segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Ouro puro

Por Edmilson Siqueira 

Sábado passado, 6 de agosto, fez 16 anos que Moacir Santos nos deixou. Tinha 86 anos. Sua obra foi pouco conhecida no Brasil, fez mais sucesso nos EUA, para onde se mudou em 1967, para Los Angeles, pois fora convidado para a estreia mundial do filme "Amor no Pacífico", do qual havia sido compositor da trilha sonora. Estabeleceu moradia fixa na região de Pasadena, na Califórnia, onde viveu compondo trilhas para o cinema e ministrando aulas de música.

 

Um CD duplo, gravado em fevereiro e maço de 2001, com uma excelente produção, um encarte perfeito e um recheio de dar água na boca resgata parte da sua obra, que recebeu o título mais que perfeito de "Ouro Negro".  


Moacir, pra quem não sabe, é o maestro que ficou eternizado no Samba da Bênção, de Vinicius e Baden, naquela passagem que o Poetinha fala “A bênção maestro Moacir Santos que não és um só, és tantos, mas tantos, tantos como o meu Brasil de todos os santos, inclusive o meu São Sebastião”. 

É quase certo que a maioria dos brasileiros, mesmo os que gostam da boa MPB, só conheçam o grande maestro pela poesia do Vinicius ou pela música "Nanã", que o próprio Moacir chamou de "Coisa nº 5", ele que tinha a mania de chamar quase todas suas composições de “Coisa”.  


Os dois CDs dão uma ótima amostra do que é a música de Moacir. Tem de tudo, o que prova que não foi à toa que Vinicius disse que “não és um só, és tantos”. Mas, tão importante quanto a qualidade da música (são 28 temas) foi o time reunido para tocá-la e cantá-la. Gilberto Gil, Milton Nascimento, Joyce, João Bosco, Mariza Adnet, Ed Motta e Djavan, isso para citar apenas os que emprestaram a voz às músicas de Moacir. Segura aí o time de instrumentistas: João Donato, Mário Adnet, Zé Nogueira, Armando Marçal, Nailor Proveta, Vitor Santos, Cristóvão Bastos, Bororó e vários outros cujos talentos são mais que reconhecidos. Detalhe: Mário Adnet e Zé Nogueira refizeram as partituras da série Coisas a partir de gravações antigas, pois as originais se extraviaram quando o selo Forma foi vendido para a Polygram – coisas do Brasil.  


Para um artista que, “aos 14 anos nem sabia ao certo sua idade e nem a grafia do seu nome”, vejam só que Ruy Castro diz dele no encarte do CD: “Tom Jobim dizia que, no Brasil, é proibido aborígine sair da taba. Moacir Santos foi um dos que saíram e o Brasil fez desabar sobre ele um manto de silêncio. Pois chega de silêncio. Nanã sabe das coisas e diz que chegou a hora de o Brasil saber de Moacir, reaprender Moacir, merecer Moacir”.  


Dos 28 temas do CD, dezenove deles podem ser vistos no YouTube, num memorável DVD, produzido por Mário Adnet e gravado no Sesc Pinheiros (https://www.youtube.com/watch?v=1z_rVH_e2bc). O CD completo pode ser ouvido também no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=eOtU13KvgY8 e está à venda nos bons sites do ramo. 

sábado, 6 de agosto de 2022

Vinicius e Caymmi juntos num palco

Por Edmilson Siqueira

Foi o velho e saudoso amigo J. Toledo, e eu me lembro que era um ensolarado domingo de julho, quem me deu duas preciosidades que ele retirou de seu baú de LPs: "Vinicius/Caymmi no Zum Zum com o Quarteto em Cy e o conjunto de Oscar de Castro Neves" e "A Música de Edu Lobo por Edu Lobo e Tamba Trio", ambos da gravadora Elenco de Aloísio de Oliveira. Do segundo deverei me ocupar outro dia. Hoje, vou me dedicar a Vinicius e Caymmi.  


O LP que Jotinha me deu, lá se vão, provavelmente, mais de duas décadas, estava meio maltratado pelo manuseio em festas regadas a muito uísque e cerveja, nas velhas vitrolas dos anos 60 do século passado, mas ainda dava para ouvir e bem. É um show gravado em estúdio, como explica Aloísio na contracapa, show esse que “teve tal repercussão nos nossos meios artísticos que não podemos arriscar uma gravação ao vivo”.  


