numa concha qualquer, que mar ou maré nenhum levarão. Enfim, Solo Contigo é uma joia rara nesses dias de pouca criatividade, a rememorar canções que já comemoraram maioridade há anos. Mas não é a maioridade a sentença de que atingimos o melhor de nós? Ou não? Na dúvida, cravo aposta no sabor a na emoção.

Solo Contigo está no Spotify, no Deezer Music e no Amazon Music.

Aqui, 35 sucessos do Geraldo Azevedo: https://www.youtube.com/watch?v=jKiZxqkM_8g

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

O talento de Papete

Por Edmilson Siqueira

Assim como Jobim, nas palavras de Sérgio Augusto, foi nosso melhor Antônio Carlos, Papete foi o melhor José de Ribamar que o Maranhão nos deu. Engenheiro ambiental por profissão, pouco fez pelo ambiente físico, mas elevou o ambiente cultural do Maranhão a alturas internacionais. 

Eu conheci sua música há muito tempo, quando ele participou de um festival em Campinas com “O Bonde”, singela composição que, depois, faria algum sucesso nas rádios. Mas suas qualidades todos nos foram apresentadas pela Discos Marcus Pereira, sonho de um publicitário que produziu grandes trabalhos e que faliu, como muitos empreendimentos culturais honesto nesse país. Nesse LP - Papete, Berimbau e Percussão - o primeiro dele,  Papete demonstrava mais que suas composições ou sua interpretação correta e singela: havia arroubos de um percussionista que chegou a ser considerado um dos cinco melhores do mundo. Na contracapa do disco, escreveu, mais ou menos assim, um surpreso Marcus Pereira: "Levei um amigo neurocirurgião para assistira uma apresentação de Papete. Ao final do show, ele me disse que o que ele faz na percussão é raríssimo. Um lado é independente do outro, ou seja, ele pode tocar uma coisa com a mão direita e outra com a esquerda, sem perder o ritmo em nenhuma das duas."

As qualidades rítmicas de Papete chamaram atenção de grandes nomes da MPB. Durante um bom tempo ele fez parte dos músicos que acompanharam Toquinho e também João Bosco em shows pelo Brasil e pelo mundo. 

Esse LP da Marcus Pereira, que já não tenho mais (deve estar com minha filha, que herdou todos quando decidi ficar só com os CDs) também vendeu bastante e deu certa fama ao maranhense. 

Depois, Papete gravou mais alguns discos e dois deles, que tenho em CDs, vou destacar aqui. Um é Água de Coco, onde ele mostra, com arranjos magníficos, um leque de seu talento, abrangendo percussão, composição e interpretação. E não tem receio algum de colocar sua visão pessoal em material sagrado como “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil, “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam e ‘Promessa de Pescador”, de Dorival Caymmi. E juntando ainda a música típica do Maranhão interiorano, sua especialização maior, em “Cavalacanga”, de Sérgio Habibbe, completada com a instrumental “Procissão dos Mortos”, de Marcus Vinicius. As oito faixas do disco são preenchidas com três composições próprias: a já citada “O Bonde”, “Água de Coco” e “Se Num Samba”. 

Trata-se de um disco que chama a atenção pela qualidade sonora e pela ousadia dos arranjos, como em “Domingo no Parque”, onde um berimbau passeia por toda a música, criando um clima meio nebuloso para uma música que retrata uma tragédia urbana nos quase cinco minutos de duração. “Ponteio”, na visão de Papete, é apenas instrumental, onde um surpreendente teclado faz a melodia, contrastando com a percussão e a viola nordestina. São mais de sete minutos de pura inspiração e improviso. 

Sobre o outro disco, Papete mesmo declarou que se trata de um trabalho emblemático. São nove faixas dedicada à música maranhense das festas e procissões. São composições singelas, onde a festa do boi é tema recorrente. Nesse trabalho, a opção de Papete foi cantar as músicas como elas são, sem maiores arranjos, na simplicidade com que são cantadas nas festas religiosas ou carnavalescas do seu Maranhão. “Boi na Lua”, “Boi de Catirina”, “Dente de Ouro”, “De Cajari pra Capital”, “Flor do Mal”, “Engenho de Flores”, “Eulália”, “Catirina” e “Bandeira de Aço” são as faixas que compõem essa grande homenagem de Papete aos compositores maranhenses. 

