Por Edmilson Siqueira
Dia desse estive na casa do meu amigo Osny, que vive de vender discos pelo Mercado Livre. O motivo do encontro não era o mesmo de tantos outros (uma encomenda minha que eu iria buscar). Na verdade, era para pegar um presente. E que presente: um show da Nara Leão gravado em 1984 no Centro de Convivência Cultural. Vinte e uma músicas - talvez algumas inéditas, que ela nunca gravou. Sobre o disco da Nara eu conto depois que ele ainda tem história para acontecer.
Pois, nessa visita, aproveitei para dar uma olhada na coleção de discos de jazz do Osny. Não são muitos, uns 400 talvez, o que é pouco perto dos milhares (e bota milhares nisso) espalhados em prateleiras por praticamente todos os cômodos da bela e grande casa em que ele e sua querida Marlene vivem, no Jardim Chapadão, em Campinas.
Comecei a escolher alguns e quando vi já estava estourando o valor que eu pensei em gastar. Parei no sexto CD, um exemplar da Riverside Records, gravado na série Jazzland e lançado em 1961, com ninguém menos que Thelonious Monk (piano), John Coltrane e Coleman Hawkins (sax tenor), Ray Copeland (trompete), Gigi Gryce (sax alto), Wilbur Ware (baixo) e Art Blakey e Shadow Wilson (bateria). Ou seja, uma seleção do jazz dos anos 1950.
As seis músicas do disco que juntas dão mais de 40 minutos, haviam sido gravadas quatro anos antes. E nem todas têm Monk e Thelonious juntos. Um pequeno aviso, na contracapa do CD avisa: "Quando Monk e Trane gastaram seis meses de 1957 trabalhando juntos no New York's Five Spot Cafe, ocorreu um evento histórico que certamente deveria ser exaustivamente gravado. Mas, conflitos extramusicais tornaram as gravações impossíveis, restando como únicas lembranças permanentes desses encontros memoráveis as três notáveis peças para quarteto que se destacam nesse álbum."
Pois mesmo as gravações, que não foram concebidas como um álbum de estúdio, mas são uma compilação organizada a partir das sessões de 1957, são consideradas históricas, com seu valor artístico transcendendo qualquer contingência técnica.
No vasto território do jazz norte-americano, poucos encontros carregam a aura mítica que envolve a breve, porém decisiva, colaboração entre Thelonious Monk e John Coltrane. O álbum Thelonious Monk and John Coltrane, lançado em 1961, sintetiza um período de profunda transformação para ambos os músicos e registra, ainda que em forma fragmentada, a química singular entre dois dos arquitetos do jazz moderno. Embora não se trate de um registro de estúdio concebido como álbum, mas de uma compilação organizada a partir de sessões de 1957, seu valor histórico e artístico transcende qualquer contingência técnica.
À época, Monk estava afastado do circuito musical por problemas com a polícia e dificuldades de trabalho. Ele havia recuperado sua licença de músico e reassumido seu posto como um dos pianistas, dos mais originais, diga-se, do bebop. Coltrane, por sua vez, vivia uma fase de reconstrução pessoal e artística após ser afastado do quinteto de Miles Davis devido ao uso excessivo de drogas. O convite de Monk para integrar seu grupo no Five Spot Cafe, em Nova York, foi a oportunidade que Coltrane precisava: era a chance de voltar ao trabalho e, quem sabe, desenvolver o estilo que marcaria sua fase de maturidade.
E a coisa começou a dar muito certo logo de cara. A simbiose entre os dois aparece com força nas faixas reunidas no álbum. Monk, com seu toque percussivo ao piano, acordes angulares e silêncios estratégicos, cria um terreno fértil no qual Coltrane encontra espaço para explorar longas linhas melódicas que parecem se estender ao infinito. A tensão entre a economia do pianista e a exuberância melódica do saxofonista produz um diálogo inusitado e harmônico que é, ao mesmo tempo, rigoroso e imprevisível. Há uma espécie de desafio entre eles, mas sem momentos de aspereza e sim de notórios incentivos.

Faixas como “Ruby, My Dear” revelam o lirismo oculto na obra de Monk, frequentemente percebida como cerebral. Coltrane, aqui, soa contido e profundamente expressivo, desenhando frases cuidadosas que se apoiam na delicadeza da melodia original. Já em “Trinkle, Tinkle”, o saxofonista enfrenta uma das composições mais intrincadas de Monk com destreza notável, mostrando a rapidez rítmica e a firmeza técnica que o caracterizariam em sua fase posterior com o quarteto clássico. A faixa evidencia o quanto Coltrane absorveu a lógica estrutural de Monk, mesmo quando parecia operar em um universo expressivo diferente.
O álbum inclui gravações do quarteto de Monk sem Coltrane, o que pode parecer dispersivo, mas oferece um retrato mais completo daquele período. Nessas faixas, o ouvinte tem a chance de apreciar o piano de Monk com mais espaço, exibindo suas idiossincrasias rítmicas e harmônicas de forma ainda mais transparente.
O pequeno trabalho que sobrou entre os dois, passado tanto tempo da gravação, permanece, segundo a crítica, como um documento essencial para compreender a metamorfose do jazz nos anos 1950. Ele captura Coltrane no processo de desenvolver seu “sheets of sound”, técnica que combinava velocidade extrema, encadeamento de arpejos e exploração profunda da harmonia. Ao mesmo tempo, mostra Monk em um dos períodos mais criativos de sua carreira, reafirmando-se não apenas como compositor singular, mas como improvisador de lógica interna absolutamente única.
O fascínio do álbum reside também, no fato de que Monk e Coltrane se encontraram em um ponto raro em que suas trajetórias, tão distintas, se tornaram mutuamente necessárias. A disciplina e o rigor estrutural de Monk forneceram o arcabouço ideal para que Coltrane consolidasse sua abordagem harmônica; a intensidade e a busca espiritual do saxofonista, por sua vez, abriram novas possibilidades para a obra de Monk, revelando nuances que muitas vezes passavam despercebidas.
Mais de seis décadas depois de seu lançamento, o álbum continua sendo uma audição indispensável para quem busca compreender não apenas a obra desses dois gigantes, mas o próprio desenvolvimento do jazz moderno.
Além das duas músicas citadas, o disco tem ainda "Off Minor", "Nutty", "Epistrophy" e "Functional". Todas as músicas foram compostas por Thelonious Monk.
O disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=6DVvvphPXq0&list=PLL-NbN8uTOigEWB_YxFEI_WCPHeACQ5Su .
E pode ser adquirido no Mercado Livre e em outros sites de vendas. O preço é meio salgado, pois o CD é meio raro (mais de R$ 200). Já o LP de vinil, lacrado, também está à venda por um preço mais elevado ainda (R$ 450).
*A pesquisa deste artigo teve o auxílio da IA do ChatGPT.