terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Trio na mesa

 Por Ronaldo Faria


São duas da manhã. Na manha os três amigos discutiam política, religião, mulher e futebol. Ou seja, logo os temas que não se deve discutir nem sóbrio, quanto mais cheio de goró a descer a garganta.
-- É sério que você vai votar no Deoclécio?
-- Vou. E qual é o problema?
-- Qual é o problema? Ele é o maior 171 do pedaço...
-- E daí, quem não é?
-- O Florisvaldo não é!
-- Não é? Você tá de sacanagem... manda então o cara pagar o que deve na praça.
-- Deve pra quem, neném?
-- Se você não sabe, devo dizer que és um jumento de quatro patas. Cuidado pra não cair da cadeira. Eu não te levanto...
-- Repete que eu te parto os dentes!
-- Amigos, vamos falar do Brasileirão?
A voz de Clarimundo interrompe a discussão que avançava o relógio rumo ao PS mais próximo.
-- Tudo bem, desculpe a exaltação. Mas é que o Vergílio a defender o Deoclécio pirou a minha cabeça. Tem que ser muito bosta pra isso.
-- Como assim, Teixeira? Por acaso chupar os bagos do Florisvaldo é que é o certo?
-- Qualé, cuzão, vai encarar?
-- Moçada, vamos parar! Futebol! É hora do futebol!
-- Tudo bem, Clarimundo, tudo bem. Vocês viram a seleção?
-- Eu não.
-- Nem eu.
-- Fizeram bem. Coisa mais ruim e fora de propósito não existe. É um chiste. Também, depois que virou camisa oficial de um time deocleciano, não podia dar outra bosta.
-- Porra, cacete, de novo essa merda! A camisa da nossa seleção nunca será vermelha!
-- Puta que pariu, vocês dois: de novo essa merda? Paremos de falar de futebol! Vamos falar de religião. Quer dizer, melhor não. Um de vocês é macumbeiro e o é outro crente. Vai dar merda. Vamos falar de mulher. Concordam?
-- Tudo bem. Eu concordo.
-- Eu também.
-- Ótimo. Vocês viram a Maricotinha como está linda?
-- Maricotinha, a musa da vila?
-- Claro, ela.
-- Não acho tudo isso. A Carlota é bem mais mulherão.
-- Como assim, a Carlota só porque ela vota no Deoclécio?
-- Não, babaca, porque ela é referência além da questão.
-- Seu cu! Maricotinha é mil vezes mais mulher.
-- O quê? Quer voltar pra casa de ambulância ou no rabecão?
Sem mais o que apaziguar, Clarimundo levanta da mesa, paga sua parte na conta e parte morro acima. Puto da vida, repete como mantra que papo de birosca termina sempre em destino findo ou desatino. “Nem sei pra que insisto.” Mas, vielas acima, ouve um cavaquinho tocando e para no boteco do Ferreirinha. “Aqui ao menos tem samba”.
-- Seu Ferreira, traz a saideira pra mim. Chega de discutir...
Não deu meia hora de bom sossego, chegam Vergílio e Teixeira trôpegos e abraçados a cantar a canção de que amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito.
-- Ferreirinha, manda mais umas que o trio sentou de novo pra falar daquilo que é bom: política, religião, mulher e futebol! Mas sem Deoclécio e Florisvaldo. Afinal, no fim, é tudo mesmo só ladrão.
Aos risos altos, resenharam até o dia raiar. Sem política e religião. Só papo sobre mulher, abobrinhas e samba no pé.
 
(Com Luca Argel ao fundo)

domingo, 7 de dezembro de 2025

“Tony Bennett at Carnegie Hall”: um show que entrou para a história*

Por Edmilson Siqueira



O CD é duplo e contém nada menos  que 44 faixas.  O primeiro LP lançado era simples, com umas 12 música no máximo. O segundo já foi duplo, mas comportava apenas, somando os dois discos, 23 faixas. Esse CD é a mais completa versão do show de 1962, no icônico teatro de Nova York que se transformou num marco na tradição do songbook americano.  
Lançado em 1997 na Europa e nos Estados Unidos, o CD duplo chegou logo depois ao Brasil. Embora não haja uma data de lançamento no CD brasileiro, há, no folheto que o acompanha, uma curiosa propaganda da Sony, tentando vender um CD player, com controle remoto e duas caixas de som, muito bonito por sinal, e que poderia ser comprado através de um tal de Sony Card, com "5% de volta" (o termo "cash back" ainda não havia sido adotado por aqui). E um aviso: a oferta só valia até 31 de dezembro de 2001. Logo, o CD é anterior a essa data, obviamente.  
E foi em ótima hora que resolveram produzir um CD com muito mais músicas que cabiam num LP com o show (acho que completo) de Tony Bennett no Carnegie Hall. 
É que sua performance permanece como um dos registros ao vivo mais emblemáticos da carreira de Bennett. Ainda mais em juma época (início da década de 1960) em que o rock começava a redesenhar o cenário musical e o jazz vocal já não ocupava o centro das atenções, Bennett demonstrou, na noite de 9 de junho, que a interpretação refinada, o equilíbrio entre técnica e emoção e o contato íntimo com o repertório clássico podiam alcançar níveis extraordinários quando sustentados por uma presença artística genuína. 
O concerto foi idealizado pelo próprio Bennett e pelo maestro e arranjador Ralph Sharon. E foi pensado como uma síntese da versatilidade do cantor. Em vez de se limitar às canções que o haviam tornado um astro das paradas, Bennett estruturou o programa como uma verdadeira jornada musical, incluindo standards, números de jazz, baladas românticas, "spirituals" e até momentos de improvisação. Essa variedade, que poderia soar dispersa, ganha unidade justamente pelas ótimas interpretações de Bennett e pela excelente condução de Sharon.
Desde a abertura, com “Lullaby of Broadway”, o público é envolvido por um clima de celebração. Bennett canta com energia e com confiança explorando nuances dramáticas sem jamais perder a fluidez da frase.  
O show mostra também o excepcional profissionalismo de todos os envolvidos, com uma relação quase telepática entre cantor e orquestra que, por sinal, é uma excelente big band, com uma seção de metais afiada e arranjos brilhantes, criando um ambiente propício para Bennett exibir todo seu talento de intérprete. 
Entre os pontos altos do concerto está sua interpretação arrebatadora de “I Left My Heart in San Francisco”, então recém-lançada e não ainda o hino definitivo da cidade que se tornaria. No palco do Carnegie Hall, a canção ganha uma dimensão quase épica. Bennett explora a melodia com elegância, sustentando notas longas que revelam seu controle vocal e sua naturalidade para transmitir emoção sem artifícios. O público responde imediatamente, configurando um dos momentos mais emblemáticos já registrados em sua discografia. 
O público, aliás, é um caso à parte nesse dia: os aplausos acontecem em praticamente todos os inícios das músicas, aumentando bastante no final. Ou seja, há uma recepção calorosa ao cantor por um público que quer demostrar que realmente aprecia o artista e sua obra. 
Vale ressaltar ainda a importância do Ralph Sharon Trio dentro do concerto. O formato reduzido - piano, contrabaixo e bateria - aparece em momentos estratégicos, proporcionando proximidade e intimidade.  


