quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Astor Piazzolla, sempre

 Por Ronaldo Faria

Sonhos premidos de versos e reversos, a se entregarem num solilóquio soturno que há entre a morte e a sorte embriagada e vadia. Sortilégio do adeus a um avô que se perdeu nas águas de um rio que enche e se vê seco como o copo que desce às gargantas do dia. No meio de tudo, sertão de pedras que viram seixos ao andor de correntes desiguais.

Cadafalsos que se abrem abruptos no limite entre a sanidade a loucura, como um desertor do crer em sua agrura. À frente, o deserto se descortina em casais que bailam nas valsas atonais do rever. Passos que se perpassam entre nuances de olhares e calcinados trajetos que não se dão aos mares. No bandoneon, bando de notas a devorarem a dor.

-- Vai Astor, como astro que se perpetua numa constelação toda negra e nua. Onde notas e acordes acordam para o sol que se entrega aos lençóis brancos da lua para amar o outro lado da terral o outro lado da lua. Nesse caminho de rodar à eternidade, que fiquem tontos o passado, o amor e a saudade. E caiam moribundos numa esquina qualquer, ao longe, onde estará a casa que sobrevive à realidade. No meio de tudo valerá qualquer verdade.

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Person and Carter

Por Edmilson Siqueira 


Acho que foi na antiga loja do Osny, a Hully Gully Discos, que ficava ali na Dr. Quirino, que eu encontrei o CD duplo de Houston Person e Ron Carter, juntos, tocando o que gostam e do jeito que gostam em duas sessões, uma em fevereiro de 1989 e outra em janeiro de 1990, ambas no Van Gelder Recording Studio, em New Jersey. Foram lançados, à época, separados, mas alguém teve a feliz ideia de juntá-los num único estojo.  

O primeiro CD se chama “Something in Common”, o segundo “Now´s the Time” e a caixinha com os dois levou o nome de “The Complete Muse Sessions”, talvez fazendo um trocadilho sonoro entre musa e música (muse/music). Mas, com ou sem trocadilho, tudo se encaixaria: é música pura e das mais inspiradas. Tão inspirada que o crítico Joel Dorn escreveu sobre o trabalho: “Não é música cerebral, é um sentimento musical”.  

Ele começa com “Blue Seven” (Rollins), e é só uma demonstração, de mais de seis minutos, do incrível conjunto formado pelos dois instrumentos ao longo dos dois CDs. E a marca registrada que se seguirá é explicitada: haverá solos em todas as músicas, haverá acompanhamentos ora de um ora de outro, haverá, principalmente, liberdade de criação e rigoroso entendimento. E tudo se traduzirá numa das mais perfeitas harmonias que dois músicos podem conseguir num estúdio.


“I Thought About You” (Heusen/Mercier) prossegue o caminho aberto na primeira música, preparando um swing que virá em seguida com a clássica “Mack The Knife” (Blitzstein/Weill/Brecht) música feita para teatro, mas que acabou ganhando o mundo pela singeleza da linha melódica e possibilidades jazzísticas. “Joy Springs” (Brown), “Good Morning Heartache” (Fisher/Higgenbotham/Drake) imortalizada na voz de Billie Holiday, “Anthropology” (dos gênios Charlie Parker e Dizzie Gillespie), “Once In A While” (Edward/Green) e “Blues For Two”, de autoria dos dois, fecham o primeiro CD. 


Nessa altura do campeonato, se o seu copo de uísque está vazio, pega mais gelo, bota outra dose e se prepara para o que virá: mais uns 50 minutos daquele prazer que só a música pode proporcionar.  


“Bemsha Swing” (Monk/Best) e “Spring Can Really Hang You Up The Most” (Landesman/Wolf) abrem o segundo disco e o clima não perde nada daquela atmosfera mágica que se formou desde o início. “Einbahnstrasse” (Ron Carter) prepara o ambiente para a entrada de “Memories Of You” (Blake/Razaf) que, por sua vez, deixa o tempo perfeito para uma obra prima brasileira que, no contrabaixo e no sax dos dois, nos traz novos prazeres: “Quiet Nights”, de mister Antonio Carlos Jobim é tocada por deliciosos seis minutos e quarenta e cinco segundos e quando termina é duro resistir à tentação de apertar o botão do replay. “If You Could See Me Now” (Damerson/Sigman), “Now Is The Time” (Parker), “Since I Fell For You” (Johnson) e “Little Waltz” (Ron Carter) completam essa aula de sensibilidade e sentimento.  


