sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Emile Zola ou Cláudio Zoli?

 Por Ronaldo Faria

 


A noite rolava meio emblemática e meio trágica na sua atávica forma de ser e sobreviver. Casais se lambiam, se falavam, se arfavam, se comiam, se tragavam em goles que surgiam a cada sorver como gaitas de fole. E trocavam beijos, línguas invasivas, dentes abertos, garganta a engolir cuspes e controvérsias que toda paixão dá. E se abraçavam, sangravam, contorciam, retorciam feito fetos que alguns desafetos deixaram brotar. O que será o próximo dia?
Benito, filho bendito de casal qualquer, homem, hímen e mulher, não estava nem aí para o que pudesse florescer e vir. Para ele, a fórceps, o mundo era somente sonho raro. Sobra de luz de poste na esquina onde a vida une vidas solitárias, apátridas que a catarse traveste de paraíso e ultimato trágico de se viver. Benito, vivo em si a crer que nunca é tarde para sobreviver, rolava a noite nos sons que o cataclismo ungido de fé nos corpos nus e banidos um dia será e seviciará o destino num querer. E talvez, quem saberá, num asilo insólito juntará a maternidade.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Amália, a deusa que queimava fornalhas

 Por Ronaldo Faria

 


Ela era a passista mais linda da quadra e da avenida, da vida, desejada por todos e mais alguns que nem sequer a conheciam. Mulata (que me perdoem os puristas de agora com seus verbetes, mas sou do tempo que tal denominação era forma de idolatrar a beleza da pele negra/preta) que os poetas do samba glorificavam em rimas e glorificações, Amália era o brilho que as estrelas volta e meia não traziam aos céus porque tinham guardado todo o esplendor para ela. Seu corpo, seus trejeitos, seu remelexo, seu jeito de ser, tudo e algo mais eram muito além daquilo que coração pode imaginar. Sua boca, seus lábios, seus olhos, cabelo, ela como um todo, eram escultura que nem o maior do escultores suporia fazer ou supor. E o sorriso? Era desses que nem a mais solitária solidão ou a dor maior saberiam viver sem sucumbir. Michelangelo nunca diria “parla”. Ao contrário, teria se ajoelhado diante dela e teria dito: “O que eu devo falar?” Enfim, a mulher entre todas as mulheres. Alhures, seria a Eva de todos os Adões do planeta. A correr as areias da praia deserta e iluminada pela lua que, ademais, brilhava só para ela poder desfilar seu corpo solto. Amália era musa de qualquer bateria que quisesse dez na nota final. E os batuqueiros até poderiam atravessar o samba. Os olhos dos jurados estariam nela, a delirar. Com certeza qualquer deslize na harmonia seria esquecido.
Amália, amor da dália aberta, delírio do compositor, coisinha tão bonitinha do pai, porém, tinha um algo a se pensar e divagar. Amava José, vagabundo da pior espécie. Desses que a ficha corrida no passado fazia a bobina do fax acabar. Para ele o tal de 171 era coisa barata. Malandro que otário não sabia sequer e nem mesmo que ia engolir, ele se fazia de forte diante do aporte que Amália entregava. Como alguém, em sã consciência, se é que a ciência compreenderia tal deslize do amor, poderia resistir aos desejos da mulher que era a obra maior que Deus decidiu fazer num dia boladão? Mas José, retardado desde o nascimento quando faltou força para sua mãe colocá-lo para fora, apesar dos gritos da parteira, saberia ter sido sorteado na milhar ou na loteria federal? Qual... Para ele, dois e mais dois era o que fosse. Uma cheirada e outra eram a chamada real. Mesmo que assim, a todos mortais, Amália fosse o prêmio apenas sonhado. O bilhete nunca premiado. Mas José, como bom carioca, a saber-se idólatra, seguia na sua delirante oca. Era apenas um nome no CPC do crediário de ter o Éden sublime da cabrocha iluminada pelos holofotes da razão sem poder pagar. E assim, perto do fim, o escritor descreve, à verve, aquilo que as letras nem sabem mais descrever. Nos ouvidos os tamborins marcam a criação. Algum dia haveremos todos de morrer de solidão. E José? Esse que vá saber, talvez, o que é ser um cuzão sem colhão...

