sexta-feira, 7 de junho de 2024

Metrô, 23 estações

 Por Ronaldo Faria


 
Acordei mais cedo do que de costume. O sol ainda teimava em querer chegar. Uma névoa fria se misturava com a fumaça da queimada que ardia logo perto. Um urubu ou outro voava rasante no lixo jogado no córrego que escorria quase nenhum detrás dos barracos infestados de moscas e miséria. Pouca gente se aventurava em seguir adiante, mesmo com todos tendo ponto pra bater, condução pra pegar, vida ou morte pra seguir. Mas acordei cedo demais para quem não tem muito porque sair da cama. As molas da cama fazem barulho. Doem o corpo. Na chaleira a água ferve para o resto de café que descansa sobre a mesa. A cabeça dói um pouco. Noite mal dormida, solitária, quebrada em acordar, virar do lado, dormir, acordar, pesadelos, ressonar, descobrir que pobre não tem com o que sonhar. As latas de cerveja e a garrafa de pinga, largadas sobre a pia, tentam dar bom dia. Em vão. Quem dera logo mais rolasse uma orgia. Triste realidade de viver nos ribeirões e rincões da cidade. Mas é hora de voltar a viver.
Entro debaixo do chuveiro que pinga um tanto de água fria e outro de líquido quase quente. É urgente consertar ou comprar a resistência. Um dia o mundo vai me vencer pela persistência. Mas, até lá, vamos tentar. Me enxugo rápido para não perder o horário do primeiro trem. Pego as caixas de bala de hortelã para garantir pelo menos a janta de marmita ou umas latas de suco de cevada na promoção. Preparo a garganta para a propaganda: “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”. Se tudo der certo, nos trilhos do trem e do metrô vou conseguir um pouco de combustível para continuar a respirar. Afinal, minha vida é assim: um dia a cada dia, um momento a cada dia. Sobrevida. Do lado de lá da porta tem uma guerra a ser ganha pela briga de ter nascido e urdido em não morrer cedo.
Respiro fundo, levanto a cabeça e abro a porta. Ela range doído, carcomida pela chuva e ratos. Preciso ver se sobra tempo para dar um jeito nisso. Haverá de ter. Agora, porém, é seguir à frente. Tem uma conta corrente inexistente para fechar. O vento bate frio no corpo. É outono quase inverno. O tempo está um inferno. Um gelado que corta até os ossos, mas depois vira quase forno de padaria. Não há como saber o que virá. Mas, nessa vida que voa rápido entre um nascer e morrer de sol, há o que se prever? Ando devagar na viela. Desvio de uma poça aqui e outra logo ali. Os casebres aos poucos despertam para redescobrir filas, festas perdidas, frases esquecidas.
– João? Morreu na última batida. Tentou se esconder, mas a bala foi mais rápida. Disseram que ele era do movimento, jogaram o corpo dele no camburão e estava feita a história final.
– Maria? Coitada, apanhou tanto do Bastião que não aguentou. Ainda foi pro hospital, toda retalhada e moída, mas não resistiu. Seus filhos talvez fiquem com a avó. Senão, vão pra adoção. A assistente social até já veio aqui.
– Dona Antônia? Tadinha, tava velhinha... Não tinha como aguentar mesmo. Até que tentaram uma vaga no SUS, mas não deu tempo. Os pulmões apodreceram antes.
– Clemente dos Pinos? A polícia catou na boca. Encheu ele de porrada e arrastou pro distrito. Saiu até no jornal. Disseram que era dono do esquema. Logo ele, um bosta que não tinha onde cair morto. Está à espera de um advogado. Mas quem vai pagar?
Caminho rápido para pegar o ônibus que vai me levar à estação de trem. O ponto já está cheio. Gente que eu conheço há muito tempo. Gente que eu nunca vi. Favela parece formigueiro. Sempre tem operária nova para servir a rainha. Sempre tem zangão pra morrer. Dou um bom dia rápido para alguns. Para os outros só troco um olhar que se desvia por medo de trocar negligência ou morte. Por aqui o silêncio é não é de ouro. É de couro comido de pólvora ou lâmina afiada. Mesmo a mulher de olhar safado é melhor não ver. Nunca se sabe onde está aquele que dorme com ela. Na casa a esperar ou no canto de uma cela? A realidade do medo e do pobre não é procela. Melhor estar só do que numa estrada em quimera. Um dia, quem sabe, vendo mais do que dropes de hortelã. Acreditar e crer ainda parece ser o maior afã.
O ônibus corre rápido pela quebrada. Também não há muito mais espaço para outra pessoa entrar. O motorista nem para mais. Ele deve ter estudado que dois corpos não ocupam o mesmo espaço. Não é cabaço. O importante agora é só chegar no horário. Quanto mais cedo, melhor. Eu vou quieto no meu acreditar. Afinal, tem gente que não consegue escovar os dentes, por falta de tempo ou de pasta, e usa as minhas balas para achar que não vai perder emprego, mulher, homem, decência ou algo que tenha açúcar ou sal. Que saiba cheirar um odor que não explicite apenas miséria e dor. Sigo assim: metade pro mundo e a outra metade pra mim. Sei que desde o início tudo foi assim. Porque agora é que vai mudar?
O motorista breca o ônibus e desliga o motor. Ponto final e inicial. A estação do metrô está logo ali. Agora é descer e seguir. Entrar no vagão, preparar a voz e tentar não tossir. A tosse hoje espanta o comprador. “Se a bala é boa, por que ele parece um trovão ambulante?” Pago a passagem na bilheteria, fico de pé para percorrer os vagões e retiro o produto da mochila. Quisera, ao invés de bala ou dropes, estar vendendo pele de chinchila. Mas, vamos lá. “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”. Nas próximas 22 estações tenho que zerar tudo. Preciso. Necessito. Tenho. Haverei de zerar.
A vida nunca foi fácil comigo. Ávida de ter um exemplo de fé naquilo que não era possível, me fez de exemplo. Por eu sigo, insensato e vazio pelos trilhos do metrô. Ungido de voz e querer me livrar de cada bala que vendo, cada dropes que passo adiante. Tudo como um infante que sobe na nau que vai cruzar os oceanos a crer que há muito a ver e ser. É isso que sou: um infante patético e púbere, que não sabe como funciona o mundo. Que não conhece seus meandros, suas nuances, seus penduricalhos, suas vaginas e caralhos. Apenas é. Ou pensa ser. Metáfora amorfa de um poema que nunca foi lido ou dito. Escondido aos ouvidos e praças públicas, virgens púbicas, pastos devorados por um gado que segue sua boiada tristonha e calada, calejada de nada ser. Ou seja, ver para crer.
Mas a vida será mais do que isso? A que viemos e para onde vamos? Além de nós há outra estratosfera ou sequer uma quimera? Que química nos colocou no mundo quando o mundo não havia e qual nos levará depois dessa suposta orgia? Por que tal primazia? O espermatozoide mais rápido, mais lépido e safado? O destino, no corpo de menina ou menino? E depois, o que ser? Escolher? Viver? Sentenciar? Acreditar e ser? Romper barreiras e hormônios, verdades e sinônimos? Felicidade há de ter? Fidelidade há de ter? Morrer logo cedo ou crescer? Mas o que é crescer? Barba aos machos, às mulheres peitos grandões, ereções, gozos, incongruências, sentimentos, magias individuais, meras porções? Saber-se-á.
– Estação Paes de um Afonso que ainda tem pena.
A voz do condutor, motorista, maquinista, senhor, soa pelos alto-falantes dos vagões. Um tanto pouco de seres humanos desce, outro tanto mais sobe. Nova gente, mais possibilidade de vender, desvendar desejos e fé. Acreditarão eles que minhas balas e dropes feitos lá onde eu nem sei poderão salvar ou melhorar suas vidas? No que eles acreditarão? Ouvirão sermão de pastor ou padre? De onde virão? Serão operários, empregadas, guardadores de carros, vigilantes, prostitutas, amantes? Serão donos de empresas ou diretores de conglomerados que os motoristas que vivem periféricos na periferia faltaram? Eu não sei e ninguém saberá. Falácias de qualquer lugar. Nesses vagões interligados de tecnologia e vidas vazias com suas impróprias azias, ninguém saberá.