Papete morreu em maio de 2016, aos 69 anos, lutando contra um câncer. Foi embora cedo, mas deixou um legado precioso que será cultuado para sempre. 

Os três discos estão no YouTube, nos links abaixo:

 https://www.youtube.com/watch?v=AgGxx2k4oME, 

https://www.youtube.com/watch?v=QvDdZBoEa4c

https://www.youtube.com/watch?v=03lfBktfRXs

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O Mestre no instrumental

Por Ronaldo Faria

Eu idolatro Angenor de Oliveira por ele ser mangueirense e fundador da Verde e Rosa ou eu idolatro a Mangueira por ela ser berço de Angenor de Oliveira e tantos mais? Eis a questão. Até hoje não fechei essa equação. Mas Cartola, assim como Nelson Sargento, Carlos Cachaça e Jamelão, entre tantos outros, são um momento à parte deste mundo chamado Samba, pelo qual sou um apaixonado. Este ano, aliás, se houver Carnaval no Sambódromo, ele, Jamelão e Delegado (mestre-sala maior da escola) serão os homenageados, com justa razão.

Mas Cartola, razão deste texto, é um daqueles casos onde o destino esqueceu e depois lembrou, para as bênçãos da música, que existia e produzia obras-primas do samba. Do Bloco dos Arengueiros que seria a essência para fundação da Verde e Rosa em 1928, Cartola teve sambas gravados na década de 1930 por nomes como Araci de Almeida (musa de Noel Rosa), Carmem Miranda (nossa embaixadora nos Estados Unidos), Sílvio Caldas (o eterno seresteiro), Francisco Alves (Chico Viola ou Rei da Voz) e Mário Reis (o Bacharel do Samba). Contudo, apenas aos 66 anos, em 1974, ele foi a um estúdio gravar o primeiro daquele que daria espaço a mais três discos, até a sua morte em 1980, aos 72 anos.

Mas eu não vou discorrer aqui sobre nenhum desses quatro discos do Mestre Cartola. Mas falarei noutros textos, deles e de outros em sua homenagem, como um do Arranco de Varsóvia. Vou ficar aqui em um que surgiu em 2008 – o Chora Cartola. Esse é um CD instrumental com 15 canções do Mestre em forma de samba/choro ou choro/samba. À exceção da última faixa “A Canção Que Chegou”, todas são um discorrer de notas e harmonias musicais com Carlos Malta (flautas e sax), Marcello Gonçalves (violão de sete cordas), Joel Nascimento (bandolim), Paulo Sérgio Santos (clarinete), Beto Cazes (percussão) e Rildo Hora (gaita). Na derradeira música, a voz de Moyseis Marques. E há outros músicos esporádicos e convidados em algumas faixas.

Na verdade, este CD mostra que o samba de Cartola é de uma profusão de tal beleza que nas mãos de solistas incríveis se enche ainda mais de ternura e musicalidade. Esse é um disco que merece ser ouvido num final de tarde, numa noite de lua, numa madrugada de brisa fresca, numa manhã de sol a brilhar. Enfim, a toda a hora. Tem as clássicas “As Rosas Não Falam”, “Alvorada”, “Tempos Idos”, “O Sol Nascerá”, “Acontece”, “O Mundo É Um Moinho” e “Divina Dama”, entre outras canções que se eternizaram no mundo sonoro da MPB. Como toda a obra de Angenor de Oliveira, este CD é lirismo e samba da melhor qualidade. Logo, que este ano a Mangueira possa homenageá-lo no Sambódromo, ou não, se a pandemia impedir. E se impedir, falhará no seu intento. Afinal, Cartola vive hoje e eternamente em cada acorde que o coração faz pulsar. E isso nenhum vírus vai matar.

Ps.: este disco você encontra no Spotify.
Para ouvir um pouco do Mestre (150 músicas): https://www.ouvirmusica.com.br/cartola/

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...