sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Saudando a saudade

Por Ronaldo Faria


Saudade santificada e apoteótica, aquela que nenhum olho nem na melhor ótica nenhum óculos irá encontrar. Porque ela está além das lentes que acolhem a vida. Saudade profética e estética, estática no tempo como se esse quisesse somente parar sem sair do lugar. Coisa de semente que não brota a lembrar e relembrar, se descascar feito laranja largada no pé, solitária à espera de um bico de pássaro para comê-la.
Saudade que a gente guarda em si e resguarda cada momento pleno de lembranças anchas num lumiar que escurece a cada dia. Coisa pequena e gigantesca, como os lábios ou as tetas (seios) da amada. Provérbio de verbos mil, tresloucados e resguardados, guardados em flores que cobrem os galhos secos da poesia nunca escrita. Inaudita, segue no retinto entre o coração, o peito vazio e a incerteza do próprio senão.
Saudade proscrita nos introitos tortos e performáticos que as frases ao léu levam além do fel que escorre das bocas sem os lábios outros a se esconderem na prosaica lucidez que já não há. Sanha de sobreviver com o corpo se tornando um nada banal na frieza frágil que se cristaliza além da estrada que termina no nunca e jamais. Acalanto à busca de um canto ou um cântico onde possa deitar no colo da saudade para reviver a canção.
 
II
 
-- E aí, você acha que estamos indo embora?
-- Acho. Mas, também, tanto faz. Onde toca samba toca jazz.
-- Ou seja, nada ficará?
-- Algo irá ficar. O tempo, porém, será ermo. Bem ao termo do sonhar.
 
III
 
A árvore defronte do morro que não existe, antes coberta de flores de cor grená, agora está que é só galho seco, sem uma folha sequer. Ela se rendeu à morte da beleza para sobreviver porque sabe que logo mais irá reflorescer. Encher-se-á de verde, virar pouso de andorinhas, pombas, bem-te-vis, pardais, graúnas e sabiás. Nos seus galhos fará dormir os pequenos corpos cansados de tanto voar desde os primeiros raios do sol. Irá balançar aos ventos de fim de ano e seguir seu destino sem desatino sequer. Porque para isso ela nasceu e foi feita: seguir. A árvore, bela e resistente num canteiro diminuto de cimento, há anos se transmuta e muda de acordo com as estações atabalhoadas dos anos. Esperemos ser iguais nesse pouco tempo que restar...
 
IV
 
-- E aí, Renato, vamos pro centro saravar?
-- Vou pensar. Mas até deu vontade de bater um atabaque.
-- Vamos lá. Quem sabe não é a hora de rever e ver o que nunca virá, mas que a gente teima em acreditar...
Amigos de tempo remotos e tortos, Renato e Humberto, desses que não se sabe se estão juntos por caminhos tortos ou certos, brindavam no boteco mais um dia passado. Frágeis, fortes, dicotômicos e atônitos por tudo que já passaram e viveram, agora estão entregues aos tragos que descem garganta a dentro. São apenas lembranças paradoxais de uma trança do cabelo de Maria ou das pernas de Zélia a subir no ônibus circular. Culpados por padecerem no mundo e parecerem normais em toda loucura viva, são dois num só em pálidos segundos doloridos que se transformam em urdidos acordares quando o mundo ainda respira o negror de ver o tempo passar.
-- Quer saber, vamos sim. É hora dos santos agradecer e reverenciar.
Pagam a conta, que remonta três dígitos, entram no Uber mais perto e descem diante do centro onde a umbanda é a banda do bem. Dão cinco estrelas para o motorista que ficou calado todo o percurso, seguem o curso da vida, sentam na plateia (porque bêbado não dá para na gira entrar), cantam aos santos, recebem os passes de Vovó Maria Conga, Pai Manoel e Nanã Buruquê. Saem refeitos e quase perfeitos do lugar sagrado e cheio de milagres.
-- Porra, estou me sentindo bem pra caralho! Vamos tomar a saideira?
Param no boteco que teimava em estar aberto na área de conflito entre duas facções e são baleados sem nada ter a ver com a briga da comunidade que habita a cidade distante e inaudita. Viram pé de página no jornal que registra a sina. Ao menos o baluarte da imprensa livre (mesmo no extrato dobrar e jorrar sangue) deixa claro que ambos eram ficha limpa.
 
V
 
Cândido e Candinho eram amigos desde os Anos de Chumbo. Lutaram juntos contra a ditadura, foram torturados, seguiram ao exílio e sonharam a hora de voltar. Foram recebidos no retorno aos gritos de “Anistia” e “O povo unido jamais será vencido”. O aeroporto era o porto que se abria mesmo longe do mar. Voltaram para ouvir, como diziam poetas, os cantos do sabiá. Seguiram juntos e unidos. Unha e carne. Na cantoria que existe entre o oceano e o sertão. Viajaram quilômetros em milhares de estradas da felicidade e da agonia na verborragia que lhes restava ainda. Pregaram a reconciliação, a ação que dá uma sobrevida à vida, mostraram que o perdão leva a algum lugar, seja esse qual for. Foram arauto e silêncio na querência que a sequência da história fez-se de sentença e glória. Meio sentença e outro tanto sinal. Pregaram, diriam os incautos e profanos, em vão. Morreram quase no mesmo dia, não lhes separasse meses de remissão. Enterrados em lápides diferentes, como toda a gente que lhes foi o súbito e maior altar, dizem que se encontram num céu desses que ninguém jura de pés e mãos juntos que há.
 