O trem do metrô avança. No Japão, a essa hora, alguém janta. Não há milimétrica rima para tanta coisa tântrica. O barulho dos trilhos entrelaçados com as composições sugerem novas rimas e novos sons. Lá fora, no escuro, poucos são os tons. Tudo passa rápido, num descabido e barulhento acalanto. Eu espero um minuto passar, todo mundo sentar e volto com meu canto: “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”. Um levanta a mão dali, outro repete o gesto daqui. E lá vou eu: “Um é dois, três é cinco”. Vendo alguns. Fico, por um momento sequer, feliz. Mas o que será esta tal felicidade? Na minha idade, depois de contar na metade de uma mão os raros amigos, de saber que pouco ainda tenho a viver, acho que morrerei sem aprender.
Nasci numa madrugada de um novembro qualquer, nu, rapa do tacho, fruto de uma trepada, não de um amor. Se amor um dia houve, esqueceram de avisar os dois. Filho de uma ninhada de dez. Num barraco à beira de lugar nenhum, aninhado com mais tantos quantos cabiam numa cama ou num sofá velhos, fui me virando pela vida. Aprendendo a sofrer, bater e apanhar. A acreditar que tudo um dia ainda iria mudar. Mas qual… a vida não está aí para se metamorfosear. Fui crescendo, me descobrindo, temendo, reagindo, vivendo. Como diz o samba, a vida foi me levando. Saber-se-á para onde. Agora estou aqui, no vagão de um trem a gritar: “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”.
– Estação Cerqueira César. Ponto de interligação com quem seguirá na linha rosa!
A voz do condutor, motorista, maquinista, senhor, soa outra vez pelos alto-falantes dos vagões. Mais gente sobe e desce. O vagão parece um elevador de repartição: uns a descer para fumar e outros a subir para tomar café. Todos, acreditem, na fé. O trem recomeça a seguir seus trilhos. E eu, que trilhos seguirei? Alguns dentes já deixaram minha boca. No último ano de escola, um professor havia dito para a turma que se chegássemos aos 50 anos com todos os dentes, seríamos vencedores. Não cheguei. Sou um perdedor. Hoje eu sei que nunca mais os terei. Assim, vou escondendo o que posso para que os outros não vejam minha vergonha. “Um vendedor banguela a querer nossas quirelas.” Por isso, grito baixo. “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”. Acho que consigo enganar bem. Ainda vendo um tanto pouco e bem.
O trem vagueia entre casebres ordinários, trilhos sujos, ruas perdidas em algum canto fedido sob um sol ardido que faz os cães beberem sua própria saliva para não morrerem. Numa ou noutra esquina, a velha senhora desdenha da vida ao ver a moça que passa no seu reluzir de juventude e sedução. Há um aleijado abismado com o correr da criança maltrapilha e o português que, do bar, xinga ao ver o bêbado caloteiro passar. Tem os vagões cheios de gente, o indigente insone, o pedreiro que sonha com as pedras e o cimento que um dia também lhe darão um lar. De tudo há um pouco e outro tanto mais. Tem até o sol que começa a querer aparecer com trejeitos de não deixar chover. Devagar, vou de banco em banco oferecendo meus deleites. Muitos sequer olham pra mim. Fingem dormir. Talvez não tenham mesmo tempo para nada mais além de um ressonar ligeiro. O barulho do trem a correr bairros e paisagens desnudas de algo a ver certamente soam como canções que ninguém nunca lhes ninou. Do alto, um urubu voou.
Penso no meu passado no meio das brincadeiras de rua, bolas de meia de tirar tampões dos dedões do pé, pipas a roubarem das nuvens o seu jeito de algodão-doce e perseguirem seus adversários coloridos que voavam nas mãos de outros meninos. Das brigas infantis que nunca existiram, dos ardis e medos entremeados de medos maiores, dos bancos escolares que pairavam feito nada na cabeça do garoto que só queria ter paz e estrada. Nada de ler e aprender. Para quê? Sequer queria crescer para não ter depois de morrer.
– Você foi no enterro do Senhor José? Coitado, tinha 86 anos, mas se achava jovem. Ria para quem passava, nunca negava um bom dia. Tinha a certeza da serventia. Era um bom homem. Se sofria, ninguém sabia. Morreu como um pássaro, rápido e ao nascer do dia. Dizem que, feito a música, virou cotovia.
Eu pensava como isso poderia ser. De repente, de gente você cria asas e vira andorinha ou rolinha. Sai a voar por onde sempre queria e nunca podia sequer rodear. Passamos a ver lugares bonitos, mares sem fim, montanhas cheias de verde e não de barracos, revê amigos, parentes, amores. Nada de dissabores, tristezas, dores. Deve ser bom. O importante é torcer para que menino nenhum esteja a postos com seu estilingue para abortar esse derradeiro sonhar. Por isso, sempre pensei, quanto mais tarde morrer, melhor. Mesmo que o bater de asas seja mais difícil, só de sair do corpo e crer que já teria feito o seu dever. Mas agora, entre um vagão e outro, sem muita esperança, ainda consigo, ao menos, cantar meu refrão: “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”. Um dia, qualquer dia, descubro o meu destino.
– Estação Maria Guadalupe. Desembarque pela direita.
A porta abre ligeira. Dá vontade de descer junto, mas não fiz ainda nem pro pingado. Tenho é que pensar menos e aumentar o meu gingado. Dentro do metrô que corre na terra acima sob o sol inclemente que nem demente aguenta, uma gorda senhora senta no banco quente. Tento lhe vender uma bala com a promessa de que será uma cachoeira fria na sua garganta, mas ela nem olha pra mim. O suor lhe corre cada pedaço de carne. Seus olhos, esbugalhados a rilharem na luz, parecem pedir apenas “me deixe”. Eu deixei. Vou até o outro vagão, na inexatidão de um retirante no instante que a morte parece ser o destino final. Mas está tudo igual: gente triste, cansada, suada, destinada a sucumbir na Estação do Bonfim. Ao parar o trem, o condutor diz que é hora de fazer a baldeação para a linha roxa. O formigueiro em lata desce correndo até as escadas. No rumo, desvia de bêbados e craqueiros que dormem a ver a vida girar. Na esperança que uma larica bata em alguém, grito alto: “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”. Em vão.
Faltam ainda várias estações e cores de linhas alinhavadas no destino que nada dá. Penso em desistir de tudo outra vez. Mas lembro da tez de Maria, com seu sorriso cheio de dentes brancos e uma língua que faz a gente enlouquecer. Prometi-lhe casamento quando tivesse condição, por isso entro ligeiro de novo na condução. Se solução não existe é porque solução há de ter. Meu avô, Simplício, costumava dizer isso. Não lembro muito dele, mas ainda assim tento lhe dar a razão nas coisas da vida. Afinal, mesmo pobre e filho do INSS e do salário mínimo chegou quase aos 100. Ou seja, algo especial ou espacial o velho devia ter. Nem que fosse direito a uma cervejinha barata e uma pinga talagada todos os dias. Penso na gira que fui e o cavalo incorporado de exu disse que minha hora ainda ia demorar, mas em qualquer hora que a gente menos esperar, ela iria chegar. Agora, nesse trem que corre os bairros pobres da cidade, só dá vontade é de cagar. “Estação Pedro IV, o Redentor!” Decerto o condutor resolveu sacanear todos nós. Pedro, nesse império que não deu certo, teve só dois. Algo do primário incompleto eu ainda recordo.
Nas próximas estações, cada vez com casas mais miseráveis, certamente ninguém irá comprar minha balas. A maioria não tem dinheiro nem pra pagar as contas de luz e da venda do português. Será que crio uma caderneta também? Mas como, depois, encontrar o cara pra cobrar? Pobre morre fácil, de doença, fome ou bala de metal encontrada. Melhor não. Deixa como está. “Uma é dois, três é cinco”. Recebo, entrego. Não tem pra pagar, não leva. Os vagões, aos poucos, ficam mais fáceis de oferecer o produto. Estão mais vazios. Mas cheio de insones tardios, malandros vadios, anciões de lavradios. No por do sol, quando a luz já fica difícil de ver o que vem adiante, decido parar. “Estação Mãe Menininha do Gantois (Gantuá pra brasileiro). Favor descer pela esquerda”. O recado é uma ordem. Desço com uns caraminguás no bolso. Se eu tomar uma gelada na birosca mais próxima ainda dá pegar o trem na volta e sobra algum vintém. Como não tem solução, solução há. Um dia, quem sabe, a sorte venha me rasgar no meio feito o raio que partiu o José da Ninha na praia logo ali depois da guarita. No céu, a lua ilumina o resto que resta da humanidade.

