quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Dedo mindinho miudinho

 Por Ronaldo Faria

    Ricardo costumava coçar a cabeça com o dedo mindinho da mão direita sempre que algo lhe parecia errado. Enfastiado com o enfadonho dia que tivera na repartição pública, que mais pudica não seria senão, esperava as horas passarem para bater o velho e amarelado cartão no ponto que ponteia o limite entre a loucura e a sanidade. Aguardara meses por suas férias, quase efêmeras nas feéricas loucuras que pensara para viver livre. “Vou-me ver livre de pensamentos e lamentos, ônibus lotados, fadados a foder o operário do erário.”
Na querência de um amor verdadeiro, desses que poetas escrevem como sendo fáceis de se encontrar, Ricardo vagava solitário entre organogramas, tarefas inverossímeis e prazos eternamente dilatados. “Vá no seu ritmo, Ricardo. Aqui é repartição pública. Sem pressa. Quem se apresa perde o melhor do funcionalismo estável: poder faturar no fim do mês o salário sem medo de se foder.” A voz do seu chefe, perto de se aposentar com todos direitos preservados, batucava na sua cabeça. “Foda-se o populacho. Afinal, tudo aqui é um escracho. Eu quero é curtir meus dias de férias merecidos por nunca faltar, chegar no horário adiantado e sair depois do relógio deixar.”
Ricardo, um asno para seus companheiros de repartição, nem acreditou quando bateu o ponto que determinava 30 dias de afastamento. “Meu Deus, agora somos só o Senhor e eu!” Fechou a gaveta com chave, deixou à mostra os processos que não concluíra a tempo (“Quando eu voltar decerto ainda estarão aqui”) e desceu no elevador com suas portas pantográficas enferrujadas. “Boa noite, Seu Luiz, até daqui a um mês.” O porteiro agradece o cumprimento e deseja bom descanso a Ricardo. Ele, feliz a curtir seu momento, segue rua abaixo a cantarolar um samba do Cartola.
As desejadas férias de Ricardo, deixo a cada um decidir:
1)      Acorda cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a bagagem e senta no assento, com direito a janela. Horas depois desce no destino. Vai até a pousada e curte seus merecidos dias em eterna orgia.
2)      Acorda cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a bagagem e senta no assento, com direito a janela. O avião, porém, pago em 12 vezes sem juros, estava um bagaço e cai 20 minutos após decolar. Todos, passageiros e tripulação, morrem instantaneamente. Irreconhecíveis, tiveram enterro coletivo.
3)       Acorda cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a bagagem e senta no assento, com direito a janela. O avião, porém, no bagaço, apresenta problema mecânico e faz um pouso forçado a milhares de quilômetros do destino. Lá, porém, Ricardo conhece Vitória, passageira também e sonhando com as férias. Com ela faz história, interage e fica, manda o emprego público à merda e vira empreendedor social. Hoje tem três filhos e descobriu que a vida é para se viver.
4)      Acorda cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a bagagem e senta no assento, com direito a janela. O avião, no bagaço, levanta voo e é obrigado a voltar ao destino. O piloto pede perdão aos passageiros e a companhia aérea promete ressarcir a todos com nova passagem, dentro de 30 dias, e um chaveirinho. Desolado, Ricardo passa as férias em casa, sem (como diria o poeta) mandinga de amor. Na volta ao trabalho é suspenso por ter dado um soco no rosto do porteiro que lhe desejou bom retorno.
5)      Acorda cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a bagagem e senta no assento, com direito a janela. Só então acorda, suado, do sonho no meio do expediente no dia quente (o ar-condicionado da repartição estava quebrado e não havia dinheiro para consertar). Por falta de funcionários concursados, suas férias foram suspensas, a bem do serviço público. Na mesa a pilha de processos se acumula. “Que se foda!” – brada colérico antes de mais um café tradicional.

(Ao som do delírio)

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