O impacto do álbum vai além da performance impecável. "Tony Bennett at Carnegie Hall" exibe uma etapa decisiva da carreira do cantor, mostrando que a sofisticação do repertório tradicional podia conviver com a efervescência cultural da década de 1960. Mais que isso, o disco serviu como um marco de resistência estética: enquanto muitos artistas buscavam se adaptar às novas tendências, Bennett reafirmava sua identidade, apostando na permanência do bom gosto, da elegância e da qualidade musical. 
Tony Bennett, depois desse show, consolidou mais ainda sua carreira. Em 1962 ele estava com 36 anos. Pois viveu até 2023, se apresentando até poucos meses antes de sua morte, com uma carreira que beirou os 70 anos de grandes discos e grande performances nos palcos, além de discos fantásticos com outros cantores e cantoras. 
O destaque maior desse final de carreira, talvez seja seu último trabalho, com Lady Gaga que rendeu um grande disco. Sua última apresentação, aliás, foi com a cantora no Radio City Music Hall em agosto de 2021 em Nova York, no show "One Last Time". Há um vídeo desse show que mostra o encontro - emocionante - dos dois. O cantor morreu em casa na cidade de Nova York em 21 de julho de 2023 aos 96 anos.  

A lista das músicas do CD duplo é a seguinte:  
CD 1:
"Lullaby of Broadway" (Al Dubin, Harry Warren)  
"Just in Time" (Betty Comden, Adolph Green, Jule Styne)  
"All the Things You Are" (Oscar Hammerstein II, Jerome Kern)  
"Fascinating Rhythm" (George Gershwin, Ira Gershwin)  
"Stranger in Paradise" (Alexander Borodin, Robert Wright, George Forrest)  
"Our Love Is Here to Stay" (G. Gershwin, I. Gershwin)  
"Love Look Away" (Hammerstein, Rodgers)  
"Climb Ev'ry Mountain" (Hammerstein, Richard Rodgers)  
"Put on a Happy Face"/"Comes Once in a Lifetime" (Lee Adams, Charles Strouse)/(Comden, Green, Styne)  
"My Ship" (Kurt Weill, I. Gershwin)  
"Speak Low" (Weill, Ogden Nash)  
"Lost in the Stars" (Maxwell Anderson, Weill)  
"Always" (Irving Berlin)  
"Anything Goes" (Cole Porter)  
"Ol' Man River" (Hammerstein, Kern)  
"Lazy Afternoon" (John Latouche, Jerome Moross)  
"Sometimes I'm Happy (Sometimes I'm Blue)" (Irving Caesar, Clifford Grey, Vincent Youmans)  
"Have I Told You Lately?" (Harold Rome)  
"That Old Black Magic" (Harold Arlen, Johnny Mercer)  
"A Sleepin' Bee" (Arlen, Truman Capote)  
"I've Got the World on a String" (Arlen, Ted Koehler)  
"What Good Does It Do" (Arlen, Yip Harburg)  
"One for My Baby (And One More for the Road)" (Arlen, Mercer) 

CD 2:
-"This Could Be the Start of Something" (Steve Allen)  
"Without a Song" (Vincent Youmans, Billy Rose, Edward Eliscu)  
"Toot Toot Tootsie (Goodbye)" (Gus Kahn, Ernie Erdman, Dan Russo) – It  Amazes Me" (Cy Coleman, Carolyn Leigh)  
"Rules of the Road" (Coleman, Leigh)  
"Firefly" (Coleman, Leigh)  
"The Best Is Yet to Come" (Coleman, Leigh)  
"I Left My Heart in San Francisco" (George Cory, Douglas Cross)  
"How About You?"/"April in Paris" (Ralph Freed, Burton Lane)/(Vernon Duke, Harburg)  
"Chicago (That Toddlin' Town)" (Fred Fisher)  
"(In My) Solitude" (Eddie DeLange, Duke Ellington, Irving Mills)  
"I'm Just a Lucky So-and-So" (Mack David, Ellington)  
"Taking a Chance on Love" (Vernon Duke, Ted Fetter, John La Touche)  
"My Heart Tells Me (Should I Believe My Heart?)" (Gordon, Warren)  
"Pennies from Heaven" (Arthur Johnston, Johnny Burke)  
"Rags to Riches" (Richard Adler, Jerry Ross)  
"Blue Velvet" (Lee Morris, Bernie Wayne)  
"Smile" (Charles Chaplin, Geoffrey Claremont Parsons, John Turner)  
"Because of You" (Arthur Hammerstein, Dudley Wilkinson)  
"Sing You Sinners" (Sam Coslow, W. Frank Harling)  
"De Glory Road" (Clement Wood, Jacques Wolfe) 

O CD e os LP (simples e duplos) ainda podem ser comprados nos bons sites do ramo. E pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=Hzf1X4-_RXk&list=PLIJmYQvaDU3G4x_mpbfO8IXw3zmGxqA0K . 

*A pesquisa para este artigo teve auxilio da IA do ChetGPT.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Pro Jorge Mautner

  Por Ronaldo Faria


Comer nuvens de cor que alguém se esqueceu de por. Viajar no violino em desatino lisérgico e alérgico à tristeza. Brincar de dia azul mesmo com as queimadas que escurecem o céu em fumaça decrépita e fétida. Parar mais cedo com os alcaloides para sintonizar amanhã. “Estação PKR-1957 dá bom dia às plantinhas e aqueles que plantam bananeira na esquina.”
Cair de boca nas coisas que surgem em janeiro e morrem demenciadas em dezembro. E lá se foi outro ano. Na hecatombe que tiver passado, o passado temporal surge abrupto e tosco, tosquiado feito ovelha na máquina zero. Aos loucos e esotéricos, dançarinos dos bailes e perrengues, o par pede passagem para não morrer sem nunca ter voltado por lá.
Depois, brindar goles e golfadas na fantasia que traz azia e picardia. Andar na corda bamba que o bambolê da criança faz rodar em círculos ridículos para quem de fora vê. Ver-se nos versos de outrora como agora: ser abissal que nunca saiu da areia que a praia deixava. E levar para longe a caravela sem velas que teima em pegar tormentas e calmarias na busca do torpor.
Subir no foguete que fala com os animais. Ver a Terra além da estratosfera, onde a fera humana vira a mesma do animal, e sorrir com a bola que gira no espaço. No bagaço, bactéria vive e surge no papel almaço com seu almoço descerebrado. E chegar aos sete anéis de Saturno sem achar isso um absurdo. Afinal, tudo ainda voa e até parece balão.
Por fim, nos finalmentes do repente que deseja mais um gole e briga com a certeza do beijo, vicejos de vida longa e enlevo. No eclipse sozinho que percorre lua e sol com cuidado, a Babilônia fônica e atônita que a tônica com gim traz  para o lado. Perto e distante um povo evoca no maracatu atômico que há céu sem estrelas. No teclado as unhas afiadas se fiam em louvor a vencerem o tempo e a dor.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Na seta