(Com Zeca Pagodinho)


quarta-feira, 5 de junho de 2024

A Janis Joplin

 Por Ronaldo Faria

 


Respirar fundo. Segurar a inspiração. Soltar em letras e versos. Habitar o metaverso e crer que há algum lugar na realidade fatídica e intrínseca, seca de emoções e paixões, a se habitar. No cataclismo do sismo que explode e eclode de cada um de nós, a impoluta luta entre a lucidez e a embriaguez. Enquanto houver energia eólica, haverá olhos para lerem a poesia da vez.
Juntar cacos e cocas, dormir em ocas improvisadas, entumecidas e suadas, alardes de imaginários sudários de um sangue nunca derramado. Apenas rarefeitas unções e claudicantes momentos, capitaneados por piratas mancos e alcoólatras que não sabem onde começa a areia e termina o mar. No fim, crê-se, haverá de existir um sublime, esmerado e efêmero lugar.

terça-feira, 4 de junho de 2024

Duas historinhas da MPB

Por Edmilson Siqueira


Toquinho e Vinicius escreveram sambas que vão ficar na memória dos brasileiros por muito tempo. A parceria entre os dois foi um casamento perfeito, gerando músicas que eles mesmos gravavam e eram tocadas em todo país. Aliás, não só aqui. Os argentinos, por exemplo, pelo menos os de Buenos Aires, têm adoração pela dupla. É que eles fizeram uma temporada por lá, aproveitaram a ocasião e gravaram um LP. É o disco  brasileiro mais vendido na Argentina até hoje. E, recentemente, ouvindo uma rádio de jazz de lá (Blackie Jazz FM), ouvi uma propaganda de um show numa casa noturna em comemoração ao aniversário de 50 anos do lançamento do disco da dupla. 
Mas o que eu ia contar sobre eles é outra história. A ambos estavam na Bahia, na casa que Vinicius tinha em Itapuã. Toquinho lhe apresentou as últimas músicas que tinha feito sobre os versos do poeta e notou que havia um papel com um poema sobre a mesa. Perguntou a Vinicius se era letra nova. O poeta respondeu afirmativamente, mas disse que era uma letra que ele ia mandar para Dorival Caymmi. 
No dia seguinte, Toquinho tinha de partir para São Paulo, com volta marcada para Itapuã para dali a três dias. Quando chegou de volta, encontrou o poeta nervoso: "Sabe aquela letra que eu lhe mostrei, que ia dar pro Caymmi? Pois é, sumiu, perdi. Não consigo mais encontrar. E não sei se conseguirei fazer outra."
Toquinho se sentou, pegou o violão e disse: "É o seguinte, poeta: quando você disse que ia dar a letra pro Dorival Caymmi  eu fiquei com um enorme ciúme. Então, roubei a letra, levei pra São Paulo e botei uma música nela. Eu vou mostrar como ficou. Se você não gostar, eu quero que você seja muito sincero e diga que não gostou. Aí você dá a letra pro Caymmi."
Vinicius ouviu, se emocionou com a bela canção que seus versos geraram, até cantou o refrão junto no fim e disse: "Tá ótima! Não preciso mandar pro Caymmi, não."
E assim nasceu "Tarde em Itapuã",  de Vinicius e, claro, Toquinho. 

                                                            II



Dona Zica foi mulher do genial Cartola de 1964 até a morte do mestre, em 1980. Numa entrevista ao grande Zuza Homem de Mello, este perguntou se ela, alguma vez, presenciou Cartola compondo. Dona Zica não titubeou e respondeu: "As Rosas não Falam eu vi como nasceu."
Zuza arregalou os olhos para a história que viria e ela prosseguiu: "O Cartola foi visitar um amigo que morava num sítio. E quando ele voltou, trouxe uma muda de roseira que o amigo deu pra ele. Chegando em casa, ele plantou a muda no jardim e cuidou muito bem dela. Toda dia ele regava e conforme ela ia crescendo, ele tirava as folhas secas, arrumava a terra em volta e cuidava para que ela pudesse crescer. Depois de um tempo, a roseira começou a dar rosas vermelhas, lindas. E todo dia, Cartola ia lá, pegava uma rosa e colocava num altarzinho que tinha na sala, da nossa santinha.
Um dia, eu até perguntei, brincando, se a roseira não ia parar de dar tanta rosa. Ele me respondeu que não sabia se ela ia parar, porque as rosas não falam... Rimos da frase e, no dia seguinte, ele pegou um copinho de conhaque e me disse, como dizia sempre que ia compor: "Vou lá pro quarto e se chegar alguém diga que saí. Estou com uma ideia na cabeça e vou ver o que dá pra fazer. Uns vinte minutos depois ele me chamou e falou: escuta aí o que eu fiz, vê se tá bom..."
E assim, Dona Zica ouviu "As Rosas não Falam" em primeiríssima audição.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Esquina de New Orleans