Vinicius conduz, com seu talento de embaixador, a festa no palco da boate Zum Zum no ano da graça da 1967. Começa lendo uma carta que ele escreveu, em 1964, para Tom Jobim, no dia 7 de setembro: “Você já passou, Tonzinho, uma noite de 7 de setembro, na França, num quarto de hotel sem qualquer perspectiva?” lamenta o poeta, acrescentando que, na Embaixada brasileira em Paris, estava ocorrendo a maior festa, com Baden Powell ao violão.  

Mas, amarguras de um "exílio" dourado à parte, o que vale muito mais é a música: "Bom Dia Amigo", "Berimbau", "Tem Dó de Mim", "Broto Maroto", "Minha Namorada", "Saudades da Bahia" e "...Das Rosas", (as 5 primeiras de Vinícius com Baden ou Carlos Lyra e as duas últimas de Caymmi) compõem o tal do lado A do elepê. No lado B há um pouco mais de Caymmi com "História de Pescadores", "Dia da Criação" (poema de Vinicius), "Aruanda" (Lyra e Vandré), "Adalgiza" e "Formosa" de Baden e Vinicius) e um grand finale com todos cantando. 


A produção do disco, do próprio Aloysio de Oliveira, é impecável e foi feita de modo que o show ficasse registrado num disco de estúdio tal qual foi apresentado na Zum Zum. Vinicius, à época, estava já definitivamente engajado na MPB, deixando de vez a carreira diplomática. Na década seguinte encontraria Toquinho e, com ele, uma nova safra de grandes sucessos, depois das parcerias com Tom, Baden e Lyra.  


Caymmi já era um grande nome, já ostentava cabelos brancos e o show foi uma espécie de apresentação da fina música do baiano a um público mais jovem, com o aval de Vinicius, claro. A sequência formada pela obra-prima "História de Pescadores" e pela poesia "Dia da Criação" (aquela famosa do “Porque hoje é sábado”) é um desses momentos antológicos da arte que deveriam ser tombados como patrimônio da humanidade.   


O disco todo pode ser ouvido na página do Instituto Memória Musical Brasileira: https://immub.org/album/vinicius-e-caymmi-no-zum-zum  e também no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=mg52HWjPrUE .  E ainda pode ser comprado por aí, nos bons sites do ramo. 

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Ao Asdrúbal Trouxe o Trombone musical

 Por Ronaldo Faria

A madrugar antes da hora, no tempo outrora onde isso era possível, dois corpos se copulam em sofreguidão. Acordam quando não há Sol e nem luz sequer se pronuncia, talvez um outdoor que brilha aos carros que passam e perpassam emoções e solidões. Como dois mundos que se juntam sabe-se lá porquê. Quem sabe apenas no quadro alternativo tem o homem e a mulher. Coisa entre o nada ser ou coisa qualquer do verbo existirá. Como uma cadela no primeiro cio que se baba e se vomita e se come por inteiro.

Quem sabe o homem a vegetar na busca de saber-se não derrotado depois tantas lutas para não destruir o espelho de antes, vai o poeta e proxeneta de si mesmo. Lá no fim do túnel certamente existirá um trem que para qualquer lugar levará. No meio de tudo, entre a realidade e o findar, um pedaço de realidade e torpor. Em louvor há de correr mil léguas para uma linha final alcançar. E se esta não houver, foda-se aquilo que vier. Entre seguir e o ser existirá um meio termo, a esmo, que far-se-á brincadeira na brejeira receita de se sobreviver.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Azeviche

Por Edmilson Siqueira 

Azeviche? Um trio de violão, percussão e contrabaixo? Pois é, há 15 anos eu recebi um disco desse grupo, formado na noite de Campinas. Não era mais o primeiro com esse nome, havia passado por algumas formações anteriores, radicais até, e parece que havia encontrado ali, no talento dos três instrumentistas, um campo fértil e de uma beleza ímpar pela frente.  


Quem frequentava a saudosa Estação Santa Fé já conhecia a turminha: o violonista Bruno Mangueira – bacharel e mestre em música pela Unicamp –, o contrabaixista Marcos Souza – autodidata e com uma longa carreira ao lado de grandes músicos – e o percussionista Magrão – também autodidata e que já andou pelo mundo com seu talento. Eles viviam tocando por lá, tanto na formação do Azeviche como compondo outras bandas, já que a casa, desde sua inauguração, mantinha música ao vivo da melhor qualidade. Aliás, muitos grupos foram formados justamente ali, para tocar na Estação e depois se aventuraram pela noite afora.  


