quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Gal, nossa musa fatal

Por Edmilson Siqueira 

Escrevo ainda, na quarta-feira, sob a emoção de receber no ar, durante o programa que participo diariamente na Rádio Bandeirantes de Campinas, a notícia da morte de Gal Costa. Comentei ligeiramente, afirmando a grande perda e dizendo que fora uma das maiores de todos os tempos da MPB. Encerrei rápido que a garganta começou a embargar a voz e, se continuasse, iria fatalmente chorar ao falar de Gal num programa político.   


E, depois de programa, no almoço, fiquei ouvindo pelo rádio depoimentos de amigos e artistas, todos emocionados também, falando das grandes qualidades dessa cantora ímpar no cenário brasileiro. Ela, Elis e Elza, formam um triunvirato imbatível em termos não só de qualidade, mas de revolução mesmo no meio musical. Poucos artistas souberam, como ela, vestir um movimento sob sua voz e sair dele com a mesma dignidade com que entrou, dando sequência a uma carreira que já era vitoriosa e tornando-a mais vitoriosa ainda.  


Conheci a voz de Gal ainda Maria da Graça, num disco que ela gravou com Caetano Veloso, chamado "Domingo". Nele, só músicas do baiano que ainda não era o revolucionário da Tropicália, mas já mostrava a ousadia nas letras e nas soluções melódicas. E a voz de Gal embrulhava tudo isso numa embalagem mágica que não só acrescentava muito mais beleza na composição, mas também dela se assenhorava de modo que ninguém mais poderia fazer melhor.  

Mas o disco que estou ouvindo para me lembrar, quase às lágrimas, de Gal, é outro. É uma obra-prima, pessimamente gravado num teatro do Rio (o Tereza Rachel) e que virou cult, pela inacreditáveis interpretações, pela singeleza de todo o trabalho, pela garra no palco, pela coragem de enfrentar a ditadura de modo que nem a própria ditadura, com sua imbecil censura, conseguia proibir, pela excelência dos músicos (a guitarra de Lanny se tornou histórica nesse disco) e pelo conjunto todo do disco, revelando novos cantores e dando à MPB um novo rumo, que não diferenciava samba de blues, chorinho de rock e só se baseava na qualidade da música, na coragem de cantar tudo e no sonho de ser artista e registrar o presente, mas atento ao passado e esperançoso do futuro. 


O disco é "Fatal" ou "Gal a Todo Vapor", cujo show foi dirigido por Roberto Menescal e teve como arranjador o Lanny, já citado aqui, da guitarra mágica. Talvez nem seja o melhor disco de Gal, mas é o mais importante, pois juntava a revolução da Tropicália com músicas de Caetano, Wally Salomão, Jards Macalé, Morais Moreira e Galvão com a tradição de um Geraldo Pereira, de um Ismael Silva, de um Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, além do folclore baiano com inesperadas inserções.  

Todos os depoimentos que ouvi sobre ela, hoje, batem numa mesma tecla: a de sua perenidade eivada de ousadia. Claro, a incrível afinação de sua voz, os agudos impressionantes que alcançavam, suas versões janejoplianas de alguns clássicos, sua fase mais pop que alçou ao estrelato nomes que se confirmaram posteriormente, tudo isso hoje se torna uma herança bendita dessa incrível cantora, mulher, artista e amante de toda nossa geração que sonhávamos sonhos proibidos toda vez que a ouvíamos no rádio, na vitrola ou, muito mais fatal, a víamos na televisão. 

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Ouvindo o Zé Ramalho

 Por Ronaldo Faria

Saudade. Maldade. Perversidade. Lá no fundo, a cidade. Distante, conflitante, mistério na vida e na dor atenuante. Entre eu e o meu eu mesmo, a fábula que, em inglês, diz siga-me. Follow me...

E eu vou seguindo. Na trilha que escurece e brilha. Percorre ruelas cheias de pó e pedras, pedaços de histórias, histriônicas e esotéricas. Histéricas. Reais. Que delimitam a lucidez e a loucura. Marcam e perfuram, aprofundam o limite entre a descoberta e a cura. Nos deixam entre a vida e a eternidade que não verá a manhã, nem a noite e sequer a tarde. Nada nos fará dormir sem pesadelos bisonhos, pedaços de sonhos, a chegar a nenhum lugar.

