sábado, 29 de abril de 2023

Angela Ro Ro

 Por Ronaldo Faria

 

Para onde ir? Entre perdas, prisões, perpétuos amores, paixões desgarradas, o frenesi que a nada dá de prazer. Talvez uma espera, uma rara quimera, tudo à vera. Inverossímil, milimétrico no desajuste que a vida dá, em devaneios, permeios, pernas à espera de outras pernas abertas, na plenitude e quietude que só a solidão dá. Dádivas e devaneios mil, raros momentos de quartos escondidos onde vale um documento em plástico roto e quase rasgado. No degredo do coração, um ser degredado nos olhos da mulher. No segredo da fala que se esvai, em vala qualquer, o incêndio que na madrugada se apaga de viver.

Como rir de si? Nos sofismas dos abismos que se formam aos pés, prévias de um dia a mais, mágico e místico, prosopopeia de luares perdidos numa beira de mar, escritos proscritos de tanto permear, sorriso perdido na preamar, sol a esquecer de voltar para com o outro lado do mundo prosear. O lugar? Aquele que vaticina o corpo desgarrado da mulher e menina que corre nos pés que pisam a areia branca que voa para se juntar ao limiar que existe entre a vida e o torpor. No tropel que ouço à distância, entranhas fogem do corpo para a noite em escândalos poder fingir parar. Daqui ainda é possível fugir para o despertar.

 II

-- Tira a camiseta e o sutiã. Deixa, porém, a tiara. Vamos nos travestir de corpos nus, daqueles que sentem saudade imensa do calor, das veias que se escorrem em sangue, dos medos que nos dominam e desafinam quando estão numa cama que rebrilha em luzes estroboscópicas e disléxicas. Sejamos seda e seduções, soluços e goles, danças e lábios, carícias e corações translúcidos e lúcidos de que as horas são poucas e ocas no acaso que ocaso faz. E mais uma e outras separações chegarão. Talvez nunca haja nada mesmo além do que o degredo. Por certo, até decerto, pode nem haver ou existir um porto de chegada, daqueles que juntam dois num só e jogam em garrafas ao mar tudo que foi negado pelo destino em desatino.

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Som de barzinho

 Por Ronaldo Faria


No bar um violão se espraia às vozes das mesas. Na letra, brinquedo de papel machê. Na janela, uma flor no sachê. Cheiros de madrugada tragada e ensimesmada. Num canto, o casal se acasala no quase nada que deveria ser uma sala. Não há solstício nem de inverno ou de verão. Talvez um inferno impregnado de tesão. Na cantoria vil, respirações, destratos e sermões. Nos pratos, salmões. No comer atrasado das emoções, o risco de virar salmonela.

No bar um violão vai a violar ouvidos e corações. Na música, dedos que correm as cordas. Acordados, inebriados, enlutados de tardias lembranças, os casais se engolem em lambuzadas lambidas e lambanças. Fora dali as cores de nuvens anuviadas diante do quadro se transformam em labirintos que bêbados com labirintite desmaiam. Entre potes e terras, uma flor antes morta se envermelha de todo. Dir-se-ia que ela sobreviveu para sair do lodo.

No bar um violão estremece o silêncio que dorme nas mãos e bocas entrelaçadas de ilusão. Nos acordes, odes limítrofes entre a saudade e a dor. Uma conta aqui, outra acolá, um passear de pernas e prosas nos caminhos que as mesas transformam em mar. Rebentações nos pés curvados das mesmas. Copos que desfalecem e se esvanecem em luz. No cansaço do relógio que não para, a imensa cisão entre o paraíso partido e sua derradeira cruz.

terça-feira, 25 de abril de 2023

Mangueira de pouquinho

 Por Ronaldo Faria


Mangueira, coisa minha e tardia. Vadia sem vadiagem enfim. Escola do morro e do asfalto, aquilo que é e será em si. Sou teu, o serei em ti.

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Metáfora e Rita Lee

 Por Ronaldo Faria

 


-- Como eu vim parar aqui? Serei eu um anjo, o demônio ou meu próprio veneno?