 Por Ronaldo Faria


Seta, beta, meta, reta. Seja o rumo da lucidez ou do hospício. Auspiciosa e diretiva. Divisa entre o rumo e a esquina. Curso direcionado para a sina que se ensina no espaço da solidão. Harmonia e blasfêmia. Saudade da boca dela, no maior cacófato que isso possa ser. Pouco importa. Na porta, a saída e a entrada. Lá fora a bruxa briga com a fada. Uma quer a fogueira e a outra a foda. No calor tropical do inverno encravado no continente que fica ao sul de uma linha imaginária, a cena de brincar de se achegar. Tempo há e haverá, apesar do gosto oposto da brisa no rosto. Ainda teremos ondas, rotundas emoções, errôneas verdades. Na loucura catastrófica da mente, certeza ausente que voa em balão. Corpo aqui e desejo no Japão. Copo esvaziado no vazio da criação. Falange de deuses pretos no amor que só é bom se doer. Rememoração da ação esquecida em alfarrábios vagos e amarelados. Signos cravados no peito com bazófias e som de metal. Sem Natal. Na seta tem beta, meta e reta. Tem sonhos transversos e versos de poeta. Na estética estoica de saber sofrer e amar, versículos dos loucos desvairados. Prazeres nos azares tocados em alaúdes antes de irmos ao ataúde. No passado, psicodelismo da retórica que a história delimita em saudades e fados, passos de dança num salão vazio. Dependurada e pintada numa placa, a seta beta da meta reta está lá, no escuro obscuro do caos caótico do ateu católico. E lá ficará sem cabeça e touca. A ensinar o caminho da sanha que toda manhã resolve novamente trazer ao lugar.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Monk e Coltrane: um encontro histórico*

Por Edmilson Siqueira

 

Dia desse estive na casa do meu amigo Osny, que vive de vender discos pelo Mercado Livre. O motivo do encontro não era o mesmo de tantos outros (uma encomenda minha que eu iria buscar). Na verdade, era para pegar um presente. E que presente: um show da Nara Leão gravado em 1984 no Centro de Convivência Cultural. Vinte e uma músicas - talvez algumas inéditas, que ela nunca gravou. Sobre o disco da Nara eu conto depois que ele ainda tem história para acontecer.   
Pois, nessa visita, aproveitei para dar uma olhada na coleção de discos de jazz do Osny. Não são muitos, uns 400 talvez, o que é pouco perto dos milhares (e bota milhares nisso) espalhados em prateleiras por praticamente todos os cômodos da bela e grande casa em que ele e sua querida Marlene vivem, no Jardim Chapadão, em Campinas.  
Comecei a escolher alguns e quando vi já estava estourando o valor que eu pensei em gastar. Parei no sexto CD, um exemplar da Riverside Records, gravado na série Jazzland e lançado em 1961, com ninguém menos que Thelonious Monk (piano), John Coltrane e Coleman Hawkins (sax tenor), Ray Copeland (trompete), Gigi Gryce (sax alto), Wilbur Ware (baixo) e Art Blakey e Shadow Wilson (bateria). Ou seja, uma seleção do jazz dos anos 1950.   
As seis músicas do disco que juntas dão mais de 40 minutos, haviam sido gravadas quatro anos antes. E nem todas têm Monk e Thelonious juntos. Um pequeno aviso, na contracapa do CD avisa: "Quando Monk e Trane gastaram seis meses de 1957 trabalhando juntos no New York's Five Spot Cafe, ocorreu um evento histórico que certamente deveria ser exaustivamente gravado. Mas, conflitos extramusicais tornaram as gravações impossíveis, restando como únicas lembranças permanentes desses encontros memoráveis as três notáveis peças para quarteto que se destacam nesse álbum." 
Pois mesmo as gravações, que não foram concebidas como um álbum de estúdio, mas são uma compilação organizada a partir das sessões de 1957, são consideradas históricas, com seu valor artístico transcendendo qualquer contingência técnica. 
No vasto território do jazz norte-americano, poucos encontros carregam a aura mítica que envolve a breve, porém decisiva, colaboração entre Thelonious Monk e John Coltrane. O álbum Thelonious Monk and John Coltrane, lançado em 1961, sintetiza um período de profunda transformação para ambos os músicos e registra, ainda que em forma fragmentada, a química singular entre dois dos arquitetos do jazz moderno. Embora não se trate de um registro de estúdio concebido como álbum, mas de uma compilação organizada a partir de sessões de 1957, seu valor histórico e artístico transcende qualquer contingência técnica. 
À época, Monk estava afastado do circuito musical por problemas com a polícia e dificuldades de trabalho. Ele havia recuperado sua licença de músico e reassumido seu posto como um dos pianistas, dos mais originais, diga-se, do bebop. Coltrane, por sua vez, vivia uma fase de reconstrução pessoal e artística após ser afastado do quinteto de Miles Davis devido ao uso excessivo de drogas. O convite de Monk para integrar seu grupo no Five Spot Cafe, em Nova York, foi a oportunidade que Coltrane precisava: era a chance de voltar ao trabalho e, quem sabe, desenvolver o estilo que marcaria sua fase de maturidade. 
E a coisa começou a dar muito certo logo de cara. A simbiose entre os dois aparece com força nas faixas reunidas no álbum. Monk, com seu toque percussivo ao piano, acordes angulares e silêncios estratégicos, cria um terreno fértil no qual Coltrane encontra espaço para explorar longas linhas melódicas que parecem se estender ao infinito. A tensão entre a economia do pianista e a exuberância melódica do saxofonista produz um diálogo inusitado e harmônico que é, ao mesmo tempo, rigoroso e imprevisível. Há uma espécie de desafio entre eles, mas sem momentos de aspereza e sim de notórios incentivos.  