 Por Ronaldo Faria


Catarina, que serve para a rima poética como a p... da Prússia, era a rainha sem trono no entroncamento das rodovias estadual e nacional. Não havia um caminhão sequer que não parou para seu dileto condutor nela se abastecer e ser. Bela e formosa, voluptuosa, torneada e fogosa, era o objeto abjeto do desejo de mil em cem sonhadores com suas taras e dores. Ela era a dona de calafrios mesmo nos dias mais quentes e tardios, desses em que se esquece que há frio. Na boleia, entre carregamentos de tevês 4K ou carga viva de jumentos, abatia sua presa sem pressa. Era dela a sentença do horário em que seu corpo estava em vias e fatos, todos fátuos. Catarina era a sina, exterminadora de anginas e cismas.
Já fora, anos atrás, convidada para se juntar a uma trupe de mochileiros loucos que ia para Hollywood dar um rolê. Mas, qual, preferiu continuar sua história estoica e etílica de fazer os próximos cheios de cheiro de monóxido felizes. Afinal, o mundo precisa de palhaços e atrizes. Enquanto tivesse a beleza vívida livre de varizes, seria aquela que vale qualquer viagem da ponta do Chuí ao recôndito do Oiapoque. A carga pouco importa. Leva-se de engradado de cerveja quente a porta, galinhas congeladas e reses caladas, beatas calcinadas a mil almofadas, óculos de grau e bolachas mofadas. O importante era ter Catarina no meio da estrada. Houvesse Oscar de desejo, ela seria uma estatueta do querer benfazejo.
Um dia, porém, parou um treminhão desses que paga pedágio triplicado só por colocar na estrada dezenas de metros de lentidão. Dele desceu Honório, que, apesar do nome, nada tinha de simplório. Há muito haviam dito a ele da loucura que era Catarina, melhor que qualquer rebite ou remédio para sinusite. Como um navegador que descobre as Índias achando que era o Brasil, brande seu peito nu cheio de cabelos e cheiros, buzina três vezes e pisca as luzes do farol. No faro da caça que deseja, se despeja no estacionamento da churrascaria fuleira. O PF estava menos de dez reais. Mas ele queria Catarina. Na vitrine de cachorro descansava uma passada e já vencida carolina, que era mera bomba de leite com chocolate.
Mas eis que de repente, nesse rompante que só se abstrai em cada mente, Catarina sai do banheiro. E Honório descobriu que ela não era lenda de motorista que vive semanas na sanha do cinco em um. Com certeza, era a coisa mais cara que pudera pensar em carregar. Nem a carga de maconha prensada escondida sob as toneladas de milho transgênico ou a de papel higiênico de folha quíntupla para diarreia extrema foram tão importantes. Nesse instante, Honório se sentiu como um finado bastardo nas agruras do continente em asfalto já traçado e tracejado. E agora? Como pedir a ela deixar sua função cumprir e fluir sem parecer o imbecil de um falso emir? “Senhorita Catarina, me daria a honra da sua vagina?”
Ela riu com tanto salamaleque e aproveitou para ganhar a semana: “Só se for por mil!” Honório não pensou duas vezes. Sacou o maço de notas que trazia na pochete e esqueceu que milhares de quilômetros e postos de gasolina, ávidos frentistas, o esperavam. “Aqui está. Por você, daria até mais.” Sorte dele era que a carga era de cigarros contrabandeados e quem os fumasse sequer saberia a diferença entre a data de fabricação e falência dos órgãos vitais. Desigual aos tantos outros que habitaram Catarina, teve momentos loucos de prazer e lazer. Depois do tudo feito e refeito, após cinco mil a mais, a pediu em casamento. Este foi o seu tormento, com um não contumaz. Hoje, entorpecido de mágoa e tristeza destrinchada, é o “motorista maluco” das estradas. Leva seu caminhão vazio por caminhos de terras nunca viajadas e buzina tresloucado quando vê um pé de moita calcinado. Na mesma confluência de rodovias, Catarina sorri como estrela de cinema e vive sua sina.

sábado, 1 de junho de 2024

Noite em tardia orgia

 Por Ronaldo Faria



A fumaça que escapa para o alto vem dos lábios marcados e coloridos de vermelho da boca de Luiza. A luz que a escolheu para se eternizar na penumbra que o bar feito rotunda dá, é quase lúgubre. Fina, em fagulhas de amarelo e cinza, ela mostra o rosto que transcende no silêncio que esbarra na rua em frente – esquecido, retrátil em poucas e nenhuma vida assombrada.
Luiza, fugitiva da fuligem que a estrada do falso amor põe a voar, brinca de forjar olhares de loucos machos em seus desejos transversos e sem versos a recitar. Linda, de vestido vermelho que deixa suas pernas se moldarem de escultura viva, vez ou outra lembra que, outrora, fora cantada em poesia e prosa. Na sua casa, uma fotografia amarelada é sentença malfadada.
Na mesa a poucos metros, perplexo e catatônico, Celidônio se atira na mentira que se tornou sua vida. A amante diz que quer privá-lo de más notícias e o esquece na perene sintaxe da prece. Solitário, vê-se, ele permanece. A performance agora é sobreviver para ver aquilo que ainda vai acontecer. Entregue à própria loucura, soltura de letras e lero-lero, se diz clérigo.
Celidônio é o homônimo de um trágico pseudônimo: é o anônimo. Os garçons não o veem, a cerveja não chega, o mundo prefere não enxergá-lo. No gargalo da garrafa ainda fria, faz sua sina. A mudar de desejos e mundanas, solapa a brincadeira de eira e beira que se tornou sua existência. Na crença nenhuma, viaja na metáfora que é o picadeiro sem bailarina ou graça.
Luiza e Celidônio, porém, no sobretudo que o então dá para o entretanto que habita muito e  tanto e em tudo, contudo, se encontram na fila do banheiro. O lugar, saibamos, nada tem de brejeiro. Há, de fato, um fátuo cheiro. De urina esquecida e cobalto. Na radiação de corpos, surge e urge a química de um elemento do alemão Kobold, duende, demônio das minas.
Se olham e entreolham dos pés à cabeça, cruzando as partes que o íntimo de dois corpos traz à tona quando a nudez detona. Foi como amor à primeira vista, coisa de destino e vida. Agarraram-se lá mesmo. Roçam e tocam, brindam e brincam. A madrugada que os uniu num pueril e insensato pudor os leva à cama mais próxima e próspera. E o restante, naquilo que nunca de fato restou, foi-se à puta que pariu. Logo nascerá um dia em anil.
 