O homem se pergunta e assunta sobre um ser qualquer. Se pensa morto ou à morte de uma mulher. Ser simplório a comer sopa de colher. Ao que der e vier...

-- Como eu fui chegar aqui? Serei eu uma metamorfose, uma coisa fóbica, a ilusão?

O poeta se questiona entre ser humano ou linfoma. Se descrê no invólucro que há entre o desespero e o lucro. Oculto de ser si mesmo, ensimesmado se dá...

-- Como eu nunca mais durmo? Serei eu lobisomem que acorda a cada pesadelo que a falta de zelo faz surgir?

O esteta de si mesmo eterniza a inglória fórmula da felicidade no cantar febril. Um dia, quando não houver mais dia, o sono eterno há de sentenciar sua finda sina...

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Octávio Burnier ou Tavynho Bonfá

Por Ronaldo Faria


Restos de sons sugerem uma dança inf(v)ernal, mas ainda estamos no outono. Inverno ainda há de chegar. O inferno também. Qual virá primeiro? O derradeiro, será? Nesse tocar de singular incongruência que a ciência dos homônimos dá, que vivam o músico, o ator, o lume ou o violão e os versos de quem possa brilhar. Nas peças dos nomes, que se preguem o derrocar e o eterno criar.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Nos ares de Nelson Ayres

 Por Ronaldo Faria

 

A vida se esvai na urina de um banheiro de bar. No autoflagelo das noites que se madrugam enternecidas e entorpecidas, num tanto de saideira, outros tantos de saudade, mais um pouco de inverdade, maldade dos neurônios que se fazem e perfazem em simbióticas sinapses neuróticas. Sob a ótica do meio vazio e meio cheio, o recheio de piano a untar e juntar as bolhas do copo a borbulhar. No olhar da urna que guarda a vida, o vento do ventilador que ventila a dor. O quadro dependurado, azulejo azulejado e impresso, a pressa do impreciso até quando. Afinal, tudo na vida é mero desmando. Talvez um xote, um baião ou um xaxado. Achado, quiçá. Hoje nesse mundo, quisera estar na Ilha de Itamaracá. A ver Lia, esteja ela onde estará. E nos acordes de um mundo de cifras e notas denotar que existe e sempre existirá um novo lugar, um lagar, um largar. Na largura da métrica da semínima ou da coisa mínima, a semiótica que há muito a ótica esqueceu. No lavradio de uma serra que escapou da sanha da serra eletrificada, a espera da esporádica e errática poesia que surge do nada. Que faz de um aprendiz de poeta que pouco leu e sabe apenas um misto de alguma coisa um algo a se decifrar. De onde virá? Quem, na verdade, escreverá? De onde surgem palavras, métricas, rimas, rumos e falar? Como um engodo ambulante pode saber se expressar?

Mas a vida se esvai na urina de um banheiro de bar. Vaticina gotas e jatos no jorrar de lembranças, anchas e achadas sabe-se de onde lá. Liquefaz em cor de ouro o tesouro que cada um tem e traz. Transfixa o olhar inebriado da fila vencida, da porta que se abre para o universo de gotículas esparramadas no chão, histórias sem começo e fim, senão. Quem sabe um réquiem àquilo que termina, uma ode à esperança que germina, uma valsa para qualquer coisa que se acredita seja a próxima sina. Talvez novo amor, trocar de carícias e camas desfraldadas de fadas e fatos incertos e certos no limiar de do calor que só dois corpos entrelaçados sabem compor. E nova história será criada, nova lembrança será gerada, nova orgia escancarada. Para cada uma, a múltipla magia de acreditar que depois da noite vem o dia. Senão, a insensata crença de que o novo será novo de novo, como a galinha pensa a por o seu ovo. Mesmo que ele, choco, não gere a vida em colostro. Mas, de onde virão as ideias, as prosopopeias (seja lá o que elas queiram ser), as efemérides que dormem n’algum lugar e, de repente, surgem para se fazer par? Mistério etéreo e que naufraga no nosso mais íntimo e ínfimo mar, um dia, qualquer um desses que ainda teimamos percorrer e vivenciar, nos dê uma mera e simétrica resposta, nem que seja póstuma, só por dar ou, ao menos, tentar nos enganar.

sábado, 15 de abril de 2023

Pro Mautner em Jorge/José

Por Ronaldo Faria


Escada que faz dois cortes na busca de um cortês documento pra provar que nada há. Mesmo como carioca daquela gema que geme no asfalto de 50 graus do Rio de Janeiro e se faz ovo frito é difícil decifrar as cifras que vêm de um Jorge a ser Mautner ou mais num mal ter. Nas trevas que tentam turvar o violino do trovador há o sol que brilha como um brilhante sem cor.

