terça-feira, 5 de março de 2024

À música de raiz enraizada na gente

 Por Ronaldo Faria


O rio parece seco. E está. Suas areias, alvas e em pequenos grãos, se espraiam no canto onde raízes de árvores viram lugar pra apenas se deitar. Numa dessas raízes um avô de pele morena e terno branco descansou para o sempre. No sempre que nesse mundo pode haver, um cão morreu de fome e sede a lhe esperar. No sertão carcomido de seca e esperança, a anca da mulher mostra que outra cria está para chegar e se aconchegar ou no berço de madeira barata ou no chão de terra que cobre o caixão tão pequeno que até uma criança pode levar. No solstício da lua, a fogueira brilha nas fagulhas que se espremem para no céu chegar. Mas qual, morre antes mesmo de esfriar o pouco de fogo que a fez surgir na morte do graveto púbere e cortado, roçado a foice afiada. Feito tocar de sanfona e alumiar breve e quente, desses que fazem dois corpos acasalar. Que une beijos e braços, acalanta no acalento o que só o acalanto dá. E esquenta na junção de carne molhada e requentada no calor que somente os corpos dão. Senão, que venha o espocar de fogos de artifício, no seu ofício de iluminar e clamar paixões. Daqui do chão, enfurnado em si, o poeta profetiza seu fim. No afim de um menino que se atira às tiras que são cortadas no carneiro que geme a morte vinda e jogada na gamela, o ruminar de um tempo envolto de cheiros e choros, gozos e afoitos poemas sem rima e fonemas. Todos famintos de retintos textos, escritos de sangue e saudade infinda. Na cacimba que faz o burro urrar de dor, a infértil poesia. A brincadeira declarada e descarada, descartada e arrotada de perfídias e pútridas flores que deixaram de nascer e ver o sol ungir de vida a mais escondida erva de esquina. Talvez no futuro, esse que não há, o choro das letras derramadas na tela que brilha far-se-ão meras feridas. Ganidos de cães e lágrimas de seus pais, na espera das cinzas se juntarem para o sempre que nada mais é do que um nunca mais.
 
II
 
O assovio que o vento traz, no pio da coruja enfurmada no seu toco que resiste à sana do homem devastador, rouba o silêncio que é excrecência da essência do milagre da vida. Quem sabe num canto qualquer o bêbado esteja agora a beber a infinda sede de nunca ser.
O cheiro que a madrugada denota, entre notas que flutuam ouvidos e vitrais abertos ao chegar, faz o fastio de uma fome intrínseca e seca secar. É certo que o amante irá beber sua sede de descobrir-se em mil copos que a cópula faz antever como o âmago do prazer.
O toque que o escuro denota perpétuo e obscuro é o descobrir que faz gozo e esperma escorrerem pela perna escondida no cobertor de um Opala de quase 50 anos atrás. Na pedra preciosa do sorriso da índia carioca, a oca do menino ainda só aprendiz e brejeiro.
O pensar de um além aquém de quem sabe ser algo que voa e avoa feito a vida diária e embriagada de inútil talvez e coração, foge de si. Afinal, sabe que só há passado entremeado de salpicos de presente dormente por saber que nunca será o futuro de si mesmo.
O ouvir de um porvir cansado de esperar seu chegar apenas brinca de parquinho. Do alto, um anjo chamado pelos poetas de anjinho bate as suas asas arquejadas do lumiar. Daqui, na vazia promessa que esquece a pressa, apenas verte um rio calado de ser real em versejar.