(Sob o som do blues)


quinta-feira, 30 de maio de 2024

No blues

 Por Ronaldo Faria


Apagar, desapegar, agregar, acender, recriar, desfrutar da loucura etérea e efêmera. Nos sonhos, cada dia uma fêmea. No som, o blues desenrola a rolar. No alto da árvore, a pomba-rola para no galho que ao vento a penumbra plúmbea abate sobre a cena. No semblante do maltrapilho andarilho que sobe a ladeira com um passo à frente e mil e tantos atrás, a visão de dentes que faltam, o hálito que o bagaço criou, a flor que nunca viu uma gota de água para nascer. Quando a chuva jorrou, a enxurrada levou a semente junto com a dor.
Catar, pegar, transcender, envolver o volátil e o descrer da rotina que chega com os raios da manhã. Nos pesadelos, em enlevos dissolutos e bastardos, fantasmas revivem e convivem entre si, encarcerados de uma eternidade que parece não ter fim. Em roteiros que sucumbem em morteiros que destroem catedrais nunca erguidas, o som de pretos e pretas, de vozes e harmônicas, pianos e planos mil, na certeza de que plantações serão colhidas e florirão. E os céus erguerão raios e luzes luzidias a receber a poesia de se perde na nova canção.

terça-feira, 28 de maio de 2024

Com Vander Lee

Por Ronaldo Faria


 
Vaticínio que o anacronismo margeia e pragueja no limite entre a alma e celeuma que habitam cada um de nós, entre nós atados e lampejos de lucidez. Suicídio sabido e procrastinado em cada dia que nasce, segue e morre decapitado de sonoras auroras nunca vividas. Todas ávidas de estagnadas lembranças anchas e vespertinas, vívidas. Como meninas que se vestem de mulheres e, sem saber, logo terão anginas. Nas síncopes da sina, a vagina.
No caleidoscópio que o unicórnio traz entre suas cornucópias, o ópio de sobreviver sem ver o inverídico viver. Um tanto de barco que naufraga a cada frágil rebentação que a inexatidão das horas dá. No frigir de óvulos, as vidas de quem navegará o mar de placenta e crença. Atônito, afônico, Antônio tenta lembrar os segundos que postergam o mesmo caleidoscópio que se vê em cada esmero. Brinquedo complexo, cego, insipiente e estratosférico.

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Jobim com sotaque português

Por Edmilson Siqueira


Dizer que Tom Jobim é o nosso maior compositor, que sua música atravessou fronteiras e que continua sendo tocada no mundo inteiro, já se falou muito por aí e é bom que se continue falando, pois nosso Maestro Soberano merece tudo isso e muito mais.
Pois agora, já há algum tempo, mais precisamente em 2016, o Brasil e o mundo foram brindados com um trabalho de uma cantora portuguesa no auge de sua maturidade e sucesso, com um CD só de músicas do mestre. 
A cantora se chama Carminho, está com 39 anos e nasceu em Lisboa. Tem nome de embaixadora: Maria do Carmo de Carvalho Rebelo de Andrade, mas adotou a alcunha no masculino (o normal seria Carminha, né?, como minha mãe que também era Maria do Carmo) e já gravou seis álbuns de estúdio, sendo o de Jobim o quarto.  
Carminho tem uma relação bem forte com a música brasileira. Já teve participações em discos de Alceu Valença, Elba Ramalho, Marisa Monte e Os Tribalistas. Mas descobriu nossa música ainda criança, ao ouvir as trilhas sonoras das novelas brasileiras, principalmente da Globo, que passavam em Portugal e, em cujas trilhas sonoras, desfilaram  canções de Chico Buarque, Elis Regina, Milton Nascimento, Tom Jobim e Vinícius de Morais e outros. 
Quando tinha 12 anos, sua mãe assumiu uma casa de fados em Lisboa, a Taverna do Embuçado, e ali Carminho conheceu grande nomes da típica música portuguesa. Pois, na Festa do Embuçado, que ocorria todo ano, Carminho pediu para cantar. O trecho a seguir é uma narração da própria cantora: 
"Eu disse que queria e o meu pai disse que não, porque não queria passar vergonhas. Mas insisti e ele disse que eu podia ir se o Paquito, que tocava no Embuçado na altura, aprovasse. O Paquito [guitarrista da casa] disse que eu tinha tempo e era afinada: 'Por que é que não hás-de deixar a miúda ir?'. Eu cantava o 'Fado do Embuçado' e mais nada. Adoraram, porque era como uma mascote, ter uma menina de folhos a cantar o 'Fado do Embuçado'. A partir daí, sempre que havia algum dia especial, a minha mãe levava-me ao Embuçado." 
E quando ela fez 15 anos, passou a cantar regularmente na Taverna do Embuçado, iniciando uma carreira que só lhe trouxe sucesso. Dos seis discos gravados, quatro foram certificados com Disco de Platina e um de Ouro. 
"Carminho Canta Tom Jobim", esse é o nome do disco, é uma delícia de ouvir. A começar pelas letras tão nossas conhecidas sendo cantadas com sotaque de Portugal. Ganham até uma certa nobreza. Só que o disco foi gravado no Brasil, com músicos brasileiros, o que faz do conjunto, uma mistura mais que fina. 
Paulo Jobim (violão), Daniel Jobim (piano), Jacques Morelenbaum (violoncelo) e Paulo Brana (bateria) é o time que ela esclou para acompanhá-la. Só cobra criada. 
E pra completar, Carminho chamou alguns cantores brasileiros para participar. Assim, Marisa Monte está em "Estrada do Sol"; Chico Buarque está em "Falando de Amor"; Maria Bethania em "Modinha" e um trecho do poema "Canção do Exílio" de Gonçalvez Dias, é declamado por Fernanda Montenegro, abrindo a interpretação de "Sabiá". 
Além das música citadas, fazem parte do disco: "O que Tinha de Ser" (com Vinicius de Moraes); "Inútil Paisagem" (com Aloysio de Oliveira); "Retrato em Branco e Preto" (com Chico Buarque); "Triste"; "Meditação" (com Newton Mendonça); "O Grande Amor (com Vinicius de Moraes); "Wave"; "Luiza"; "A Felicidade" (com Vinicius de Moraes) e "Por Causa de Você" (com Dolores Duran), essa cantada em inglês, na versão de Ray Gilbert que ganhou o título de "Don't Ever Go Away".
O CD é da Biscoito Fino e está à venda tanto no site da gravadora quanto em outros sites. E você também pode ouvi-lo totalmente na internet. Basta clicar neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=JURXfggmsEE&list=PL5_udDbi4ygyht-aSdubs7D3Bxz84g9xM 


sexta-feira, 24 de maio de 2024

Alma, calminha. Ainda não é hora de partir

Por Ronaldo Faria


Em pé, Múcio parece um beócio, desses que acha que a felicidade está logo ali do lado, num cabide que se pega e se muda de roupa. Pediu, cheio de crer, “me avisa”. “Diga-me”. Afinal, ele queria era apenas saber. Do outro lado, certamente a ouvir fado, a alma gêmea não está nem aí. Em seu mundo próprio, onde o impróprio está cheio de impropérios etéreos, à merencória cor da lua, como diria o poeta, a essência da ciência não se fez. Mas quem precisa de ciência quando tem a vivência fatídica da vida a costurar?
Sentado no bar besuntado de gorduras que flutuam no ar vindas da cozinha, Múcio levanta o dedo e pede outra gelada. Arcada em seus pesos e pesadelos, pródigos reveses da vida, a moça da mesa defronte ergue a fronte e lhe sorri. Ela está só. Seus dentes brancos, seu ventre ancho, suas ancas desprovidas de falta de vida, libertas ao amor, estão abertas em frestas que afrontam o torpor final. Certamente a mente do homem irá fazê-lo na madrugada acordar a beijar orelhas inexistentes com seu membro a brincar de inchar.