Mas que coisa mais louca essa coisa de se mutilar sem querer só para rever algo que não há. No solstício de um novo chegar, o agregar de um gaguejar do mudo que nem sabe que existe linguajar, o vaticínio do equino que transborda de bolos de cocô a estrada de terra e pó. Certamente ter-se-á no terço sem contas, na oração da canção, a se ver um cavalo sem dó.

Mas que escada sem graça, dessas de alumínio retilíneo e cortante, a nos pegar desprevenidos em procuras e agruras. Logo ela, invenção do homem para ajudar o mesmo a subir na vida, nem que seja de forma difusa e contumaz. Daqui, com Jorge Mautner a cantar, o José vai ao fim de mais um fátuo dia, coberto de rimas e arrimos, a tentar voltar a falar com os animais.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Zequeando nas balas...

 Por Ronaldo Faria


Brejeira, a mulher se despe de rancheira veste e se joga na cama a sorrir com um desejo incomum, desses que o mundo torce para servir de semente e se espalhar em cada amor desgarrado, em cada espelhar frente à fronte que se une em línguas transversas a invadirem céus da boca e do mundo. À volta, ínguas que doem a cada movimento torpe que entorpece os amantes em prece para que nada acabe antes do fim previsto na parafernália que invade a genitália. No absurdo do surdo que ouve além dos sons, a sonífera amante voa entre colchas e lençóis, na perfídia a brincar de inseto que infesta o salão de festa para estragar as lembranças do amanhã.

Altaneira, a amante infante e arfante sobe e desce entre músculos e ósculos. Beija, boceja, se basta por ser alguém que subjuga a fera do outro, rompe minúsculas entranhas e se faz, entrevada, parte do tronco, cabeça e membros. Faz-se inteira, interagindo em cada sensação, na próxima ação, na procrastinação quando tudo for somente passado, passeio entre praias e paisagens, pesadelos e miragens. Deitado no arfar do beijo que o tédio faz se perder derradeiro e formal, o homem nada se parece. Apenas, solitário, faz um prece com um ser normal. No universo que se perfaz de verso, o bêbado canta o lirismo que apenas emite o surrado jogral.

(Pro Zeca Baleiro)


terça-feira, 11 de abril de 2023

Zecando num baleiro

 Por Ronaldo Faria


 

Metamorfose de borboleta a borboletear por aí, a ir e voltar, voar e revoar feito vento de soleira de janela, que para no vidro que tudo vê e nada deixa entrar. Feito trejeito da performance de bailarina que se despe de purpurina. Um pouco de angina malfadada e deformada em pruridos. Passeios e anseios de ter um corpo à cama e postergar por medos e ensejos o último e derradeiro momento isento de culpa e degredos. Desejos jogados na estrada que nunca volta e teme a beira que se esgueira na curva que mostra um infinito derrear. No fundo do coração saber-se-á que espaço não há. Não há lugar para retornar, roubar de beijos extraviados, revirar gavetas carcomidas pelos cupins que cheiram a jasmim. No mundo de universos paralelos os versos não têm início ou fim. Não se transmutam na Babilônia com odor de amônia e nem acordam de um sono perpetrado pela insônia. Simplesmente viajam em andrajos de alma como almanaques escritos para vender a ilusão que se perfaz acabrunhada como a voz esganiçada de qualquer cunhada acanhada. Nas vísceras que vicejam um dia desgarrarem do corpo, acalantos de prantos partidos e jogados a léu numa lenda esquecida nas páginas do livro nunca escrito, proscrito nas entranhas da estranha senhora a gemer e gritar. “Venha, vida! Venha me matar!” Do alto da igreja, o padre vocifera feito boi-fera a ferir o silêncio que procrastina a derradeira sina. E o lugar adormece e padece feito o menino que corre pelas ruas empoeiradas que um dia viram os passos da inocência trilhar...