sexta-feira, 1 de março de 2024

Ao Quarteto Maogani

 Por Ronaldo Faria



 
Espera, esperança de que a esfera sem começo e fim eternize um dia o final enfim. Na beira da praia que se espraia feito conjunção de planetas e réquiens, homem e mulher se refazem de distância e inconstância terrena e extrema, coisa de poesia e paixão que não conjumina com a sina fatal. Nos acordes do violão, a canção altaneira prevê março de um 2024 que ainda não chegou. À chegança que a dissemelhança dá, balanço de ondas e o voar de areia fina se esgueiram feito peito nu ao vento nas falésias que veem de longe os peixes que se amam num reproduzir de barbatanas e guelras. As guerras, sem sentido, deixem para os ensandecidos de loucura a navegarem em portos extintos e retintos de sangue exangue de veias e vozes. Quem sabe um deles, bêbado de paixão, não se entregue à velha mulher de vestido abaixo dos pés que pede um dobrão para satisfazer o que marés e correntes marítimas não brindaram de rum e mezcal. Piratas de si mesmos, a esmo nas rotas que sereias e cobras imensas de um mar pequeno dão, a viajarem em pilhagens que nada mais são além de dobrões de prata e prantos de esposas e viúvas absortas nas luas que se esgueiram no céu e nas ruas que se desdobram feito véu negro e nenhum. Aqui, dois não é certeza de um mais um.
Espera, permanente hiato na sapiência que um algo chegará como interregno do amor maior, traz vazios inertes feito tesouros obscuros e soturnos, inenarráveis invólucros que anseiam apenas um seio para sorver e dormir sob a fronte saciada de prazer. A ver, a vastidão que nem mesmo os mapas mais corretos, feitos por astrolábios e sábios, podem delimitar fronteiras e continentes, entes surreais que brincam de forjar em si mesmos à mesmice da descrença crente e demente. “Nunca mintas para mim”, diz o navegador na dor de quem viajou continentes e nunca se encontrou nos cais que jogava as cordas de um barco há muito adernado. Com a luz das velas que morriam para dar luz à cena, a dançarina, quase menina em corpo de mulher, ria às gargalhadas a cada golfada que o poeta em festa da loucura dava. E revirava as pernas à mostra, arrumava descaradamente o vestido que teimava em cair e mostrar seus mamilos róseos e duros. No palco, na parcimônia que a amônia dá junto com o fumo de uma folha esverdeada queimada em delírios e rios de prazer, os músicos seguiam sua labuta. Na rima inconsequente que a poesia dá, alguns chamavam de bolero da p.... No exterior que o estertor da criação deixa, casais e maltrapilhos sem amor seguiam ladeira abaixo. Da plateia alguém grita: “Falta um baixista nessa baderna!”
 
II
 
Uma ostra, já morta e taciturna em seu velório próprio, no invólucro apropriado, guardado entre a areia e os corais, não vê o vento que envolve a vulva e o toque ereto do amante, arfante por dar prazer à amada. Feito fada, a lua faz prosa com a prosopopeia que o escritor nem sabe do que se trata. Nalgum lugar, a tragédia de alguma volúpia tratante do amor, estará a rezar seus terços e deixar suas troças a descer a rua onde paralelepípedos se unem para ver pés em frevo e beijos em enlevo, desses que a primeira vista dá mas não avisa daquilo que, anos mais tarde virá. No vórtice de algo qualquer, a mulher volteia suas saias mil, seus pudores, detratores da canção em unção da ferida que nunca fecha, na espreita da incólume fresta, a festa de pernas e chamegos, abraços suados e aconchegos, o descrente que faz da incógnita o final da inglória batalha sem fim. Mas, para a ostra que no seu ostracismo plúmbeo da morte nada sabe ou antevê, apenas no sal do mar e um ou outro peixe a nadar seu começo do limiar vê, tudo já se foi. Talvez seja esse o mistério etéreo da existência: a crença de se saber dono do seu nariz...

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Vejam e vivam...

 Por Ronaldo Faria


Vale a pena ver... muito a pena. Que chegue março com a marcha na quinta, sexta, sétima vida. Como um bicho de sete cabeças. https://www.youtube.com/watch?v=UdIRka0arFQ

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Dica tardia....

Por Ronaldo Faria

Descobri agora (em 11/10/2023) que o Carnaval já passou. Logo, minha dica ficou velha, mas vale para os próximos dias loucos e de músicas mil. Se não quiserem quebrar copos de estimação, bebam direto da lata. Eu aprendi hoje, tarde. Mas nunca parece tarde para se aprender se eu ainda estiver por aqui....