Faixas como “Ruby, My Dear” revelam o lirismo oculto na obra de Monk, frequentemente percebida como cerebral. Coltrane, aqui, soa contido e profundamente expressivo, desenhando frases cuidadosas que se apoiam na delicadeza da melodia original. Já em “Trinkle, Tinkle”, o saxofonista enfrenta uma das composições mais intrincadas de Monk com destreza notável, mostrando a rapidez rítmica e a firmeza técnica que o caracterizariam em sua fase posterior com o quarteto clássico. A faixa evidencia o quanto Coltrane absorveu a lógica estrutural de Monk, mesmo quando parecia operar em um universo expressivo diferente.
O álbum inclui gravações do quarteto de Monk sem Coltrane, o que pode parecer dispersivo, mas oferece um retrato mais completo daquele período. Nessas faixas, o ouvinte tem a chance de apreciar o piano de Monk com mais espaço, exibindo suas idiossincrasias rítmicas e harmônicas de forma ainda mais transparente.  
O pequeno trabalho que sobrou entre os dois, passado tanto tempo da gravação, permanece, segundo a crítica, como um documento essencial para compreender a metamorfose do jazz nos anos 1950. Ele captura Coltrane no processo de desenvolver seu “sheets of sound”, técnica que combinava velocidade extrema, encadeamento de arpejos e exploração profunda da harmonia. Ao mesmo tempo, mostra Monk em um dos períodos mais criativos de sua carreira, reafirmando-se não apenas como compositor singular, mas como improvisador de lógica interna absolutamente única. 
O fascínio do álbum reside também, no fato de que Monk e Coltrane se encontraram em um ponto raro em que suas trajetórias, tão distintas, se tornaram mutuamente necessárias. A disciplina e o rigor estrutural de Monk forneceram o arcabouço ideal para que Coltrane consolidasse sua abordagem harmônica; a intensidade e a busca espiritual do saxofonista, por sua vez, abriram novas possibilidades para a obra de Monk, revelando nuances que muitas vezes passavam despercebidas. 
Mais de seis décadas depois de seu lançamento, o álbum continua sendo uma audição indispensável para quem busca compreender não apenas a obra desses dois gigantes, mas o próprio desenvolvimento do jazz moderno. 
Além das duas músicas citadas, o disco tem ainda "Off Minor", "Nutty", "Epistrophy" e "Functional". Todas as músicas foram compostas por Thelonious Monk. 
O disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=6DVvvphPXq0&list=PLL-NbN8uTOigEWB_YxFEI_WCPHeACQ5Su . 
E pode ser adquirido no Mercado Livre e em outros sites de vendas. O preço é meio salgado, pois o CD é meio raro (mais de R$ 200). Já o LP de vinil, lacrado, também está à venda por um preço mais elevado ainda (R$ 450). 

*A pesquisa deste artigo teve o auxílio da IA do ChatGPT.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Casa sem pressa (longevos tempos de república)

 Por Ronaldo Faria


Caminhos que não desfiz
saudades que não compus
tempos que nunca se foram
gente passou e chegou
viagens loucas e breves
no chão, no ar e no mar
tudo era imaginação
a qualquer tempo
em qualquer lugar
Quem sabe o que se perdeu
no tanto que se embriagou
de ilusões e lembranças
que o tempo até hoje deixou
No universo concreto
que na canção se desfaz
sementes lançadas ao vento
de afeto, abraços e paz
Carícias que não se desmancham, envoltas num véu que seduz
e bocas que se entregavam, em beijos banhados no mel
Oh casa cheia de luzes na pele e no louco céu
Hoje eu sou um poeta
a dedilhar a canção
para embalar essa festa
cheia de humor e emoção
Cidades foram e ficaram
saudades tantas por vir
afinal, o tempo brinca de ir e vir
e resolveu parar nestas notas aqui
e reviver tanta gente, no abraço e na canção
pois nesta casa sem pressa quem manda é o coração

sábado, 29 de novembro de 2025

Ao Gumex

Por Ronaldo Faria


Gumercindo, com gumex no cabelo, esperava Esmeralda chegar. Já tinha consumido algumas cervejas e outra brejas (redundantes). No boteco no Largo da Glória, estupefato com o tanto de bondes que bandeavam de lá, ele rodeava os olhos nas mesas pra ver se via a amada. Mas qual, certamente ela deve ter perdido a condução na Gamboa. E o Rio de Janeiro, para os poetas e loucos ainda brejeiro, tinha gente de navalha em cada esquina para levar pertences de gente despreocupada com os batedores de carteiras. Na terra abençoada por Deus com um Cristo que se diz redentor a receber visitas e turistas, Gumercindo ia a viver seus dias de capital federal de felizes vozes embriagadas e corpos de mulheres vestidas de duas peças. “Vou esperar um pouco mais. Ela vai chegar, tenho certeza. As flores que lhe enviei haverão de mexer com seu coração.”
-- Seu Gumercindo, estamos fechando o bar. O senhor quer algo mais pra levar?
-- Não, Gonzaga. Muito obrigado. Pode trazer a dolorosa.
Pagou a conta que despontava como boa para o português dono da bagaçada, deu boa noite e saiu no seu caminhar trôpego de funcionário público de repartição. Viu que a lua estava fraca, minguante. Os postes acesos brilhavam mais do que ela. O guarda de quarteirão lhe dá boa noite. Era o Percival, há muito dono do espaço. Substituiu o Pascácio, aposentado por perder a visão. Teve catarata sem nunca ter ido à Floresta da Tijuca ver a Cascatinha. Era gente boa. Morava em Vicente de Carvalho, longe pra caralho. Mas nunca faltou no batente e conhecia toda a gente.
-- Um bom resto de trabalho pra você, Percival...
Gumercindo entrou na pensão, foi direto ao seu quarto e fez chá de hortelã para dormir melhor. Logo cedo terá que ir de bonde à repartição. E o motorneiro, Seu Walfrido da Silva, não perdia a hora. Era mais certo que o relógio cuco que badalava a cada minuto na pensão. “Vamos dormir. Amanhã eu vejo o que aconteceu com a Esmeralda”. E logo lhe chegou o sono. Enternecido de goles a mais, vieram-lhe os pesadelos e desmazelos de quem dorme sabendo que não irá sonhar. Acordou no dia seguinte e leu a manchete do jornal que chegou à mesa na procuradoria federal “Mulher foge com o palhaço do circo soviético”. A partir daí virou radical, se vestiu de verde e se tornou integralista até a última redoma da alma. Morreu só, anos depois, no quarto pequeno no Centro da cidade. Gonzaga, o garçom, Percival o guarda de quarteirão, e o português dono do boteco foram acompanhar o enterro. “Perdi um grande cliente. Que Deus esteja ciente disso e me dê outro”, pensou o lusitano antes do caixão baixar em sete palmos contados a dedo. Defronte do cemitério do Caju, um moleque solta pipa sem dar atenção a tão pouco dramalhão. Ao fim, o fim de outra visão.