Por aqui, entre uma tela que brilha e uma ilusória cerca que sangra, fico travestido de saudade, um ser sem poder. Sem corpo, copo, cópula, estrada para Cornucópia. Alguém entre o dedo mínimo e a língua na outra boca. Carcomido por si mesmo, caminhando longe do açude, do rio, do litoral. Submerso entre a embriaguez e a madrugada que aflora em sofreguidão irracional.

No copo, vodca e coca. Inconsequente e vulgar. Sob a lua minguante, entre esquinas, prostitutas e mulheres, sinas, seres lunares à senda de trilhar. Corpos desnudos, palavras vãs, vaginas. Coração perdido e anginas. Ladeiras de paralelepípedos, descidas de areias e sereias a beirar um canto escondido e o cântico do mar. Mistério escondido a arfar.

Aqui na frente, lá de lado, acolá, mais um descarregar de líquido alucinógeno, misturar de preceitos e trejeitos, desejo de servir e sorver loucuras e pernas de mulheres transformadas em mesuras, medusas e semideusas. Logo, "Deus", me dá ao menos em devaneios aquela que eu quero antes da fuga que chega depois do derradeiro vendaval. Livra-me de morrer antes que eu descubra se há em mim amor ou mal. Que seja eu a ligação perdida entre os filhos, o avô e o pai.

Agora, entre a liberdade que se faz e se desfaz na inusitada chegada que se encerra (à antiga) na esquina onde aporta a escuna que me leva ao universo entre o início e o fim, digo-me corpo inútil, fútil, a verter limites do que eu quero e aquilo que me é dado, por fim. Na perfídia desmedida e infinda, despeço-me aqui. Afinal, sem saber, acho que já passou o meu Carnaval.

“Sejam quais forem os sentimentos e os interesses humanos, o intelecto é, também ele, uma força. Esta não consegue prevalecer imediatamente, mas por fim seus efeitos revelam-se ainda mais peremptórios. A verdade que mais fere acaba sempre por ser notada e por se impor, assim que os interesses que lesa e as emoções que suscita tenham esgotado a sua virulência”.
Sigmund Freud, in As Palavras de Freud

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Um gênio do samba

Por Edmilson Siqueira 

"Germano Mathias não é só cantor. É intérprete, é homem 'show', é engraçado, é vivo e inteligente. Lá fora - ele que não tem inibições- começaria a bater cadência de samba em caixa de fósforos que ele teria de levar daqui do Brasil; depois tocaria ritmo de samba em latas de graxa que foi como ele começou; em seguida, numa boite, ele desceria do palco ou apenas se aproximaria dos fregueses e começaria a marcar ritmo em cima da mesa, nos copos, nos pratos, com talheres, de todas as formas e maneiras." 


Esse trecho acima faz parte da contracapa do LP "Ginga no Asfalto", da gravadora Odeon, e é assinado por Henrique Lobo.  


Germano Mathias é, talvez, o mais improvável dos sambistas brasileiros. Nascido no bairro do Pari, em São Paulo, filho de descendentes de portugueses, sua vocação para o ritmo e para o samba foi descoberta aos 14 anos, quando foi convidado para tocar frigideira na bateria da escola de samba Rosas de Ouro. 


Mas não era só o ritmo nas mãos que ele tinha como dom. Sabia cantar e, quando foi revelado num programa de caça-talentos da Rádio Tupi de São Paulo, em 1955 (ficou em primeiro lugar entre 300 candidatos, cantando um samba seu feito em parceria com Firmo Jordão, já encantava com seu cantar sincopado, com divisões próprias de grandes intérpretes. 

E continua fazendo shows por aí, aos 88 anos, ele que é de junho de 1934. Ele gravou 14 LPs, mais alguns "singles" em 78 rpm ou mesmo em "compacto simples". Fez alguns sucessos e também foi relegada ao ostracismo quando o samba foi meio esquecido no Brasil. Mas voltou. 


O disco dele que tenho é uma cópia fiel do LP lançado em 1962. E é uma delícia. Sua interpretação parece até ser didática, mas é envolvente pela alegria, pela firmeza e pelas próprias letras dos sambas, que nada ficam a dever aos melhores sambas cariocas. Mas é na divisão sincopada, na qual Miltinho era mestre, que Germano Mathias deita e rola. Ele sai da melodia com a mesma facilidade que entra, sem perder o ritmo. Coisa de gênio. 