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Um monte de canções

 Por Ronaldo Faria



 
No mar as ondas brincam de coração, a ir e vir como o sangue que bombeia sem parar. No que há de fátuo, o fato incontestável de um dia ser, nem que em sonhos múltiplos e mutilados, calados, castrados, cansados de andanças sem ruas a caminhar, sem danças a rodar nos salões.
Embriagado de si mesmo, a brincar de cavaleiro solitário, o homem tropica e cai diante da bica seca que enche as bocas aflitas. Sem rumo, sem prumo, no devaneio que lhe acolhe em cada noite o travesseiro e o leva a sonhos loucos e cadafalsos, se vê só e sem ter porque viver. Do seu lado, a filha de cinzas o espera a olhar quieta com os olhos de DNA. “Ao menos num lugar de carinho poderei aportar”, diz pensar.
No asfalto sem vasto devaneio a viajar, o calor sobe telúrico e condensa no seu corpo o que resta de ácido úrico. O copo, quente e seco, sem bolhas a traduzirem o seu torpor, se esquece de ser vidro ou algo mais. O único abrigo no antigo peito do amigo já não há. O sol expulso por aqui talvez agora brilhe em Bagdá. Num lugar próximo os pais tentam colocar a cria a nanar. Melhor não tê-los, descobrir-se-á mais tarde, quando for tarde demais para se descobrir. Na curva glicêmica, um lugar de morte e paz. No mais, loucuras que certamente incriminam o cardeal primaz. Nalgum lugar, de muito tempo atrás, os maltrapilhos do amor buscam apenas vestes para seus corpos em pó e andrajos.
 
II
 
O amor e Laurinha na praia. As duas e crianças mais, entre os raios que o sol balança nos ventos da brisa. Corpos a buscarem um tanto de areia para os pés pisarem na quentura que o universo mistura entre esperança e verso. Ao longe, o homem ouve Rashid e a batida do rap. Na esquina, o casal se arrepia com o pio da coruja que se fez despertar com a sirene do carro de polícia. Certamente, na mente que agoniza em além-mar, o ausente sente o redescobrir da imaginação que exorciza. Na vida que se abre defronte de duas ruas, a vazante que derreia num congá acima das cabeças. Do alto, um raio brinca de alumiar o céu e desce para a terra em eletricidade que adormecerá a cidade, sem luz. Numa viagem própria, apropriada de si mesma, a vocalizar e verbalizar o silêncio, a insignificante orgia que se acaba em desmazelo. No colo da moradora de rua, a criança recém-nascida espera um pouco de zelo.
 
III
 
A regar um jardim seco e sem flores ou folhas mortas, sem plantas sequer, o homem sonha que a mulher que se esgueira em si mesma consiga romper seus grilhões e senões. Temporãos, os ínfimos toques de um dedilhar equânime de dois dedos se desvencilha da vida e encilha um cavalo para cavalgar por qualquer e ínfimo lugar. Nas patas que pranteiam os pântanos onde as sensações surgem num minuto atrás, o vento rompe a pele que foi feita para se beijar. Certamente no canto de um cântico milenar haverá um luar onde a esfera branca se tornará escuridão a tornear os corpos que se enroscam em desejos que esperam um único dia para rebrotar. A regar o jardim insólito e sórdido, o homem deixa se molhar. Quem sabe ele molhado não fará o único botão do lugar nascer? Camaleão na boca do leão do tempo, o resto que resta a se adequar na madrugada que pranteia a paixão afogada em oceanos de cada um.
 
IV
 
O bafo abafado, travestido e tragado se imiscui nas entranhas estranhas da solidão. E traz sonhos bisonhos, rostos risonhos, lábios famintos e famélicos, retintos à espera da saliva que reviverá o destino em pouca sina. De um lado, o sobrevivente. Do outro, a menina. Submissos aos signos, sexos e próprios tropeços. No horário marcado, tomar o remédio. Que tédio... Aos píncaros pródigos do nada, um oceano todo a se nadar. Seja o porto escondido aqui ou acolá. No cais, a prostituta, o marinheiro e o padre loquaz viram uma verborragia sem salamaleques ou frágeis perfumes a rolar na brisa que pernoita entre barcos afundados e barafundas do jamais... o adeus, como disse o poeta em nova geração, fica para nunca mais.
 