VI
 
O altar da pequena capela é a cena central. Cheia de cocô de morcegos que vivem no desassossego de trocar o dia pela noite a defecarem nas imagens dos santos restantes do lugar, como retirantes da fé, ela está ali: entregue ao tempo que gira sem parar. A fazenda, antigo engenho chamado Murta, é somente um espaço cheio de pedras e rezas, reses mil. Cheio de histórias, velhas de vestido preto e um telefone de pilha e manivela pra girar, são o restante de tempos nunca impávidos e sequer em colosso. Nele uma menina como que esquecida da mãe e do pai cresce a incandescência do sol que brilha claro cheio de lumiar. Entregue aos tempos antigos de juntar família e algo qualquer que se deseja ser no ar, dá-se ao homem único e escolhido. Em silêncio, com o pano onde irá derramar a virgindade arrancada, vê-se em véu branco como a festa da cantilena da sereia que sabe que não existe além-mar. Feito barca que corre um rio revolto a desaguar nas ondas que teimam em tentar dormir na areia que há, cumprirá seus sonhos insones e largar. Longe do lar conquistado, sem um fado sequer que valha qualquer foda tida, irá morrer numa cama asséptica e branca de um hospital de nome de tal e tal. Na areia clara e fina do rio que chamam de real, certamente o tempo que se esvaiu há tempos no coronel e lembrava o nome de Jesus lhe retorna ao lar...
 
VII
 
Um grupo pra reviver 45 anos de uma república? Casinha pequena e pétrea na parafernália da metrópole que se fez acrópole do passado, casuística e mística, quase música e certa pichação (com certeza hoje coberta de tinta) do poeta que chora a resposta posta para cravar a vida da amada numa esquina que não tem o grito do Ipiranga e muito menos as bênçãos de São João. Porém, se tudo na vida destino há, que venha tal encontro a que se destina...
 
VIII
 
Arrependimento não haverá. Não há. Afinal, o tempo não tem como voltar. Errou-se? “Erro” se perpetuará. O que ficou, ficará. No seu tempo proscrito na imensidão. Voltará claro e volátil de tempos em tempos, como se quisesse se refazer. Ao saber que não poderá, surtará. E irá bater nas efemérides e intempéries que sofrem na seca um pé de cajá.
 
IX
 
Caralho, os numerais em algarismo romano o tal de aprendiz de poeta ainda sabe... Revoltado e ao mesmo tempo a aceitar o que foi e vier, José é só um pingo de cinza na humanidade que a verdade transformou em algoritmos sistêmicos e isquêmicos. Agora, em Marte ou no quadrado esférico e retangular do luar lá fora e aqui dentro, no aforismo quântico tudo está igual. Saudoso desde já da vida que se esvai a cada dia naquilo que ainda virá, o mundo cumpre seu destino interrupto e modal. Afinal, há milênios mil faz tudo isso sempre igual. Loucos, poetas e profetas souberam vê-lo em pesadelos e embriaguez em enlevo e zelo. Já aqueles que nunca souberam tê-lo, as telas de pequenos buracos marcados de sangue recobrem de vida o lugar cheio de pernilongos a sugar o sangue da gente incauta na busca do prazer.
 
X
 
De verdade, me pergunto como os escritores e poetas antes do computador (filho de 1957 sou deles também, mas sobrevivi para ver a tecnologia chegar) conseguiam rever e revisar seus textos sem rasgar papéis ou laudas e dizer “caralho seria tão mais fácil se não precisasse colar ou reescrever tudo novamente!” E tanto reescrevi, rasguei, colei e xinguei. Nada como um dia depois do outro, como uma noite e madrugada no meio. Seja o que isso for...
 
XI
 
Bahia, minha terra etérea e verdadeira, com seu povo e sua linhagem, descoberta de amores (um que me livrou da morte no Ceará com a sobrinha-neta de Lampião), louvores, raízes, cheiros, odores, luzes, descobertas, paixões, unções, lembranças anchas, coisas que nunca deixarão o copo torpe e repleto de lembranças que a gente nem sabe, hoje, se realmente existiram. Bahia minha, saudade suada e calada, a gritar a cada dia numa imensa nostalgia, deixa dormir a amada que vive sua noite sem dois em dó apertado.
 
XII
 
Doze escritos como os mandamentos. Tormentos, lamentos, excrementos do viver. Candelabros e descalabros a brilharem na lua gigante e infante, arfante para muitos e tantos. E ainda bem que nessa Terra há amantes nus e sob as mantas jogadas no chão nesse Inverno que parece o inferno do calor seco e quente. Que os deuses da loucura e daquilo que tiver de ser saibam ser no desmedido do que for na seca flor. E se não acordarmos amanhã, nem aqui ou nos polos norte e sul, que a morte nos seja tão nobre como esse escrever.
 
(Com Caetano e tantos outros)

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