Das 12 músicas que compõem o disco, destaque para "Maria Espingardina" (Jorge Costa e José da Glória), "O presidente jurou" (Sereno e Germano Mathias) - não se trata de crítica política, o presidente no caso é da escola de samba, que recebe um esculacho porque não cumpriu as juras e a escola vai sair mal na avenida - "Desigualdade" (Germano Mathias) e "Baile do Risca Faca (Jorge Costa e Durum-Dum-Dum) outro sucesso, um samba de gafieira ao qual Germano enriqueceu com sua ótima interpretação. 


O LP e o CD ainda estão à venda por aí, nos bons sites do ramo e o disco inteiro pode ser ouvido no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=uJRJ5K0QbI4 . 

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Ao Arrigo Barnabé

 Por Ronaldo Faria

Loucura no invólucro de que pouca coisa falta. Mais uma lata só. Que dó...

Metrópole que pode ser a acrópole do fim de tudo. Paulistana sanha assanhada do drama. No meio de tudo, no todo, a briga entre o desejo e o ensejo do passado de muito atrás. Rojões ao léu, aos ouvidos do menestrel. Um quarto de hotel desnudo a granel. O amor entre o louco e Jezebel. O mistério se faz misterioso no fel. No mundo paulistano, melhor cruzar os meandros da metrópole e da acrópole do que ser Gardel.

Sejamos parcimoniosos com os corpos em ossos. Possamos possuir o que a noite nos dá: loucuras, clamídias, canduras. Um tanto de futuro e outro tanto de volátil urro. Brincadeiras e asneiras ao nada. Como diria o poeta, orgasmo total. Como a bola certa de um qualquer sobre o Nadal. Uma rena a fugir quando Papai Noel grita que está na hora do mais próximo Natal.

Nos façamos madrugadores de dores e odores. Deixem-nos pagar a conta ao garçom que sorri sem dentes como se não tivesse antecedentes de quem antes jogou a bandeja na cara de quem não a deseja ou veja. Ao prato, sabor de veneno. Cantilenas jogadas ao vento e ao ventre. Como o poeta embriagado e largado no imbróglio entre a cena de Sampa e o passado de samba, fez-se o derradeiro drama.

sábado, 5 de novembro de 2022

Bossanoveando

 Por Ronaldo Faria

Bossa Nova a tocar no piano virtual. Entre a realidade e o desejo, um sinal. Uma praia distante, sangrada de mares imaginários e verdes matas madrigais e infinitas, fatais. Morros diversos que perfazem o sol que cai detrás deles em poemas e versos, todos solares e prestos. E tem a morena a andar pela areia quente cheia de pedaços de suores e cheiros dos amantes do fim do dia. Lá longe, defronte entre o nada e a mentira, tem uma tira de tragédia antecipada, nuvem dissipada, carreira cheirada pelo louco que dorme solitário e derradeiro.

No mais, um entardecer obscuro e soturno, um cálido desaguar de olhares às coxas das moças, um esquálido propor de amor e dor. Casais a se acasalarem nos corpos frágeis e ágeis que correm pela calçada da zona que virou o sul. E se azucrinou de porres voláteis e perdidos entre dedos e medos que percorrem lugares escondidos entre biquínis mínimos e mimos que o bronze do sol derrete em dias que dão no que der. No beijo entre línguas, o cabelo negro do rosto branco da mulher. A cena, pano final do ato derradeiro qualquer.

No alto do morro, de dois irmãos, uma bananeira se joga ao céu de pedra e perdão. Uma luz aqui e outra lá se acende à chegada do escuro que esconde as ondas abaixo para o fim do mar. No tudo, em turbilhão e canção, fica o barulho do que quebra quieto e se deita entre as rochas e o oceano cadente e profano. Ao fim do horizonte, o desmonte. No quadro que se enquadra aos olhos, a volta de barcos e navegantes cheios de marejar e vagas espumas que esbranquiçam a pintura que se emoldura à gasta rotunda que volteia brilhos e trilhos nunca alcançados.

No mar, no fundo mais fundo e profundo que se faz ou fará, o desejo do amor se desfaz fugaz. Meras palavras ao vento mormo que bate a noroeste. O começo de uma epidemia que vem sem peste. Que se veste de peles entrecortas de desejos e recortadas de delírios que febre nenhuma faz secar. Como féretro regado a berimbau e segredos, degredos, ensejos e seixos. Ladeiras serpenteadas de paralelepípedos, subidas e descidas. Canções acrescidas de formicidas e sinais que nem o maior dos arqueólogos saberá decifrar à desmedida sina...
 