V
 
Retornar dias, meses e anos. Coisa difícil de rever. O tempo, saibam, não sai esbugalhado dos olhos cheios de lágrimas e louvor. Nem é oração que se diz ao alhures de alguém. O que se foi, mesmo logo ali na frente de nós, se foi. No momento que brinca de vento, que não se estoca nem no estoicismo do mais crente amante, o alento de que logo mais nada será. Nas galhardias vadias que se embaralham a cada dia, a soberania tardia do nunca mais se fará metonímia (seja lá o que isso for). Talvez um risco de lembrança que dança ainda criança nos últimos e ínfimos neurônios que permeiam doses alcoólicas e utópicas a crer se tornar dono do trono que há muito foi destronado. Calado, a colidir com o desejo e a ladeira abaixo, o poeta volta a Olinda, brinca em Caraíva, aporta em Porto de Galinhas, vislumbra um Itacaré no meio do Trancoso, retorna ao Rio que um janeiro qualquer joga as águas da Cascatinha para correr trilhos de trem quentes e cheios de medo. No bloco do recordar, sanfona bisonha se faz mistura de cuíca, pandeiro e ganzá. Méier, Madureira, Leblon que se esgueira. Desde menino misturado entre o Nordeste e a “cidade grande”, no cheiro do lampião de querosene e da luz que a eletricidade tudo tenta dar, vai-se o tempo, riscado de momentos, olhares, lamentos, unguentos, perdas e descobertas. Alguma fresta nas janelas, talvez. E se não houver, tanto faz. No cérebro que finda em si mesmo mil rimas e poesias métricas ou milimétricas, a mulher que surge e se insurge para arrancar a raiz nunca plantada. A emoção, púbere, fatiada. A tragédia que a comédia dá. A comédia que a tragédia faz. No ar, as notas e acordes acordam para, com certeza, não deixarem o tempo adormecer...
 
VI
 
Amigo, verbo fatídico. Tragicômico entre um ou outro trago. Canção de quatro. No amargo da cachaça ou do tremoço que o português vendeu estragado. Ao redor, um monte de gente que vomita aspargos e come grama pisada pelo gado. “Vai uma bagaceira aí?” A resposta na mente é “tome cuidado com essa caneta enlouquecida na conta”. Nas ruas que se aprumam perto, o desafeto descrê que o feto natimorto não fede igual ao chulé do Mané (não se leia aqui o Garrincha e suas pernas tortas). Isso é fato concreto. Há uma ladeira de eira e beira, janelas que não fecham nem com tramela, um quintal onde uma cabeça de boi se mistura a pichações e senões que batem de antemão num quem sabe e talvez. Nunca serão. Porque vidas não se escrevem com sonhos, não se entranham nas bucólicas saudades e, amiúde, viscerais e madrigais embustes, se enroscam nas roscas e rosas que desabrocham de quintais e padarias.
 
VII
 
Cantarolar e rodar, gargalhar feito doido, dedilhar sem dedos, cortados pela tristeza. Praguejar igual a um meliante arfante de um amor sem fim, entre o cheiro do jasmim e o vintém chinfrim. Percorrer e correr com medo do corrimão que se dá de antemão para quem ama demais. Frigir ovos de óvulos nunca fecundados, cacos de um copo dado pelo filho, fulgidos lumiares nunca vistos ou extintos. Com cortes na mão, melhor parar de delirar.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

O show, a mariposa e a morte

 Por Ronaldo Faria


Com espaços mil para cair, a mariposa resolveu se matar num copo de mexeriquinha. É muita sacanagem...

https://www.youtube.com/watch?v=mxGe-bH3ldw


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Cambadeando mineiramente

 Por Ronaldo Faria

 


Frases ditas e desditas, reconsideradas e caladas, em gritos passadas, embriagadas ou aflitas, tanto faz. Quem tem algo a dizer? Segundos são o melhor momento de devanear? No insano porvir do que nunca irá vir, a incerteza de ter feito o certo, se certo há no milagre da vida. E como nunca nada irá se ajeitar, que o tempo de cada um sobreviva ao seu etéreo e cansado lugar. Daqui, trôpego e louco, passo da eternidade ao lugar nunca agora... E que esse espaço seja logo ali, no nunca inexistente alvorecer.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Mais curto impossível

 Por Ronaldo Faria

 

Se ninguém vai ler, para que escrever? Saberemos lá... Saber-se-á. 