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Bel Padovani, de novo

Por Edmilson Siqueira


Já escrevi um artigo aqui sobre a excelente Izabel Padovani em 2022. Tratava-se do disco "Desassossego", de 2009, um excelente trabalho resultante do Prêmio Visa de MPB que ela ganhou, mui merecidamente, por sinal. Se quiser ler o link é esse: https://osmusicoolatras.blogspot.com/2022/03/desassossego-um-disco-perfeito-de-bel.html. 
Pois hoje volto a falar dessa artista campineira que ganhou o Brasil e parte do mundo sem claro, fazer aqui o sucesso que merece, mas tem deixado sua marca inconfundível em todas as interpretações que grava. E volto para comentar o disco "Mosaico", gravado entre agosto de setembro de 2008. 
Não sei se esse é o primeiro disco dela, mas se for, ela já mostrava impressionante maturidade nas interpretações. Acompanhada por um time de ótimos músicos - Anderson Alves (clarinete), Denni Pontes (percussão), Iara Ziggiatti (violoncelo), Luís Passos (guitarra e bandolim), Marcelo Valezi (flauta e sax), Paulo Freire (viola), Rafael dos Santos (piano) e Ronaldo Saggiorato (baixo, violão e programação eletrônica), Bel (como é mais conhecida) passeia por 11 faixas com desenvoltura, mostrando que o que estava ali começando, se é qu eestava começando, era algo que veio para ficar. 
Dezesseis anos depois, o disco soa atual, como se fosse gravado neste ano, pois ele não apela a modismos, com um repertório muito bem escolhido entre a produção nacional que, apesar das críticas que vemos por aí, continua produzindo muita música de alta qualidade. Basta pesquisar, já que os tesouros da MPB andam cada vez mais escondidos. 
O disco começa com "Alto Mar" (Dante Ozzetti e Luis Tatit), um choro moderno que não fica devendo nada aos grandes choros brasileiros. 
A segunda faixa é "Canção de Não Dormir" (Arthur Nestrovski e Eucanaã Ferraz), música densa onde se destaca, além de perfeita interpretação de Bel, o piano de Rafael dos Santos. 
A seguir temos "Tudo Teu" (Fred Martins e Marcelo Diniz), uma canção de entrega, onde a percussão dá um tom meio indiano e Bel se encarrega do resto. 
"Capital"  a quarta faixa é de ninguém menos que Guinga em parceria com Simone Guimarães. O talento criativo de Guinga nos traz uma melodia que parece extraída dos choros de Villa-Lobos e Bel dá conta do recado, principalmente na segunda parte onde a interpretação se torna mais difícil.  
A quinta faixa é "Mortal Loucura" (Zé Miguel Wisnik e Gregório de Matos, uma "parceria" que fala por si). Trata-se de um soneto do poeta que viveu entre musicado por Wisnik, que virou impressionante "oração" na voz e coro de Bel. 
"Bote" (Luiz Felipe Gama e Kiko Dinucci), a sexta faixa, é a música pop do disco, com excelente solo de guitarra de Luís Passos. 



A sétima faixa e "Deixando o Pago" (Vitor Ramil e João da Cunha Vargas), é uma canção nordestina, que se destaca pela ótima melodia, em lamentos próprios dos cantos do povo daquelas paragens. 
"Primeiro Choro de Lucas" (André Mehmari), a oitava faixa, é uma canção sem letras, que Isabel acompanha em ótimo vocalize, com destaque para o baixo de seis cordas de Ronaldo Saggiorato.   
Não surpreende a presença de uma música de Arrigo Barnabé - "Sinhazinha em Chamas" - no disco. Izabel pesquisa nossos compositores e encontra pérolas como essa canção, interpretada corretamente como num sarau do século 19. 
A décima faixa é "Barriguda" (Zé Paulo Becker e Thiago Amud) e sua longa letra é uma sucessão de trava-língua que só alguém muito bem preparado pode cantar. E Bel passeia pela intrincada música como se cantasse uma ciranda.  
Encerrando a ótima sessão musical, Isabel nos traz "Do Compositor (Eduardo Klébis), um gostoso samba que versa sobre as artes de se compor, muito bem desenvolvido pelo autor.  
Trata-se, enfim, de um ótimo disco que, como disse, não se perde com o tempo. Daqui a muito tempo, ele estará sendo ouvido com o mesmo prazer que se tem hoje diante da ótima interpretação, do repertório sem concessões e o grande trabalho dos músicos, tudo isso tornando esse disco obrigatório para os amantes da boa MPB. 
O CD pode ser comprado no Mercado Livre ou em outros bons sites do ramo. E pode ser ouvido na íntegra no Spotfy: https://open.spotify.com/intl-pt/album/6E3woEEiIXXWGATLcy77YZ

Emile Zola ou Cláudio Zoli?

 Por Ronaldo Faria   A noite rolava meio emblemática e meio trágica na sua atávica forma de ser e sobreviver. Casais se lambiam, se falava...