(Ao som de Luiz Melodia)

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Pataquada

 Por Ronaldo Faria


Chegou chegando. Traquinando, até. Menino que sempre foi e é, audaz e louco, fora da órbita terrestre, sempre em teste, presto, vaticinou o próprio destino: ser, escrever, beber, ver, rever, acordar e adormecer. Crer e descrer. Embriagar-se na hora cronológica e certa de enlouquecer. Encontrar o equilíbrio sísmico de si e continuar a trilhar nas letras negras que invadem a brancura da tela desmiolada e desmedida. Ou seja, verdadeira pataquada. Consternada, a vida aceitou que Lautério vivesse sem critério. Afinal, um a mais em vários bilhões sobre a Terra, que problema em se esquecer dele num planeta em farsa e falsetes diários? O Criador (o tal que veste milhares de vestes às inúmeras religiões de poucos e tantos menos) resolveu cravar na aposta de deixar o bicho solto. Mas, dizem alguns, ele sussurrou “que bosta”. Lautério, um impropério secular de vilipêndios em compêndios que ninguém nunca leu, vivia ao léu, lisérgico e deletério. Já perto da curva do rio ou do cabo de alguma esperança, queria apenas não ter pena de si mesmo. “Caralho, no calhamaço de papel consumido no tempo há coisa insone mesmo a dormir na escuridão.”
 
II
 
Vilmar e Conceição subiam e desciam as ladeiras de Olinda na infinda busca do amor. Cruzavam-se muitas vezes, mas na pressa de caminhar sem parar no ritmo da tarde nem atentavam em se ver. O silêncio dos passos nas pedras centenárias onde blocos de frevo dançavam a cada Carnaval era maior que o desejo dos dois. Déspotas do futuro em augúrios que talvez nunca existissem, nem sabiam que o agora era o que se foi e o depois algo que nunca virá. Alhures tecer as cores do céu, seguiam livres e apostatas às próprias vidas em purpurinas e sinas mil. Eram poesia e ensandecidas lavras tardias. Composições bisonhas de canções enternecidas, fugazes olhares e brincadeiras benfazejas. Ida e volta, horas partidas e urdidas nas ardidas saudades da poesia. E assim o foram na madrugada tardia e na orgia, quando pararam, se viram e viraram um apenas. Ao redor, a rodar sombrinhas coloridas, lamúrias de lamentos benfazejos como uma desbotada fotografia.
 
III
 
Candelabros e descalabros vão passar. Por ferrugem, falta de energia ou coisa pra se falar. Na Polinésia a inércia é olhar o mar. No Interior do planeta, as matas brincam de respirar. E como diria o poeta, “todas as coisas do mundo correm pro mesmo lugar”. De lá ou de cá.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Com Donato, Shank e Valença (ou vale o que está escrito)

 Por Ronaldo Faria


O som que vem do bar rompe a avenida e chega no mar. Entre as paredes de concreto e as mesas cheias de casais que se enroscam em palavras e promessas, o pianista divide o palco com saxofone e bateria. No asfalto, um ou outro carro cumpre seu limite de velocidade. Já na areia fria pela noite que cheira brisa e paz, João e Rebeca brincam de fim do próximo segundo que se tornou passado em frações de segundos. Súbitos, súditos de seu amor, etéreos na terra que gira na rotação derradeira, fazem da areia seu universo de versos finais. Logo mais estarão em beijos mil, carícias servis, descobertas refeitas com as cobertas jogadas no chão.
No piano, altiplano da troca de emoções e canções, malabarismos de paródias que não acabam se acercam de sonhos e bisonhos desejos ensejados no cadafalso que leva o amor ao coração. Há luar e estrelas, nuvens raras e secas de pingos futuros, bêbados diuturnos até. Tem também catadores de lixo, pombas que teimam em vasculhar a sujeira da areia, poetas e proxenetas. Cansados amantes à espera do primeiro raio solar, notívagos que decidiram madrugar, operários e faxineiras que despencam do ônibus no seu eterno trilhar. Há ainda o cachorro de rua, que vira a última lata para sobreviver, a uivar e acreditar num lar.
No bar o garçom fecha a última conta: “Deu R$ 220,00 sem os dez por cento.” Na dicotomia do destino, desatino cretino dos loucos e vespertinos, um transeunte que transita sem rumo diz adeus à vida ao se jogar diante do circular. “Porra, fodeu geral. Agora vem a polícia, a perícia e o escambau. Até chegar o próximo ônibus eu já atrasei geral” – vociferava Marcondes que vai chegar tarde no turno da fábrica de metal fundido. “Estou fodido” – sentencia. Perto das ondas que enchem de espuma a bruma geral, João e Rebeca ouvem o barulho do atropelamento, o lamento dos passageiros e até a sentença do motorista: “Esse merda se jogou na frente...” Mas qual, cada um com seu cada qual. No sol que surge do horizonte, as línguas dos dois dão o cúmplice recado ao mundo: Lei de Muricy... cada um que trate de si.

domingo, 23 de novembro de 2025

O nascimento da MPB

Por Edmilson Siqueira

"Prepare Seu Coração". Não, não se trata de um artigo sobre a famosa música de Geraldo Vandré e Theo de Barros, mas sim do título de um livro que estou lendo. Seu autor pode não ser conhecido das novas gerações e, mesmo os de gerações as mais velhas, como eu, talvez se lembrem dele como um produtor de televisão, de musicais e festivais de televisão.  