(No som da Cambada Mineira)


quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Pra Pedro parar por aí, mesmo sendo João

 Por Ronaldo Faria


“Mas, João Piedade, vai economizar logo na dentadura?”
A voz do protético entra por um ouvido, faz meia volta e volta e meia e sai pelo outro canal auditivo.
João, homem de poucos centavos, sertanejo acostumado a ver seu povo banguela, faz um sinal afirmativo. E sai a correr em suas saudades, dos tempos em que as abelhas africanas voavam sobre a sua cabeça. “Ainda bem que meu padrinho me avisou quando visse o enxame me jogar no chão e ficar quieto”. Não fizesse isso no passado sequer teria provido na mulher prenha um feto.
E proveu um bando de dez, oito vivos e dois mortos ainda antes de gente virar. “Sorte deles de não verem esse mundo girar”.
Em sua volta a feira fervilha. Moscas voam entre carnes dependuradas. No chão, cachorros esperam um sebo cair.
-- Vem minha gente, oxente que hoje é dia de economizar!
Para João Piedade, maldade só na cabeça dos outros. Outrora quis ser gente, dessas que consegue em verve ser Carnaval o ano inteiro. Virou quarta-feira de cinzas. Mas, tudo bem, sempre enganou o mundo naquilo que dizia ser.
-- Seu Clemêncio, põe duas doses de pinga aí. Uma pra mim, outra pro santo.
Na querência que a demência traz, tomou uma, duas, três, dez. Até o santo de coração seguiu cambaleante nas ruas estreitas da comunidade.
-- Obrigado Seu Clemêncio. Eu, embriagado, te proclamo aos céus!
Daí para a frente, nem o frontispício que mais se jogasse na arquitetura contemporânea iria saber ser. Na cama do hospital, na sorte de quem consegue sair da recepção antes de moer a vida e morrer, João Piedade, aquele que tinha tudo, menos maldade, dormiu o sono dos justos, na injustiça que a felicidade para poucos se dá.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Zeca e Bethânia

 Por Ronaldo Faria


Os dedos estalam no barulho de ossos que se despregam das mãos que a tudo escreve e descreve. Nas trevas que se escondem do passado, Santo Amaro e Xerém. Na ambiguidade da vida, nos olhos da mulher aflita, a fita que se desdobra infinita. Chega! – diz o homem mais uma vez. Naquilo que o passado passa em páginas repaginadas e sempre igual, a certeza de que vale mais o cifrão do que a emoção.
Onofre, coletor de restos da sociedade, lixeiro de profissão, ser vivente sem opção, sabe que nunca será o final feliz. Perto de se aposentar por não mais poder correr como antes, sabe que a sociedade logo esquecerá que a sua saciedade era apenas ser feliz. A grã-fina nunca será sua. Logo ele que sua para recolher os restos de camarões, vinhos importados, postas de salmão defumado. Quem mandou não estudar!
Mas Onofre, que os ditames do amor presumido diriam ser apenas um bofe, promete que irá continuar para um além-mar. Ao menos os dentes que faltam não precisará colocar. “Se não tenho a quem beijar, pra que o dinheiro mirrado gastar?” Na rua que o calor faz da clarividência algo claro que desnuda qualquer pretume, a vida se perpetua como a “puta”, nua, que ganha centavos em penduricalhos.
No subúrbio, desses que parece o inferno onde nem o Diabo aguentaria tanto calor, o trem transita entre a linha tênue da morte e da vida. Na batida do cartão, na subida do caminhão que fede de antemão, Onofre é rei e vassalo. Seu reino é um todo e nada. Na notívaga certeza de que a ilusão é mote que faz a rotina girar, no goró que agora faz agourar, vai ele a jogar no caminhão os sacos cheios de algo assim.
E assim, assassinado naquilo que acreditava ser felicidade, Onofre caminha no descaminho que o samba diz ser de amor e beija-flor. Mas ele resiste, riste, naquilo que se chama aos dias que ainda virão antes da eternidade. Na serenidade dos goles que entorna na imaginação, ele ao menos espera na milhar do gato um dia ganhar. “Quem sabe Maria daí não redescobre a paixão que um dia pensou poder me dar?”
Dentro do caminhão, o motorista perpétuo xinga Onofre que esqueceu uma caçamba esvaziar. “Puta que o pariu, quer nosso ganhão pão foder?” Ao derredor, a madrugada pede para viver... Em algum lugar a moça cheia de cifrões curte a sua dor.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Com Fernanda Takai...