(Ao Zeca Baleiro)
 
II
 
Valêncio, um vivente desses que em cada esquina se esbarra e se evita, segue andrajo de alma e desejo de vida. Resistente na insólita mente, desmente a poesia que a tragédia faz comédia comedida de ditames e sinas. Amores mil no passado, hoje ser quase castrado de falácias, em falésias que nunca andou, corre a discorrer seus desejos e versos torpes. Espera apenas que a solidão da noite que as estrelas trazem seja o seu lençol. Para a música que virá, tanto faz ser em mi ou si bemol. O mundo está sob formol.
Valêncio, ser onde valer na vida já é o bastante que o tanto se proseia, segue a se desvencilhar dos faróis dos carros, das amarras da vida, das feridas que conseguiu em cada canto do labirinto que construiu pra si. É um famélico amante, arfante, dissonante, benfazejo de um destino inconformado consigo mesmo. Sabe que daqui à frente não será muito, no nada que será. Mas, sobrevivente da incerta finitude, tem só uma derradeira atitude: nos passos em descompasso se fará cair calado na voz da paixão.
 
III
 
Fulgêncio, que não foge de si, sabe que apesar do cavalo que sua e relincha na sede que está quase a lhe matar, tem uma estrada ainda a trilhar. Não há nesse mundaréu nenhum rio ou riacho para suprir a sede dos dois. No alforje, um tanto e meio de corte de seda para cobrir o corpo de Marilda, seu amor. Mesmo sabendo que melhor seria vê-lo nu, a deitar quieto sobre o seu na esteira que beira a certeza de um gozo, a cavalgar colada e calada na ilusão de ser um só. A lamber de lambidas de língua a outra língua que lambe de músculos vermelhos os ósculos que adentram entre dentes e ventres. Tudo como a harmonia entre a voz do cantor e a dor que nunca irá cicatrizar. Na essência do destino, o desatino do inócuo luar. Decerto, no mais certo amor dos loucos, haverá à espera um ridículo lugar. Desses que a gente se larga ao largo para achar que a vida tem ainda seu chegar. No absurdo barulho que só o surdo sabe ouvir, Fulgêncio se cobre de blasfêmias e espera que as fêmeas que viveram nele sejam uma só. Assim terá menos dó de si. A viver de efêmeros sermões em que já sabe quantas aves e Marias rezar, troca letras e prosas que os iletrados que passam a noite em claro, bêbados e fugitivos da vida, saberão decifrar. A imensidão que sombreia de clarão a lucidez simplória da inglória certeza de amar e remar nos líquidos que o amor joga em corpos desnaturados, é a dona de tudo. No profundo queixume das ondas que já não aguentam mais bater na areia das praias e beijá-las sem poder parar, o rotundo findar da poesia.

 (Ao Fagner)

quarta-feira, 22 de maio de 2024

No baleiro do Zeca o sol derrete a vida

 Por Ronaldo Faria


O sol escaldante, que parece que nem com prece braba vai embora, e torra a mais grossa tora e queima mesmo o que há muito queimado está, decidiu que ficará junto com a carcaça do boi e o homem que sua até a última gota na derradeira trilha de terra esturricada. O sol, este brilha lá no teto de um céu cheio de raios e nuvens raras, parcas, prostradas na primeira sombra que conseguem ter. E sorri do degelo que o gelo mostra nos copos de uísque, martiriza as cinzas da queimada de um fogo mais frio que ele, volatiliza diante das almas que pedem para sair dos corpos e ir tomarem banho na cachoeira mais fria do Himalaia.
Maria anda de sombrinha na rua de paralelepípedos que fervem sem modéstia à parte e esquenta as partes que se escondem na saia bordada de flores que pedem água. Ela, na soberba de ser um ser relutante e frágil, fugidio, quer apenas que a noite chegue logo. E, quiçá, traga uma chuva, mesmo dessas que só molha e nada umedece. Para ela, a padecer feito a virgem senhora e mãe de Jesus, o reflexo nos olhos que de verdes trazem mais dor ao olhar são o fim que ninguém merece. Constrita, pede que o mar vire o sertão e o sertão vire um mar, como previu o louco conselheiro Antonio. Pede, mas não crê no milagre.
O calor é tanto que o vinho já é servido como vinagre. E as hordas de larazentos seguem o caminho a deixar seus pedaços nas pedras que brincam de ferir os pés já feridos pela incerta e precisa morte de logo mais. Trazem bandeiras coloridas, seus sinos a mostrarem a chegada antecipada para as boas almas deixarem pratos de comida, suas realidades que nunca serão devolvidas nas chagas e feridas. Nalgum lugar, entre neves brancas e nervos retesados de frio, certamente o afago da mão de uma mãe. Mas, daqui, o pé que há muito não dá um caqui conta suas últimas flores a cair. No universo, Fênix despenca, no clímax, a rir de si.

terça-feira, 21 de maio de 2024

Fakes na MPB

 Por Edmilson Siqueira


"Djavan escreveu 'Flor de Liz' porque sua filha morreu". Essa era, em suma, a mensagem que um e-mail (as redes sociais ainda nem haviam proliferado como hoje) propagava. E dava detalhes, justificados com trechos da letra de que a inspiração viera de um acontecimento trágico. 
Tudo mentira. Ou fake news, como se passou a dizer. E eu ouvi essa história de outras pessoas também, que acreditaram piamente nela. Eu duvidava porque, como jornalista, tenho o hábito de ler muita coisa que sai na imprensa e um fato como esse, a perda da filha de um artista que viria a ser famoso, é fato que viraria notícia. Como nunca tinha lido na imprensa séria, duvidei sempre. Aliás, esse é um comportamento que mantenho até hoje, quando o império das fake news domina as redes sociais, mantido por falsificadores de fatos com interesses escusos. Se não saiu na imprensa séria, duvide.
Até que um dia, visitando a página do artista, estava lá um desmentido completo, assinado pelo próprio Djavan. A música Flor de Liz era inspiração pura, própria de um artista talentoso, como muitas outras que fizeram tanto sucesso na voz do cantor. 