Trata-se de Solano Ribeiro, uma figura onipresente nos anos 1960 e 1970 na cena teatral e musical brasileira, desde os primórdios da bossa nova, dos teatros de opinião, dos festivais da Excelsior, da Record, da Tupi e da Globo, além de inúmeros shows que fizeram história na cultura brasileira.  
Lançado em 2018 pela Editora Kuarup, o livro tem o subtítulo "Histórias da MPB" e ela realmente faz parte da maioria das histórias que ele conta. Mas, sua pequena autobiografia com a qual inicia os trabalhos, mostra sua participação em tudo que se estava fazendo de novidade nos anos 1960 tanto no teatro, quanto na música.   
Solano Ribeiro conheceu os baianos Gil, Caetano, Gal Costa e Bethânia quando todos eles ainda estavam na Bahia; fez teatro com Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri; frequentou o famoso Beco das Garrafas, onde a bossa nova dava seus primeiros passos; trabalhou com Lennie Dale, um gênio da dança e foi namorado, por breve tempo, de Elis Regina, quando ela ainda era a cantora de "Menino das Laranjas", seu primeiro sucesso depois que aderiu à nova MPB.  
Ele mesmo escreve, num resumo de sua vida artística no final do livro: "Depois de um início barulhento no pequeno Teatro de Arena e de alguns "especiais" com a Bossa Paulista e um mix entre cariocas e paulistas, no Teatro Cultura Artística, em 1965, lancei o Festival Nacional da Música Popular Brasileira, da TV Excelsior, que revelou Elis Regina, deu origem à sigla MPB e foi embrião do mais importante movimento musical do país. Os Festivais da Record de 1966, 1967 e 1968, com uma Bienal do Samba no meio-dia, serviram de palco para novas tendências, experimentações e ousadias que emocionaram o país que parava para ouvir e ver a MPB passar. A música popular superou o futebol. A final do Festival de 1967 acusou o índice de 97% de audiência." 


Boa parte do livro se desenvolve nesse clima de competições musicais a ascensão da Rede Globo e o declínio de outras emissoras também é contado, sempre do ponto de vista musical. Outra parte acontece após os festivais, com a Globo e suas emissoras crescendo, o aparecimento da Som Livre, e a internacionalização da música. 
Mas, todas as histórias que o autor conta, com exceção de algumas no início do livro, se passam sob a ditadura militar, que começou em abril de 1964. E muitos artistas eram perseguidos pelo regime, cuja censura se acentuou fortemente a partir de 1968, com o AI-5.  
Assim, os festivais ocorriam sob forte tensão. Como exemplo, há um capítulo no livro que trata do III Festival Internacional da Canção, da Globo, que ocorreu justamente no ano de 1968, um pouco antes do AI5 acabar de vez a possibilidade de liberdade artísticas - e outras liberdades também - no Brasil. 
Depois de contar como as canções chegaram à finalíssima brasileira que iria concorrer depois com as do exterior, ele escreve: 

"A final nacional do III FIC no Maracanãzinho, apresentava mais um confronto estético-ideológico. Vandré, hábil manipulador do senso político e emocional das plateias, classificado em São Paulo, se apresentava no palco imenso daquele ginásio par 30 mil pessoas sozinho com um violão. Contra seu principal rival, Tom Jobim, acompanhado de Chico Buarque, alguns Caymmis, o Quarteto em Cy e grande orquestra, além da preferência da direção da Rede Globo advertida pelos militares de que, caminhando e cantando que soldados morriam pela pátria vivendo sem razão, o Vandré não podia ganhar e a Globo, que sempre fazia a hora, não podia deixar acontecer: 
- De jeito nenhum. Segurança Nacional. É uma ordem e pronto. 


Não deu outra. Geraldo Vandré arrasou, mas o esperado aconteceu: "Sabiá"na cabeça. Vitória para Tom Jobim e Chico Buarque. Vais, várias vaias. E o Vandré, na posição de vítima em que adorava estar, discursou para a galera inconformada e ruidosa: 
- Perdoai-os, pois a vida não se resume a festivais." 
Para quem não sabe, depois do festival, com a chegada do AI-5, Caetano e Gil foram presos sem acusação formal e tiveram de sair do país, indo pra Inglaterra. Vandré saiu do país, ajudado, segundo consta, diz o autor do livro, pelo seu grande amigo, o então governador de São Paulo, Abreu Sodré. Chico Buarque, proibido de se apresentar no Brasil, foi para a Itália. Edu Lobo e Carlinhos Lira, para os Estados Unidos.  
O livro traz fatos históricos da música na visão da um dos personagens de praticamente tudo que aconteceu naqueles conturbados e criativos anos. 
"Prepare Seu Coração" está à venda nos bons sites do ramo e livrarias. 

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Pela estrada

Por Ronaldo Faria


A estrada de poeira estava, pra variar, poeirenta. A tropa de bois passava compassada para se ver depois compadecida no matadouro, mesmo sem saber que a caminhada era para a morte. O sol inclemente e solar, cheio de calor e luz, batia na cabeça de Clemente. Boiadeiro e estradeiro desde que rolou na placenta da mãe, com algibeira e roupa de couro, tinha na profissão o sustento de Filomena e das nove crias paridas e criadas. Da corrida na estrada tortuosa, sem corredeiras de riachos ou copos com água, tirava cada centavo e seus parcos avos que a venda lhe cobrava por saco de farinha ou pedaço de carne que secou ao sol por dias.
Mas Clemente não era triste. Tinha o sorriso estampado nos dentes que lhe sobravam. Na pele morena (esturricada para quem não conhece a cor do sertanejo), cabelos desgrenhados pelas corridas do cavalo na caatinga, olhos marejados pelo pó que subia, era guardião dos tempos de outrora e da aurora da vida. No lavradio corria fosse noite ou fosse dia. Nas intempéries da vida percorria o destino como acauã a cantar seus lamentos surdos no sonhar da incerteza morta detrás da porta. Ao desatino da saudade, praguejo e veleidade. Afinal, quando a boiada estivesse entregue ao seu destino final, os braços de Filomena seriam o último fonema dito e fatal.
-- Clemente, vamos parar na casa das primas para dar uma pausa nesse sofrimento?
-- Pode ir, Tazinho. Vou armar uma rede entre essas duas galhadas e ver a saudade destrinchar.
No mundo que se arvora imenso, escuro e incerto, de presto a luzir feito o céu escuro do sertão, Clemente tinha na memória o cheiro de querosene a queimar entre telhas de barro e alpendres onde se foge do sol durante a rotação do dia em leilão. Via cada filho, macho ou fêmea, a correr aos seus braços em abraços de cumplicidade, sentia o prato de favas cozidas a descer garganta e lembranças, retornava à infância perdida. Queimava o chão cansado de brotar, buscava formigas de asas, tanajuras, para espetar em gravetos secos, via a paz nunca derrear. E sabia que se mais tivesse vivido, mais teria existido.
Na casa onde um lampião coberto de celofane vermelho brilhava, Tazinho tonteava de corpo em corpo. E roçava nas pernas, se entregava aos seios solícitos, beijava bocas ávidas e brincava de ser amado nem que fosse naquela só noite. A cada um, a unicidade de ímpias vontades e veleidades. Tudo no transbordar de efêmeras blasfêmias que dizemos ao vento e nos arrependemos logo depois. Enfim, como todo fim que nos é dado de fato, Clemente vê-se de novo entregue à Filomena. Junção de todo fonema que ama, percorre os últimos quilômetros que o separam do seu amor. Ao chegar, enxerga a amada vestida de chita florida, um tanto encardida pelo tempo, mas reluzente à visão do trôpego e sôfrego boiadeiro que acabara de chegar. Num pé de mandacaru, a se livrar dos espinhos, um carcará espera apenas o burrego fraco morrer. Já o homem desfalece em amor o tempo que vive.
 