 Por Ronaldo Faria

 


Borbotões de senões entre as borboletas que se esgueiram nas flores que floreiam jardim qualquer. Nua, a mulher margeia a verdade que inexiste na vida. Já o homem transita entre o trânsito louco de memórias e histórias mil. No ninho improvisado no concreto, a andorinha voa e vai e vem num vaivém para alimentar a prole de bicos abertos e sons de piados e pios. No parafuso mental que uma paráfrase (seja lá o que isso for) faz, a ilusória memória de tempos no atrás do detrás. Na demência da ausência que se debate entre vozes esquecidas e vinho, o ventilador de teto tateia as lembranças para revolver o que não há como resolver. Talvez um revólver, um fósforo incandescente, um exército de idiotas a gritar o simplório volver. No som que sai dos alto-falantes, Fernanda Takai pede um dia ao menos na vida do amor perene. Como fosse a volta do passado feliz e amargurado, o texto testemunha que folhas amareladas esmaecem ao sol que propõe tudo brilhar. Tudo a relembrar um dia, talvez. Na tez que amanheceu em dor, um porto tão longínquo como o de Fez. Aos náufragos das tormentas da vida, na frígida bem-aventurança que a loucura dá, talvez um pedaço de ilusão, uma calmaria que muda rotas e réstias (quando as velas da felicidade se recolhem em solidão), rostos em ritos de restos, porque não...

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Primavera à vera e Cazuza

 Por Ronaldo Faria



A Primavera está à vera a ver o calor que vem do céu e brota do chão. E respira quase por aparelhos parelhos entre a sanidade e saudade que estariam guardadas em algum lugar. Ao som de Cazuza, na quase penumbra do anoitecer que se faz a tecer na imensidão, surge Doralinda a ser amada de amor e paz. No quadrilátero que o ventilador transpira vento e fé, o poeta passeia ente si e o mundo. No balcão da eternidade, a pedra que é apenas vidro e parecia turmalina. No futuro, o furo do cheiro que se mistura em mar e creolina. Na janela aberta não resta nem uma nesga de claridade finda...

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

No passado passadio com Gil

Por Ronaldo Faria


Oitava lata nas oitivas da vida. Muito? Pouco? Que métrica dar-se-ia sobremaneira? Na insurgência dramatúrgica da falência da sobrevivência ainda prescrita, à proscrita saudação da mansidão desdita.
Mas o que é o passado? Um assado de churrasqueira que queima e faz o cheiro flutuar na beira da eira? Uma ínfima memória quando os quadros embriagados do pintor Fontanini já não têm dono vivo.
No insuficiente e demente se esgueirar às sombras que a luz de led dá, o passado se sobressai altaneiro e findo. Para ele só existirão imagens e vagens que ninguém, no menu da vida, quis provar e comer.
E se tivesse sido diferente? Quais referências teríamos? Não há o que pensar. Na incerteza do porvir, o por vir nada é. Transeuntes besuntados de algo talvez, sigamos a nossa estrada de ser alguém ou rês.
O poeta diz que o céu flutua. E nós, meros aprendizes, que vivemos sempre na lua? Como saberemos ter em vida a inócua imensidão? Na loucura existente desde a nascença, nos basta a frígida oração.
Daqui, na premente saudade da Bahia, à espera de comer um bacalhau com vinho guardado, vamos nos esgueirando a esmo sem solução. Que a pouca vida, ávida de qualquer coisa, seja ao menos de serventia. 