Muito antes até da existência do computador, mentiras desse tipo, já corriam o cenário musical brasileiro. E havia artistas que, malandramente, se aproveitavam delas. Carlos Imperial, uma mistura de empresário artístico e malandro, que jamais foi compositor, tem seu nome em alguns sucessos da MPB, como "A Praça" e até um samba com Ataulfo Alves - "Você Passa e Eu Acho Graça". Claro que ele não compôs nenhum dos dois. No caso de "A Praça", grande sucesso na voz de Ronnie Von, ele deve ter comprado de alguém, mas, como conhecia os expedientes para fazer mais sucesso, ele mesmo disse que contratou dois rapazes para sair por aí dizendo que a música era deles. Só que, além dos dois, apareceram outros também, talvez os verdadeiros autores entre eles... Enfim, Imperial era sinônimo de trambicagem, ou de pilantragem, palavra da moda nos anos 70 do século passado, consagrada pelo grande Wilson Simonal em suas músicas.
Já o samba com Ataulfo era um notório caso de compra de parceria para abrir caminho no mundo fonográfico e radiofônico da época. Era, não sei se ainda é, um fato corriqueiro. O próprio Ataulfo admitiu que fez o samba sozinho e colocou Imperial como parceiro.
Outra fake news que a direita raivosa (existe a esquerda raivosa também e ambas são desonestas iguais) andou espalhando por aí, foi sobre Chico Buarque. Claro que o ódio da direita contra Chico é motivado pelas posições políticas do moço. Eu, que não concordo com elas e jamais odiaria o Chico por isso, separei o joio do trigo: desde que Chico subiu no palanque para apoiar Orestes Quércia para governador de São Paulo, não quis mais saber de suas opiniões políticas. Mas, claro, sua fantástica obra musical não pode ser misturada com seus esquerdismo. Continuei fã do artista e sempre considerá-lo-ei um dos grandes da MPB, ao lado de Jobim, Pixinguinha, Noel, Ari e outros.



Só que Chico, num trabalho para a televisão sobre sua vida - que virou uma coletânea de 12 DVDs - fez uma brincadeira no estúdio durante uma gravação e ela foi inserida em um dos DVDs. Nela, Chico brinca com os músicos que estavam com ele no estúdio, dizendo que tinha poucas músicas no momento porque seu fornecedor estava cobrando muito caro e ele estava sem dinheiro. E até deu um nome árabe para o "compositor" de quem ele comprava as músicas.  
O trecho foi destacado do vídeo e começou a percorrer as redes sociais como se verdade fosse, com um título do tipo "Chico é desmascarado...". E, pior, teve gente que acreditou que um árabe era o autor de todas as músicas do Chico. O vídeo deve estar por aí ainda, usando o que é uma brincadeira para propagá-la, desonestamente, como verdade.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Cassiano Ricardo, nem sei lá porque lembrei, mas é musical

 Por Ronaldo Faria

 


Cassiano, que nada tem a ver com o poeta Ricardo, serpenteia em si mesmo. Corre de barriga no chão pelo asfalto infausto chapiscado e ignorado, brinca de volatizar brejeiro e ser concreto no feto que nunca desabrochou do ventre da mulher amada, cálida e calada, porque não era hora de nascer.
Cassiano, que sequer sabia que a palavra cápside existia, não tinha métrica ou nada que fosse forma tétrica ou esotérica para se fazer. Nem destinatário tinha. Mas quem, em vida, o tem? Diante do cemitério próximo, o óxido que se fará coisa solúvel se calor e umidade forem a melhor maneira.
O que sobrou? Saudade das terras corridas, carcomidas pelo tempo, fugidas entre dias corridos, chegadas e partidas. Para Cassiano, dramático e atávico ser, o agora não era ágora ou nada a dizer. Somente saudade, dessas que a vida não dá cria. Que o coração sentencia para a prelazia do coração.
Cassiano, mero ser a ser em si, é um transgressor do destino, desses malucos que acreditam que o sonho irá se sobrepor aos pesadelos sem zelo que chegam nas noites, sejam elas de inverno ou verão. Na besta certeza de crer que o desejo um dia será dia e noite, o açoite que bate sem dó no corpo.
Na rede que se arma na vida para o mundo parar, a paralisia que o amor, desse que nunca se deixa de amar, traz os pés para o chão, de antemão. Na extrema vazante que a seca deixa o rio seco de areia branca, o desejo que se sabe entre a poesia e a realidade. Uma coisa a querer na infância desmedida de crer.
E Cassiano ouve do boiadeiro um vamos voltar ao passado, rever memórias e histórias, passos inexistentes, mesmo que se tenha plantado à espera de décadas atrás. Quem sabe carros de boi com sabugos de milho vermelho, redes no alpendre que alguém morrerá, inertes rimas a saborear a falsa imensidão.

sábado, 18 de maio de 2024

No Tom do Zé mais uma vez

 Por Ronaldo Faria


No abstrato do trato que a solidão dá, o subterfúgio fugidio que a dor dormente deixa a cada dia separado, a cada dia não vivido junto, a cada semântica abstrata que tricoteia na teia da rainha tresloucada para devorar o inseto absorto de ter deixado de voar, a incerta certeza de um vociferar quem ninguém ouvirá. Para logo mais, no afã que se enchafurda até a bunda abundar na voracidade de si mesma, a falta de dentes transborda na borda do sorriso que deixa de se mostrar. Cármino, que nada tem de estrangeiro (seu pai achou que era caminho em alguma língua e registrou ligeiro na esperança de uma espera de doido), estava mais uma vez largado no afável espaço trafegável que a avenida cheia de escapamentos deixava. Seu pensamento, que surgia como sândalo num cão sarnento e largado, antevia o derradeiro dia em orgia de mulheres desnudas e nuas de sentimentos. Qualquer alento já lhe servia.
Cármino, que uma Carmen deveria ser a ópera grandiloquente de uma operação tardia a deixar o órgão maior gangrenar, estava a inventar sua própria história, a reinventar o destino. Mas não há como ir muito longe ao alforje que o cavalo manco carrega no inferno de um inverno inexistente. Premente, a incerteza bastarda da partida se faz ouvida ao longe pelo aboiar calado que o galopante infante desperdiça de estar ao lado da amante, aquela que, nem ele, é uma reticencia que a ciência da vida já fez cavalgar na areia fina de um mar e amar nas madrugadas tragadas de alegrias que as alergias vazias nem sabem existir. No premir do futuro, o furo que há entre o mundo e a espera. Quem sabe a vida não se fará numa maternidade distante, na verdade parteiros casuais que nem sabem o que são amores feitos numa quinzena de cidades e dias em fervor. Assim esperemos entre ensimesmada saudade e a querência que só amor sabe escrever e descrever em linhas desalinhadas no seu torpor.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Tom Zé na furdência

 Por Ronaldo Faria

 