(Com Xangai e Renato Teixeira)

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Ao tijucano interplanetário Jards Macalé

Por Ronaldo Faria

O violão se cala de tristeza nas mãos do poema. E embaralha vozes e trovas nas covas entreabertas da madrugada. Nas trevas, entravadas e entregues das ruas da Tijuca, o samba se enturma nas coxas daquela que se atira ao dito ritmo. No rumo do poste rodeado de insetos à busca de calor, o homem bambeia de lá pra cá e até dali por acolá. A noite cauterizada ninguém vai calar. Nas pedras que se acolhem num nome pomposo de paralelepípedo, retas e perpendiculares, onde pares pulam em festa, casais caminham de mãos dadas. No céu há quem diga que vê fadas.

Mas o violão, calado e cansado de tocar magia e sonoridade, está surdo e mudo. Catatônico feito o velho nonagenário que bebe seu xarope tônico. Dicotômico, o poeta fica à espera da quarta-feira para encher de dedos as páginas brancas, quase tântricas. Em cada dedo existirá um pouco de letra perdida, sumida na cabeça que roda sem parar. No automóvel que rompe o silêncio sepulcral que cala bocas e gestos, um ou outro ser em descalabro e gelado porvir. No telhado, gatos espocam em gemidos cálidos seus pulos de muro em muros. Na árvore as folhas despetalam em mil talos.

O violão, porém, no contudo que só o entretanto se faz em toda a via, descansa num canto da sala. Falta-lhe as mãos que o encheram de brincadeiras e tons nas mais diversas tonalidades. As cores que teciam suas cordas de música e emoções viraram unções na dramaturgia que é a vida ao fechar as cortinas. No fim da estrada talvez um lampejo de morte ou angina. Com sorte, talvez lhe chegue uma consorte cheia de carinhos e aninhos. E acolha na colher da volta as estranhas entranhas do destino daquilo que tiver de ter sido. Na sombra do fim, nos resta em réstias só o olhar a ver-se fito.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Mais histórias da MPB

Por Edmilson Siqueira

Nesses tempos de podcasts adoidados por aí, quem tem tempo como eu de ficar pescando histórias de artistas da música no micro, acaba conhecendo muita coisa que, depois, embasam, muitas vezes, bons papos sobre a arte de compor e cantar e abastecem alguns artigos deste blog.   
Dias desses, Djavan contou que a música "Oceano" já tinha sido iniciada há um bom tempo, mas que ele tem mania de começar alguma coisa e depois deixar de lado, esquecer que fez, mas que deixa tudo gravado. Um dia, ele estava em Los Angeles gravando, quando sua filha ligou e disse para ele escutar o algo que ela havia descoberto numa das fitas gravadas por ele. E tocou o início de "Oceano", com o próprio cantando, claro, só que em espanhol. Espanhol? Pois é, ele não disse por que estava em espanhol, mas achou lindo aquele começo - na verdade era só a primeira fase que estava gravada - e quando voltou se atirou nela. O resultado, todos sabem: um dos maiores sucessos do moço. Só que ele contou mais um detalhe. Após a gravação, o produtor Mazzola achou que caberia ali um violão espanhol. E chamou, para espanto de Djavan, ninguém menos que Paco de Lucia. Quando o espanhol ouviu a música, disse pra Djavan: "Essa música tem muita harmonia e eu só conheço três". Djavan sorriu e disse: "Então vai lá e faz o que você conhece". E, claro, ficou lindo o solo do violão. 
Outro podcast delicioso para quem gosta de música é "Um Café Lá Em Casa", do grande Nelson Faria. Ali, a união da música com a entrevista que ele faz com os convidados, é um prato cheio de prazer para os curiosos como eu e para os ouvidos de quem aprecia boa música. O próprio Faria, um grande violonista e guitarrista, acompanha, meio que no improviso (ele é um grande jazzista) seus convidados, em versões únicas de grandes músicas.  
Dia desses, assistindo ao programa no YouTube, onde a convidada era ninguém menos que Rosa Passos, fiquei sabendo que ela estava "programada" para ser pianista. Estava aprendendo, indo muito bem, até que um dia lhe caiu nas mãos um compacto duplo (para os mais novos, era um disquinho com duas músicas de cada lado) com parte da trilha sonora do filme "Orfeu do Carnaval", cantadas por ninguém menos que João Gilberto e seu violão. Rosa conta que foi sua irmã maios velha quem comprou o disco. "Quando ela botou na vitrola e eu comecei a ouvir, meu mundo parou. Eu fiquei assim hipnotizada pela forma com que João Gilberto cantava e tocava violão. E disse pra mim mesma: é isso! É isso que eu preciso!". Foi aprender violão e deixou o piano de lado. Detalhe: Rosa Passos tinha 11 anos.  


No mesmo "Um Café Lá Em Casa", gravado há quatro anos, encontramos, num bate-papo super descontraído o já saudoso Lô Borges. E ele conta muita coisa em mais de uma hora de programa, desde a origem do Clube da Esquina (o local, a música, o disco), até dos dias mais recentes. 
Pra ficar só no começo: Lô tinha dezessete anos quando fez a música "Para Lennon e MacCartney" (com letra de Fernando Brant e Márcio Borges), um grande sucesso na voz de Milton, que já tinha se consagrado com "Travessia". Pois Lô conta que, logo em seguida ao estouro da música, Milton foi até a casa dele. Lô pensou que ele ia pedir mais uma música, mas Milton foi direto: "Eu vim aqui pra pedir pra sua mãe autorizar você a ir morar comigo lá no Rio. Vamos fazer mais músicas e um LP inteiro chamado Clube da Esquina". A autorização era necessária porque Lô ainda não tinha 18 anos... 
O podcast "Um Café Lá Em Casa" pode ser encontrado no Youtube: https://www.youtube.com/umcafelaemcasa . Há dezenas e dezenas de vídeos, todos ótimos. 