(Pro Zeca Baleiro)

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Poder

 Por Ronaldo Faria


Poder escrever, se reescrever, descrever nova esperança, crível anca, soluções e ilusões em camadas de porções e dialética. Mais dias a ultimar um interregno de mar, um discreto e incerto incesto, um indigesto sabor de fica pra depois, num após que o apocalipse já pressupôs cálido e calado. Contudo, rever o oculto é poder sintetizar pecados e afagos, pródigos olhares, alhures solitários. Coisa de fastio e fábulas, verborragia e azia, anchos tormentos entremeados em pensamentos e prazeres. Tudo como a carcomida emoção que voa da canção para soar em sentimento... No coração o lamento se contorciona para não morrer.

Em homenagem ao disco “Se é Pecado Sambar”, de Mariana de Moraes, que agora em abril completa 23 anos de gravado.

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Ao poeta do amor

 Por Ronaldo Faria


Vinicius de Moraes, onde moras hoje?  No São João Batista? Na batuta daquele que frequenta a antiga Montenegro, que virou teu nome? Será que esse povo sabe o que era o Veloso? Será que o Rio de Janeiro ainda sabe o que foi, é ou será? Sabe-se lá... Saber-se-á. Na verdade de mentira o tempo e os tempos cobrem de exéquias e qualquer coisa aquilo que foi. O que foi, sabe-se lá será. Certamente não. A instantaneidade não permite lembrar, reviver, amar, chorar, sofrer... O tempo hoje pede uma velocidade que as teclas de uma máquina de escrever não permitem mais. Rascunhos, branquinhos, rasgar laudas e ideias não cabem mais. O lixo hoje é virtual, a lixeira se descarta num teclar. Bons tempos de um espaço de metal cheio de papel a esperar voltar a ser o que se desfaz...

sábado, 1 de abril de 2023

A Tropicália safada

 Por Ronaldo Faria


Na Tropicália o menino ouvia antes e cantava depois músicas para agregados de uma fazenda perdida no Nordeste aonde apenas Luiz Gonzaga (o grande e eterno Lua) chegava devagar. Sem luz, sem energia, ao cheiro de querosene, sem sinergia com o mundo além da vida de gado aboiado, queimadas de pasto, cruzes nas estradas de terra para os anjos, casas de farinha, rinhas de galos livres, carneiros retalhados vivos em gamelas, abelhas africanas a voar, um luar e cheiro de bosta que inebria o lugar. Milho debulhado na mão, carro de boi a seguir para a feira mais próxima, rios cheios e vazios, jegues que transportam vida e morte. Saudades de madrinhas e padrinhos, capucos e sabugos de milho a ganhar nomes, amaldiçoados raios e trovões a cobrirem espelhos e talheres de prata, cavalgadas e quedas que perfazem o que hoje há.

Na Tropicália, o começo da paixão pela música. O acústico ouvir do novo num tempo obscuro e trágico de baionetas e sonetos proibidos e jogados à vida em porões e prisões. A certeza de que a vida se transmuta em orações descabidas, madrugadas tragadas em teclas de uma máquina de escrever, bares na zona sul e subúrbio, medos e métricas que farão o novo homem, o vernáculo de escrever sem quase nada ler, os santos e orixás que surgem e dormem à espera de outra esfera. Místico sei lá do quê que seguirá por décadas na busca, como diz a música, do mistério do planeta. Proxeneta da própria existência ou o apocalipse do pouco tempo na Terra?  Plantio plenipotenciário de algo ou algoz de um nada que nada no oceano seco que transborda num copo a mais que verte de tempos em tempos para provar que tempo não há? 

Possamos, pois, nos tropicalizar para sobrevivermos às janelas do alto e o sangue sobre o chão...

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...