O CD duplo foi lançado em 1997 e o que tenho é importado. Não encontrei produção brasileira, mas o importado ainda está à venda por aí. Se você gosta de jazz, mesmo que seja só um pouco e deparar com ele pela frente, não hesite: serão quase duas horas de puro prazer. 

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Ao Tito Madi

 Por Ronaldo Faria

Anos 60 de uma proficiência do garoto a crescer desde o fim dos 50. E Tito Madi, menestrel, ficou. Entre velas acesas nos bares da Lagoa ou do Méier, ser que se esvazia e se esvai feito as marés de um eterno desaguar. A brincar de tempos entre tempos atemporais que vivem num arranhar de agulha no vinil a rodar.

Talvez uma orquestra de canhotos e destros a dedilhar um poema que se devora mundo afora a se recriar. Desejo efêmero de efemérides no fundo da alma ver, crer e fervilhar. Quem sabe um piano largado ao largo, um apócrifo poeta a transgredir a eternidade da saudade, a incerteza da mentira que se perpetuou.

Na entrega do tempo, desfeito lamento que não se vê, um interregno entre o nascer e morrer. Quem sabe uma mesa encravada entre a lua que surge e a saudade que urge. Um pedaço de alvorecer a se atirar no abismo findo do ser, a tentar fugir da morte que se afoga no mundo que parece não ver que tudo é só fingir e descrer.

sábado, 30 de julho de 2022

Entre Arnaldo Antunes e Freud

 Por Ronaldo Faria


Haja chapéu para tão pouco véu ou fel. Quem sabe um istmo inexistente entre o continente e o mar de Trafalgar. Um espaço escasso de tempos atrás. Um desejo que, ensejo, seja real. Metade ser humano e outro pouco animal. Afinal, somos isso. E Freud já o resolveu em escritos soltos e bonanças. E Arnaldo Antunes o cantou. No pouco afoito e imberbe, salve-se a verve. Ainda bem que os meus poetas do além etéreo me deixam mijar.


sexta-feira, 29 de julho de 2022

O samba nosso de Maria Rita

Por Edmilson Siqueira 

Maria Rita continua fazendo muito bem o que sabe: cantando excelentes músicas do seu jeito que lembra a mãe, a eterna Elis, mas o que não a impediu de construir carreira própria, baseada na escolha de um ótimo repertório, de grandes músicos na cozinha e de produções sérias que aliam o bom gosto e a criatividade. Assim é um de seus trabalhos que não canso de ouvir até hoje: Samba Meu, uma deliciosa seleção de sambas que nos é oferecida por uma grande intérprete que foi buscá-la na raiz do que a MPB tem de mais autenticamente urbano. O samba carioca, que veio do morro (no tempo em que o morro não tinha toque de recolher comandado por traficantes) e ainda guarda todas as características que o consagraram, como a letra fácil sem ser comum e o swing inconfundível da batida na qual se baseou João Gilberto para ajudar a inventar a bossa nova.  


Maria Rita desfila no CD com 14 sambas dos mais preciosos, onde pontifica a participação de Arlindo Cruz, um dos mais criativos sambistas cariocas. Mas tem muito mais gente boa na parada e sambas surpreendentes. É o caso da abertura do disco. Acompanhada só de violão, ela canta "Samba Meu" (Rodrigo Bittencourt), nome do CD e também de um samba meio manifesto, porém intimista e que apresenta perfeitamente o que vem a seguir.  

E a seguir vem "O Homem Falou", um sucesso de Gonzaguinha de sua melhor fase. A música seguinte – "Maltratar Não É Direito" (Arlindo Cruz e Franco) – é daqueles sambas feitos por homem com letra no feminino que só bambas conseguem realizar.


