quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Distanciamento e quatro finais

Por Ronaldo Faria


 
A arcada dói. E bate em pontadas que parecem querer rasgar a cabeça. Sob os Arcos da Lapa, arqueado pelo tempo, Josué espera as horas passarem para ir para casa. Segurança de uma boate e bar, morador de São Gonçalo, ele percorre 72 quilômetros todos os dias para e ir e voltar e descobrir que entre a distância há ânsia de vida e consonância com mundos apócrifos e traçados na métrica da vida costumeira de se virar.
No bar/boate toca Timeless, de Sérgio Mendes. O som brasileiro/norte-americano faz a cabeça de gringos e descolados do Rio que só querem beber, amar, viver os trópicos que dólares e benesses dão. Um calor noturno e madrigal veste de suor os copos de chope e as camisas de algodão dos homens. A pouca brisa que perpassa o lugar ainda traz um pouco de cheiro do mar. A cidade, maravilhosa, se traveste de claro luar.
Mas, para Josué, o olhar não é para as pernas de moças, prostitutas ou travestis, devoradas por cada mesa de conquistadores baratos ou não. Está longe. Em algum bairro a 36 quilômetros dali. Está nos braços apaixonados de Valéria, melhor que a xará da Globeleza. Está nos seus lábios, seus afagos, no doce balbuciar que entrega ao mundo quando se juntam na cama depois de um churrasquinho no trailer da esquina.
Ao seu redor, em passos de horas para cada segundo traçado, a vida tem dó de girar em torno de si numa rotação milenar. Nos rostos e corpos que se encontram, se falam, se despedem ou se despem, gostos de drinques e batatas fritas a óleos quase queimados se transmutam em selfies, solicitudes ou servidões de depois. Para alguns terá valido passar o cartão de débito a um crédito de alegria. A outros restará a solidão vazia.
Nova pontada que o faz parar até de pensar. “Por que essa dor?” A pergunta fica sem resposta posta. O jeito é forçar os ossos da face, passar a língua entre os espaços que um dia tiveram dentes e rezar. Algum santo ou orixá dele irá se apiedar. Um garçom o chama para resolver a questão com um cliente que não quer pagar a conta. É hora de esquecer dor e expor os músculos conquistados com muito ferro e esteroides.
·         Final um: Josué para na frente do “caloteiro” e pede, gentilmente, que ele pague direitinho e tudo ficará bem. Todo mundo sairá de lá feliz e cheio de amor para dar e receber. O rapaz, já calibrado e a mil, se nega e o manda para a puta que pariu. Josué lembra da sua mãe – Dolores – senhora que o criou e a mais seis filhos sem marido do lado e aí não aguenta outra pontada. Dá dois diretos na cara do camarada e outro na boca do estômago, para não perder a referência da face. Com sangue exangue, o rapaz enfim saca a carteira e deixa cada centavo arrematado. E ainda dá gorjeta.
·         Final dois: Josué para na frente do “caloteiro” e pede, gentilmente, que ele pague direitinho e tudo ficará bem. Todo mundo sairá de lá feliz e cheio de amor para dar e receber. O rapaz, já calibrado e a mil, se nega e o manda para a puta que pariu. Josué pensa em descontar no valentão todas as horas gastas de busão e sem os olhos de Valéria. Mas segura a onda, segura o caloteiro numa gravata e pede para o garçom ligar para a 5ª DP. Não dá dez minutos e os meganhas prendem o rapaz que irá dormir no xadrez e ser enquadrado no total rigor da lei vigente e ciente.
·         Final três: Josué para na frente do “caloteiro” e pede, gentilmente, que ele pague direitinho e tudo ficará bem. Todo mundo sairá de lá feliz e cheio de amor para dar e receber. O rapaz, já calibrado e a mil, se nega e o manda para a puta que pariu. Josué pensa em reagir e deixar o valentão com a mesma dor que o acomete no maxilar, mas não tem tempo, O dito cujo estava armado com uma pistola 7.65 com o número de registro raspado. Não dá sequer tempo de reação: são cinco tiros no peito de Josué. Lavado de sangue e da cerveja que caiu junto com a mesa onde ainda tentou se apoiar, ele tomba morto. O caloteiro, porém, é linchado pelos frequentadores do lugar e outros tantos que chegaram para bater e matar.
·         Final quatro: o garçom faz um sinal para Josué de que não é mais necessário o seu préstimo de boxeador e faixa roxa de MMA. O rapaz, ao vê-lo de longe ajeitando a camiseta nos bíceps, decide que era melhor pagar aquilo que consumiu, comeu e bebeu. O bar e boate começa a fechar. Josué ajuda a descer a porta de ferro e se dirige ao ponto de ônibus. Daqui a algumas horas irá abrir o portão da casinha de quatro cômodos e se acomodar na cama ao lado da amada. Se ela acordar, de repente rola trepada. Se não, um beijo gostoso misturado de café logo de manhã já estará de bom tamanho. No ponto do BRT um fanho tenta cantar Mas Que Nada, mas trava no “sai da minha frente que eu quero passar”. Josué ri e pela primeira vez a cabeça parece não doer e latejar. Os últimos casais que conseguiram se acasalar seguem entre afagos e tragos para outro renascer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Na viagem

Por Ronaldo Faria Viajante de suas loucuras diuturnas, quase equidistante entre a vida e a morte, Januário persegue qualquer polis que vire ...