A junção desses três resultou num som intimista e sem medo de enveredar por temas mais populares aos quais empresta o ótimo sabor de belos arranjos, renovando o prazer de se ouvir temas como "Quem Te Viu, Quem Te Vê" (Chico Buarque), ou "A Ilha de Lia, no Barco de Rosa" (Edu Lobo/Chico Buarque) ou ainda o bolerão "Contigo en la Distancia" (Cesar Pontillo de la Luz). Até o difícil Lupicínio Rodrigues de "Cadeira Vazia" (imortalizada na voz de Elis Regina) ganha espaço na seção de clássicos, bem como a eterna "As Rosa Não Falam" (Cartola). Em todas elas, e também nas outras sete faixas do CD, o que se ouve é um som límpido, suave e criativo. 

E, ciente do talento, o grupo ousou colocar ao lado de composições consagradas de grandes mestres da MPB, nada menos que quatro trabalhos próprios: três de Bruno - "Relax Song", "Porto Alegre" e "Ano Novo" – e uma de Magrão – "Rumba Viva". O resultado final não muda, as músicas são boas e mostravam que o Azeviche estava no caminho certo.  


Era, na ocasião, mais um grupo que confirmava a enorme qualidade dos músicos que viviam (e vivem) em Campinas e eternizam seu trabalho em discos que podem ser tocados em qualquer rádio que prefira acariciar os ouvidos dos ouvintes. Ele esteve na ativa de 2006 a 2008 e esse foi o único disco gravado pelo trio, o que é uma pena.  


Acho que até cabe destacar que este e outros ótimos trabalhos de artistas campineiros que circulam desde o início deste século, tiveram a essencial ajuda de um tal de Fundo de Investimentos Culturais de Campinas. Sim, um fundo da Prefeitura, do tempo em que a cultura musical da cidade ainda tinha algum valor para os dirigentes municipais.  


O CD está à venda no Mercado Livre e também disponível nas plataformas digitais. 

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Astor Piazzolla, sempre

 Por Ronaldo Faria

Sonhos premidos de versos e reversos, a se entregarem num solilóquio soturno que há entre a morte e a sorte embriagada e vadia. Sortilégio do adeus a um avô que se perdeu nas águas de um rio que enche e se vê seco como o copo que desce às gargantas do dia. No meio de tudo, sertão de pedras que viram seixos ao andor de correntes desiguais.

Cadafalsos que se abrem abruptos no limite entre a sanidade a loucura, como um desertor do crer em sua agrura. À frente, o deserto se descortina em casais que bailam nas valsas atonais do rever. Passos que se perpassam entre nuances de olhares e calcinados trajetos que não se dão aos mares. No bandoneon, bando de notas a devorarem a dor.

-- Vai Astor, como astro que se perpetua numa constelação toda negra e nua. Onde notas e acordes acordam para o sol que se entrega aos lençóis brancos da lua para amar o outro lado da terral o outro lado da lua. Nesse caminho de rodar à eternidade, que fiquem tontos o passado, o amor e a saudade. E caiam moribundos numa esquina qualquer, ao longe, onde estará a casa que sobrevive à realidade. No meio de tudo valerá qualquer verdade.

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Person and Carter

Por Edmilson Siqueira 


Acho que foi na antiga loja do Osny, a Hully Gully Discos, que ficava ali na Dr. Quirino, que eu encontrei o CD duplo de Houston Person e Ron Carter, juntos, tocando o que gostam e do jeito que gostam em duas sessões, uma em fevereiro de 1989 e outra em janeiro de 1990, ambas no Van Gelder Recording Studio, em New Jersey. Foram lançados, à época, separados, mas alguém teve a feliz ideia de juntá-los num único estojo.  

O primeiro CD se chama “Something in Common”, o segundo “Now´s the Time” e a caixinha com os dois levou o nome de “The Complete Muse Sessions”, talvez fazendo um trocadilho sonoro entre musa e música (muse/music). Mas, com ou sem trocadilho, tudo se encaixaria: é música pura e das mais inspiradas. Tão inspirada que o crítico Joel Dorn escreveu sobre o trabalho: “Não é música cerebral, é um sentimento musical”.  