(Ao som da Cia. Estadual de Jazz)


sexta-feira, 4 de novembro de 2022

A guitarra jazzística de Wes Montgomery

Por Edmilson Siqueira 

Ele começou a tocar aos 20 anos e morreu aos 45. Mas sua obra foi tão importante que ele é comparado, em termos de influência do seu estilo de tocar guitarra, a Pat Metheny e George Benson, dois gigantes do jazz. Trata-se de Wes Montgomery, nascido em 1926 em Indianápolis.  


Wes tocava guitarra de uma maneira pouco ortodoxa, já que usava o polegar em vez da palheta, bem como um modo único de tocar em oitavas ou em block chords, o que tornava a sua guitarra mais expressiva e melodiosa. Sua extrema liberdade e fluidez no instrumento chamaram, desde o início, a atenção de músicos como Cannonball Adderley, e em 1960 lhe valeriam o prêmio New Star da revista DownBeat. 


Tenho apenas um disco dele e, por sorte é uma coletânea da série Jazz Master, da EMI, lançado em 1997. Logo de cara, "Billie's Bounce (Parker), gravada em 1957, anuncia um jazz pegado e esperto, com um conjunto completo, de piano, bateria, contrabaixo, sax e, claro, a guitarra de Wes com sua agilidade natural. Infelizmente o disco não tem créditos dos músicos, todos ótimos, que fazem parte do conjunto.  


A segunda faixa traz "Leila", do próprio Montgomery, também de 1957, uma balada bem romântica onde a guitarra de Wes prefere o improviso, deixando o solo da melodia para os metais.  

"Stomping' At The Savoy, (Sampson, Webb, Goodmann e Razaf) serve também para Wes e seu grupo mostrarem toda agilidade e talento na decantação de um tema de jazz. Uma aula, com destaque para o piano e o vibrafone.

"Stranger in Paradise" (Robert Wright e George Forrest) de 1958, do musical "Kisnet", tem uma versão rápida do conjunto. A seguir vem outra de Montgomery, "Renie", também de 1958, onde piano e contrabaixo conversam na introdução, anunciando a guitarra suave de Wes. 


"Wes's Tune", também de Montgomery é a sexta faixa, com uma melodia que ficou famosa e foi regravada por muitos grupos de jazz.  


Já a sétima faixa traz um clássico, "Summertime", de dos irmãos Gershwin e Heyward. Sem mais delongas, Wes entra na melodia com sua guitarra, com piano, contrabaixo e bateria de acompanhamento, deixando todo o improviso inicial que a música sugere aos jazzistas para o piano. Mas volta depois par solar e encerrar em grande estilo. Um show a interpretação de todos, desse clássico que extrapolou o teatro - foi escrita para a ópera "Porgy And Bess" - e ganhou o mundo como uma das músicas mais gravadas de todos os tempos. 


"Montgomeryland Funk" é o nome da oitava faixa. A faixa mais alegre do disco, com introdução de metais para a guitarra de Wes ganhar corpo e passear num longo improviso.  


Outro clássico, "Bauble, Bangles & Beads", também de Robert Wright e George Forrest, aparece na nona e penúltima faixa. A lenta melodia parece ter sido feita à perfeição para a guitarra de Wes. Depois de seu solo, quem assume os trabalhos é o vibrafone num bonito arranjo, preparando a reentrada da guitarra em grande estilo. 


A última faixa é "Hymn For Carl" (H. Land), que segue esquemas anteriores, onde os metais e o piano se incumbem de apresentar a melodia inicialmente, para bem à frente, deixar a guitarra assumir o comando. Outro show do grupo. 

Trata-se de um disco muito bom para os amantes do jazz, pois, além do grande talento de Wes, ele se cercou de músicos extraordinários, realizando impecáveis gravações. O disco que tenho é importado, mas você pode encontrá-lo à venda em alguns sites da internet. E pode ser ouvido inteiro no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=ZiVSH_KmgfM&list=OLAK5uy_m2K5ofRbRWkBD8ZwQuSPuiEzKl5QY90v0 . 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...