quinta-feira, 12 de setembro de 2024

A pintura da beleza da rua

 Por Ronaldo Faria


Cruz no credo. Credo na cruz. Josualdo, desses que acredita e crê piamente que a vida irá um dia para o além, acabava de rezar o terço pela sexagésima vez, quando entra Pafúncia. Apesar do nome, desses que deveria virar denúncia criminal contra o pai e o cartório, era linda. Dessas que o mais incapaz pintor faria a Mona Lisa virar uma mina lisa na esquina sem ninguém reparar. Com ela a entrar sob o pórtico de madeira, a pomba que teimava em cagar na escada se assusta. “De onde terá vindo tal obra de arte desse que dizem ser o Criador?”
Josualdo, crente convicto, invicto nas tramas do amor, que nunca tinha tocado um lábio sequer, no passado quase um seminarista, não fosse semianalfabeto, parou aquilo que fazia. Achou que a mãe de Jesus, mulher de José e fecundada por uma pomba igual a que cagava, estava a entrar. Só de maldade, um raio de luz invadiu pelo vitral mais limpo o lugar. E bateu direto no rosto da mulher. “Meu bom Senhor, o amor será isso? Desejo, criatura e flor? Flor a nascer no louvor?” Simplório, temeu enfartar sem sequer sentir alguma dor.
À medida que Pafúncia andava sobre o mármore rosa encerado que a igreja mostrava aos pobres de espírito, Josualdo suava em cântaros e cantava loas de louvor. Mas via, no meio de sua calça, algo crescer e endurecer em clamor. “Senhor, aqui não! Tenha dó de quem sempre em ti se dedicou!” Mas a mulher, que nenhum homem com seu hímen deixaria de sonhar, se criava e surgia mais forte que o medo da morte no inferno chegar. Sem ágio de mercado, ela era o naufrágio de tantos anos perdidos. Era o lumiar e o vazio juntos e untados.
Enlouquecido, sem saber o que acontecia consigo e seu corpo, até então oco, Josualdo correu para a rua. Desnorteado, sem norte ou sul, correu para longe da egrégia igreja. Queria apenas ter respostas que a hóstias já não lhe davam. E tanto mais correu e caiu, levantou, correu. Queria ficar o mais longe possível do pecado. Era isso. Aquela mulher de seios fartos e coxas que dançavam ao vento fátuo era o demônio a lhe cobrar crença. Exausto da vida, no cadafalso que todos nós um dia subimos, não vê que um ônibus chega rápido. Mal tem tempo de dar o último suspiro. Na igreja, Pafúncia recebe a ligação de mais um cliente.

(A Anavitória)

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