-- Amanhã é dia de birita. Segura a onda, Furdêncio...
Ninguém, na verdade, sabe como um pai e uma mãe põem o nome do filho de Furdêncio. Algo deve ter sido pra foder com a vida do rapaz. E o homem do cartório deveria estar nos dias de ligar um foda-se. “Querem essa merda, bosta seja feita”, pensou. Ele, o homenageado, sabe-se lá com o que, era operário de uma retífica. Mexia com motores, apesar de o seu estar na meia boca, quase parando. Seu amigo era Lupércio, da Silva. Apelido, Silva. Coisa sui generis, com certeza.
-- Furdêncio, você sabe que o dia seguinte é um maremoto quando a espuma da cerveja sobra além do explicável para a realidade... Haja ressaca.
Mas o operário cheio de questões e senões não está nem aí. O dia de agora foi de trampo além da conta diante das contas que estão sobre a mesa do barraco para pagar. “A tal de Serasa me salva desta vez?”– se questionava imperfeito e imprevisível. O importante não era o amanhã. Era o agora. A hora. A razão de viver os poucos segundos da tarde tardia. Acordara às quatro da manhã nas maltrapilhas horas da angústia e da sina. Pegou o trem da CPTM lotado como sempre, gente na frente, do lado e atrás de mais gente. Alguns já suados por antecedência. Outros a ressonarem como ninguém. “Pra puta que pariu nascer pobre”, pensou.
-- Furdêncio, você ouviu o que eu falei?
Silva era um chato bem aprumado. Crente da igreja de algum salvador da vida do pastor e da família e sua amante, ele acreditava que o importante era o instante da morte, quando encontraria o senhor a quem ele dedicou dízimos e crenças. Arrumadinho, indissolúvel na volatilidade da realidade, urgia de um porre redentor. “Senhor Manoel, traz uma água sem gás e natural” – pedia aos perdões para o dono do bar. A falta de uma exclamação na sentença já dá conta de quem ele era.
-- Silva, vai tomar no cu! Me deixa curtir minha vida medíocre e real!
No derredor de uma dor sem ninguém dar jeito, um fundo de bebida no copo reflete a cor que o sol brilha quente no logo depois. Não há como não amarelar sentimentos e se prostrar diante de si mesmo na busca volátil da felicidade que urge a pedir nova idade. Furdêncio, em sua imaginação que vaticina a sina dramática da apatia, projeta um futuro com salário melhor, uma mulher que fale igual a ele, um enredo de novela que o novelo da vida já diz degredado do destino.
-- Furdêncio, vou ter de ir. Tenho culto logo mais.
-- Vá com seu deus. Eu ficarei por aqui com meus demônios.
Na rua poeirenta sem a chuva que o céu faz questão de não dar, as pessoas se achegam ou se recolhem a depender de cada dor. Uma ou outra mulher cheirando a perfume performa com o corpo para garantir o almoço de depois e a janta acompanhada de um qualquer, a ser a si mesma, dona de seu corpo, seu desejo e querer. Furdêncio, sem saber que ele é que o coadjuvante da ação, acredita que o concreto de São Paulo deu um pulo na sua vida ávida de ser fina e bonita. Ledo engano. Cigano da felicidade, ele continuará a ouvir Tom Zé a dizer que “vendeu fiado pra Deus, vai receber depois da morte”.
No dia seguinte, um blogueiro barato e sem seguidores posta que um baiano morreu atropelado na esquina da Ipiranga com São João: “Ele parecia bêbado e a gritar que Furdêncio era o caralho. Que ele era um operário de motor a matar como uma motosserra as matas que escondiam sua quimera”. Na parada de sucesso, o DJ devaneia no verbo encarnado do sétimo dia.

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Parceiros e parcerias

Por Edmilson Siqueira




Há muitas histórias de parcerias na MPB. As famosas, como Tom e Vinícius, João Bosco e Aldir Blanc, Toquinho e Vinícius, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito e muitas outras, estão cheias de histórias, pois nem sempre as parcerias foram aquela coisa precisa, de um fazer a letra e outro a música, como é mais comum, ou um músico botar uma melodia num poema já feito. 
Há parcerias, por exemplo, que o autor da letra nem conhece o autor da música. Foi o que ocorreu com Vinícius de Moraes, quando recebeu uma visita no camarim de um show com muitos artistas. Era Gerson Conrad, de um grupo novo, que nem gravação tinha ainda. Gerson, nervoso diante do poeta, pediu licença para mostrar uma melodia que ele havia feito para um poema do mestre e, claro, "se ele não aprovasse...". Vinicius quis saber qual era o poema. "Rosa de Hiroshima", disse Gerson. Os olhos do poeta brilharam: "Senta aí, mostra como ficou". Ao ouvir a pungente melodia, os olhos de Vinicius se encheram de lágrimas, ele abraçou Gerson e disse: "Meu filho, essa música será um grande sucesso". E foi mesmo, no primeiro disco do grupo Secos & Molhados, que Gerson ajudara a criar, e na magnífica interpretação do "crooner" Ney Matogrosso.  
Chico e Jobim têm duas histórias boas. A primeira ocorreu com "Zíngaro", que Jobim havia feito e gravado com uma grande orquestra, numa igreja em Nova York. Ao fim da gravação, todos os músicos da orquestra, americanos, aplaudiram de pé o maestro pela beleza da melodia. Mas isso é outra história. 
Acontece que ele deu a música pro Chico botar uma letra e, alguns meses depois (Chico era devagar às vezes), ele apareceu com Retrato em Branco e Preto. A bela poesia convenceu Jobim ao ouvi-la cantada pelo próprio Chico. No fim, o nosso maestro soberano só teve um senão com a letra: "Chico, o correto não é retrato em preto e branco?" Chico respondeu: "É, Tom, mas aí eu vou ter de mudar a letra e vai ficar assim: 'Vou colecionar mais um tamanco, outro retrato em preto e branco, a maltratar meu coração...'". Jobim achou melhor não mudar.
Outra música que Jobim deu a Chico foi Wave, hoje um sucesso mundial. Chico ouviu a música na casa de Tom e, antes de levar a fita embora, cantarolou pro Tom: "Vou te contar..." A primeira frase estava feita. Só que o resto demorou. Demorou tanto que Jobim, precisando gravar, fez o resto da letra, gravou e jamais deu parceria pro Chico. Numa boa, claro, pois o próprio Chico contou a história rindo e, com certeza, com saudade do parceiro e amigo.  
Com o mesmo Chico, só que desta vez na companhia de Toquinho e Vinícius, ocorreu outra parceria curiosa. Estavam os três na casa do Chico e, ele e Toquinho estavam terminando uma composição. Assim que acabaram, mostraram pro poeta. Era Samba de Orly. Vinícius gostou da música, mas disse que a letra estava precisando de um "retoquinho". Os dois lhe deram a folha de papel com a letra que foi para um canto da casa. Voltou logo depois: "Só botei uma frase, no lugar de "pede perdão pela duração dessa temporada", mudei para "pede perdão pela omissão um tanto forçada". Os dois gostaram, pois era uma crítica mais explícita à ditadura militar que o Brasil vivia e da qual todos eles eram adversários.
Algum tempo depois, estão Toquinho e Chico no estúdio pra gravar o Samba de Orly. Estavam ainda ensaiando com o conjunto, quando o diretor da gravadora abre a porta e diz: "Para tudo. A censura cortou a letra, proibiu uma frase". "Que frase?", quiseram saber. "Omissão um tanto forçada não pode. Vocês têm de substituir". Chico e Toquinho se entreolharam e disseram que já tinham a frase reserva. Voltaria a letra original. Mas os dois resolveram avisar o poeta que a frase dele havia dançado. Toquinho ligou ali do estúdio mesmo: "Poetinha, a sua frase no Samba de Orly, a censura cortou". Vinícius ficou chateado: "Ah quer dizer que eu perdi a frase que botei?" Pois é, poeta, perdeu". Vinicius manteve a fleuma: "Bom, eu perdi a frase, mas não perdi a parceria, né?" Claro que não", respondeu Toquinho e ele e Chico mantiveram o nome do poeta como um dos autores da música. E fizeram o certo. A ditadura caiu, a censura acabou e a música foi regravada e é cantada por aí com a frase que Vinícius mudou.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...