Ele começa com “Blue Seven” (Rollins), e é só uma demonstração, de mais de seis minutos, do incrível conjunto formado pelos dois instrumentos ao longo dos dois CDs. E a marca registrada que se seguirá é explicitada: haverá solos em todas as músicas, haverá acompanhamentos ora de um ora de outro, haverá, principalmente, liberdade de criação e rigoroso entendimento. E tudo se traduzirá numa das mais perfeitas harmonias que dois músicos podem conseguir num estúdio.


“I Thought About You” (Heusen/Mercier) prossegue o caminho aberto na primeira música, preparando um swing que virá em seguida com a clássica “Mack The Knife” (Blitzstein/Weill/Brecht) música feita para teatro, mas que acabou ganhando o mundo pela singeleza da linha melódica e possibilidades jazzísticas. “Joy Springs” (Brown), “Good Morning Heartache” (Fisher/Higgenbotham/Drake) imortalizada na voz de Billie Holiday, “Anthropology” (dos gênios Charlie Parker e Dizzie Gillespie), “Once In A While” (Edward/Green) e “Blues For Two”, de autoria dos dois, fecham o primeiro CD. 


Nessa altura do campeonato, se o seu copo de uísque está vazio, pega mais gelo, bota outra dose e se prepara para o que virá: mais uns 50 minutos daquele prazer que só a música pode proporcionar.  


“Bemsha Swing” (Monk/Best) e “Spring Can Really Hang You Up The Most” (Landesman/Wolf) abrem o segundo disco e o clima não perde nada daquela atmosfera mágica que se formou desde o início. “Einbahnstrasse” (Ron Carter) prepara o ambiente para a entrada de “Memories Of You” (Blake/Razaf) que, por sua vez, deixa o tempo perfeito para uma obra prima brasileira que, no contrabaixo e no sax dos dois, nos traz novos prazeres: “Quiet Nights”, de mister Antonio Carlos Jobim é tocada por deliciosos seis minutos e quarenta e cinco segundos e quando termina é duro resistir à tentação de apertar o botão do replay. “If You Could See Me Now” (Damerson/Sigman), “Now Is The Time” (Parker), “Since I Fell For You” (Johnson) e “Little Waltz” (Ron Carter) completam essa aula de sensibilidade e sentimento.  


O CD duplo foi lançado em 1997 e o que tenho é importado. Não encontrei produção brasileira, mas o importado ainda está à venda por aí. Se você gosta de jazz, mesmo que seja só um pouco e deparar com ele pela frente, não hesite: serão quase duas horas de puro prazer. 

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Ao Tito Madi

 Por Ronaldo Faria

Anos 60 de uma proficiência do garoto a crescer desde o fim dos 50. E Tito Madi, menestrel, ficou. Entre velas acesas nos bares da Lagoa ou do Méier, ser que se esvazia e se esvai feito as marés de um eterno desaguar. A brincar de tempos entre tempos atemporais que vivem num arranhar de agulha no vinil a rodar.

Talvez uma orquestra de canhotos e destros a dedilhar um poema que se devora mundo afora a se recriar. Desejo efêmero de efemérides no fundo da alma ver, crer e fervilhar. Quem sabe um piano largado ao largo, um apócrifo poeta a transgredir a eternidade da saudade, a incerteza da mentira que se perpetuou.

Na entrega do tempo, desfeito lamento que não se vê, um interregno entre o nascer e morrer. Quem sabe uma mesa encravada entre a lua que surge e a saudade que urge. Um pedaço de alvorecer a se atirar no abismo findo do ser, a tentar fugir da morte que se afoga no mundo que parece não ver que tudo é só fingir e descrer.

sábado, 30 de julho de 2022

Entre Arnaldo Antunes e Freud

 Por Ronaldo Faria


Haja chapéu para tão pouco véu ou fel. Quem sabe um istmo inexistente entre o continente e o mar de Trafalgar. Um espaço escasso de tempos atrás. Um desejo que, ensejo, seja real. Metade ser humano e outro pouco animal. Afinal, somos isso. E Freud já o resolveu em escritos soltos e bonanças. E Arnaldo Antunes o cantou. No pouco afoito e imberbe, salve-se a verve. Ainda bem que os meus poetas do além etéreo me deixam mijar.


Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...