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Na noite com Bochecha

 Por Ronaldo Faria


Na comunidade, a sagacidade que não brota da cidade faz Jonathan, DJ do pedaço, dar um beijo em Jennifer, a menina mais linda do lugar. Num largar de têmporas e tempos inauditos, o desatino de um amor que a vida diz que deve ser só love. Na longitude que existe entre o nascer e o morrer de uma existência única e prematura, dessas que se atura por ter que ser, os dois se jogavam na ternura que a imaginação dá amiúde. Entre um e outro encontrar de pélvis e vida, se largavam em largas histórias de um mundo diferente. Na efeméride que a eternidade não dá, o barulho que explode no ouvido e vira gemido logo depois é o palco sentido. No após do que tiver de ser, a imensidão que a sofreguidão permeia entre a calcinha no chão e a meia descalça na sina. Nalgum lugar, no todo que as cinzas futuras trarão, há a clarividência de quem sabe que o universo está disperso no segundo próximo. Do palco, o cantor diz que o duplo sentido mora na favela. Nos brincos que se lambe na chupada do ouvido, a verdade intrínseca e seca da vida.
Quem logo abaixo, no asfalto, visse os dois não saberia o que dizer ou falar. Afinal, o amor não tem fórmula ou forma precisas. É apenas um apêndice sem nexo ou lugar. De repente, chega feito um clima que surge na urbe, essa coisa defeituosa e gostosa, harmoniosa na laje ou a descer no chão. Pra manter a rima vale falar de popozão? Jonathan e Jennifer não estavam nem aí. Para eles bastava a escuridão do salão. Entre um amasso e outro, no gasto do fato que virá fátuo, iam ao universo que nem o melhor verso traduz ou a retórica dá. O desejo e o amor em flor têm apenas um sentido, uniforme e volátil. Na clarividência que mil goles dão, os dois se transbordam de volúpia e sofreguidão. Lá embaixo, na loucura que o asfalto traz e dá, iguais gostariam de viver uma realidade de se tocar em si. Logo acima, no céu repleto de estrelas, a ilusão sobressai feito centelha. Certamente, naquilo que a mente ainda consegue fazer brilhar, o beijo dos dois se esvai. No mundo que parece um istmo de poucos abrolhos, os olhos de quem lê não sabe o sentido da enorme imensidão.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

A ver e ouvir Verônica Sabino mais uma vez

 Por Ronaldo Faria

 

Cansado da vida, magoado com o tempo que não lhe avisou que o derrear iria chegar, Raimundo andava de bar em bar na busca da cerveja gelada, da vida passada, da nostalgia que a orgia em devassidão um dia foi feita. Acobertado de um tempo que há muito se foi, mesmo que perdido entre medos e devaneios que chegam a cada copo perdido, o homem caminhava cambaleante nas esquinas que a própria sina ensinava que nunca mais deveria se emaranhar. Mas qual, sua decisão não era a errada e atávica sina do então. Há muito ele vivia entre o perdão e o senão. Misto de fugitivo e ser altivo na altivez que a loucura dá, à certa altura descobriu que o esmeril era cego e sem fogo a brilhar.

Do lado de lá, muito longe da paixão, perto de cifras e cifrões, ia Adélia, formosa passageira das tragédias que a vida dá. Não haveria como culpá-la daquilo que a loucura trouxe no berço da imensa e derradeira centelha que a loucura traduz em fim. Nua, a se despir de trajes e andrajos, a mulher vai a entortar suas lembranças e andanças, numa comiseração sem fim. Na perfídia que nem a ferida mais profunda traz, a tradução de um sonho que se abstrai. Atrás de tudo, no mais profundo e enigmático enfim, um conto que o tempo dá o desconto do encontro atrasado e calado na esquina antes da viagem tardia, a certeza de que o passado é um eterno retardo. Na história de cada um, aforismo de lugar nenhum.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...