Outro dia, o próprio Mazzola, que adora contar histórias, disse que achou que o disco "Realce", de Gilberto Gil, poderia ser sensacional. Ele estava, Los Angeles, onde Gil fazia um show com sua banda. Mazzola chamou Gil e disse que queria botar uma cozinha de músicos americanos na gravação. Gil, a princípio, não gostou muito, pois estava com seus músicos etc. Mazzola não se deu por vencido e convidou Gil a escutar o que poderia ser feito. E mais: queria lançar o disco a nível internacional. Gil acabou topando. Aí Mazzola  convocou músicos só de primeiro escalão, gente que havia tocado com Lionel Richie e outros astros pops de lá. Passou as músicas pra eles, fizeram os arranjos e gravaram as bases. Claro que não foi tudo num dia só. Foi numa semana. Quando Gil ouviu ficou vidrado. Amou. E não teve dúvida alguma em botar sua voz na música título e em outras do LP. A história completa, com todos os detalhes - e são muitos - está em https://www.youtube.com/watch?v=tBtjnrt2EaM. 

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Tempo errado no errôneo tempo

 Por Ronaldo Faria


Nos olhos que se interrompem e irrompem no final da tarde, um restante de pássaros ainda tenta voar. Daqui a pouco a briga será por um lugar nos galhos sem folhas e flores do final de inverno. Do asfalto, abaixo das árvores, sentado num banco de praça, o senhor decrépito e modesto ainda segura o saco de milho moído que alimentou andorinhas arengueiras e pintassilgos fortuitos e famintos. Para sua sorte, nenhum nunca lhe cagou a cabeça. “Os passarinhos reconhecem quem os ama”, repete a todos transeuntes que passam ligeiro para pegar o metrô.
-- E ela, como está?
-- Sei lá. Se eu não me faço presente, viro um ausente vítreo. Sumo no sumo do limão da caipirinha...
Cântaros de saudades nos cânticos antigos rolam ladeira abaixo nas lágrimas a correrem dos olhos. Na rua, escura e brilhante sob a lua, mãos se entrelaçam entre largos abraços. Nos olhares, tardios e velozes, sombras de pernas. Ao redor, luzes em matizes mil. No ar, cheiro de jasmim. No capim molhado da chuva que brotou das nuvens a cobrirem o vento de pingos pequenos, formigas cortam folhas para comerem mais tarde. O tempo se esvazia em pocilgas escondidas no destino. Nele, há corações partidos e um adeus cretino.
-- Quer dizer que é assim: via de mão única?
-- Acho que sempre foi. Eu é que não enxergava além de nós...
Aos poucos, espocam estrelas brancas e sânscritas. A cidade em grande parte já dorme insone. Mas um ou outro louco ainda percorre o lugar. Moradores de rua se acotovelam e se roçam em poucos e rotos cobertores para escapar do frio. Brisa serpenteia esquinas e brechas de concreto para fazer o mundo parar. Casais cantarolam o último refrão já embriagados e chapados. Quem não for dormir e amar na mesma cama irá descerrar os panos da trama envolta no drama da solidão. Sem pernas cruzadas, lábios colados, suores trocados. Em soluços, alguns buscarão soluções em diásporas e fugas finais. Outros traçarão monocórdicas poesias bêbadas de unções do tempo errado no errôneo tempo.
-- E o que fazer, diante de tudo dito e redito, escrito e crível?
-- Nada a fazer. Agora é apenas e somente esperar. Mesmo que tal espera seja um fel agridoce. 

(A ouvir PC Silva)

sábado, 15 de novembro de 2025

Bate em papos e papadas

 Por Ronaldo Faria


 
-- Lembra da Hortência que era a florescência da mais bela erva?
-- Lembro, claro. Dela e da brisa que envolve a lembrança e suga as emoções que envolvem o lugar.
-- Pois é. Virou avó.
-- Ainda bem que sim. Senão, talvez já teria virado pó.
-- Dele veio, a ele voltará.
-- Podemos crer que sim.
-- E do Benito?
-- O agricultor que criava cabrito?
-- Ele. O primeiro vegano de nossa geração.
-- Sei. O que aconteceu com ele?
-- Continua vegano, mas deixou de criar caprinos.
-- Caiu na real que para a bicharada era tudo prisão?
-- Não. Preferiu vender todos e virou ceramista.
-- Que legal.
-- Faz estatuetas de cabras.
-- E vende bem?
-- Não sei. Como elas são esculturas monumentais, acho que ninguém tem quatro metros de pé direito, no mínimo, pra comprar...
-- E a Carminha?
-- A musa da turma?
-- Ela. Cansou de ser musa. Agora é a nossa Brigitte Bardot.
-- Assumiu a causa animal?
-- Não. Cansou do Brasil e mora em Saint-Tropez. Lá aderiu ao topless em definitivo, sem medo. Virou cartão postal do sul da França. Um monumento vivo.
-- Porra, que bacana. Ela realmente tinha uns seios de fechar qualquer comércio planetário.
-- E o Perdônimo?
-- Aquele que a gente dizia que era o antônimo da realidade?
-- Ele mesmo. Virou pastor.
-- Evangélico? Puta que pariu...
-- Não. Ele que comprou as cabras do Benito. Mas deixa elas reproduzirem e vende depois para um frigorífico e abatedouro. Está faturando alto. O Pessoal da JBS já está temendo a concorrência.
-- Então esse é o nosso antônimo mesmo.
-- E a Lucimara?
-- Aquela que não se conseguia chegar junto nem na marra?
-- Ela mesmo. Virou freira. Está no Vaticano. Quer dizer, quem a quis entrou pelo cano.
-- Alguém, porém, seguiu a vida sem mudar muito?
-- Teve. Teve o Raimundo.
-- O CDF da turma?
-- Ele.
-- Que fim levou?
-- Virou político, foi eleito deputado, faz uma porrada de emendas para as ONGs da mãe e de um cunhado e está rico pra caralho. No Congresso é o Mundinho 25%. O Centrão não vive sem ele. Entre os caras do Baixo Clero ele é ídolo.
-- Quem diria...
-- É, quem diria.
-- E você?
-- Eu estou ainda aqui, antenado na turma do passado.
-- E o que faz da vida?
-- Virei influenciador, coach e algo perto de estar sem nunca ter estado.
-- Boa sorte.
-- Obrigado. Mas não esquece de me curtir, clicar no sininho e me acompanhar nas redes sociais.
-- Tudo bem. Amém...
-- Deus está contigo. “Pisarás o leão e a cobra; calcarás aos pés o filho do leão e a serpente.” Salmo 91 só pra ti! Esse é o Perdônimo, que é meu mentor intelectual. Ele me ensinou.
-- Valeu. Adeus.
-- Adeus, não. Logo iremos lembrar de mais gente que ficou pra trás.
 
(A ouvir Flavio Tris)

Na viagem

Por Ronaldo Faria Viajante de suas loucuras diuturnas, quase equidistante entre a vida e a morte, Januário persegue qualquer polis que vire ...