Seguem "Num Corpo Só" (Arlindo Cruz e Picolé) e a deliciosa "Cria" (Serginho Meriti e César Belieny), que começa com uma voz de criança, mas não entra na possível breguice: trata-se de um ótimo samba enaltecendo as relações iniciais entre a mãe e sua cria, tratada com humor e inspiração e que acaba se transformando numa das melhores faixas do disco, o que não é pouco dada a excelência do repertório.


"Tá Perdoado" (Franco e Arlindo Cruz), "Pra Declarar Minha Saudade" (Jr. Dom e Arlindo Cruz), "O que É o Amor" (Arlindo Cruz, Maurição e Fred Camacho), "Trajetória" (Arlindo Cruz, Serginho Meriti e Franco), "Mente ao Meu Coração" (F. Malfitano), "Novo Amor" (Edu Krieger); "Maria do Socorro" (Edu Krieger), "Corpitcho" (Ronaldo Barcelos e Picolé) e "Cãs de Noca" (Serginho Meriti, Nei Jota Carlos e Elson do Pagode) completam o disco sem perder a qualidade inicial.


Quem gosta de samba não vai parar de ouvir e quem prefere um repertório mais eclético vai acabar se encantando com as interpretações da moça nesse disco mais que perfeito.  


O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube Music: https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_mCinpJ7cufhxdyHjYq8PHjx94Jy6LOHkk 

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Dick e Copa

 Por Ronaldo Faria

Farsas que não sobrevivem à voz de Dick Farney. Falsetes de tons que Copacabana nunca verá.  Quem sabe um andar a ouvir bolivianos a tocar nas suas pedras que misturam ondas a chegar e vagar. No meio de tudo, um pai no fim da vida a tentar o teu Rio de nascença te mostrar. Ou então uma voz a dizer que o seu mundo estava a se desfazer em areias que se esvaem entre dedos a dedilhar um poema qualquer. Mas, para quem não sabe sequer a que veio nesse veio sem fim, ai de mim... Em Copacabana, sem drama, a ti como tu, mais ninguém.


quarta-feira, 27 de julho de 2022

João Bosco e seu filho num disco único

Por Edmilson Siqueira 

Já escrevi aqui sobre o grande João Bosco, um compositor e cantor que já marcou definitivamente seu nome na história da MPB e, provavelmente, escreverei outra vezes mais. Hoje, vou comentar um trabalho dele que é, sobretudo caseiro. E, nem por isso, obviamente, perde a qualidade que ele sempre colocou em toda sua obra.  


É caseiro porque as treze faixas do CD são de autoria de João Bosco e de seu filho, Francisco Bosco. Estou falando de "As Mil e Uma Aldeias", nome que também é da primeira faixa do disco. 


À época, João Bosco disse que se tratava de um disco muito pessoal. Seu filho, então com 21 anos, já tinha dois livros lançados e se lançou como letrista do pai. Disse ele, em uma entrevista à Folha, em 1997, ano do lançamento do disco que se tratava de sua "melhor performance literária", reconhecendo sentir uma certa insegurança em ocupar um lugar que já havia sido de gente como Aldir Blanc, com quem João Bosco não trabalhava há dez anos. 

O disco é uma viagem musical, como diz não só o título, mas também a primeira faixa, que fala em Madagascar, Ceará, Jequié, Nazaré, Cafarnaum, Jericó e Bagdá. A influência da cultura árabe, perceptível em toda obra (João é descendente de libaneses), não é negada, mas também não é preponderante: "É um disco de música brasileira. Meu trabalho não é étnico. São fusões, não sobreposições". E reafirma que o que ele mostra pode vir de outros lugares, mas está dentro do Brasil.     


Mas a música de João, de raízes brasileiras, sempre, é universal. Sem qualquer preconceito, João faz boleros, rocks, tangos e qualquer outro ritmo, tudo sempre de uma qualidade ímpar para encanto de seus milhões de fãs no Brasil e no exterior. 


Após "Mil e Um Aldeias", os temas vão desfilando como uma verdadeira viagem num balão que voasse pelo mundo. "Califado de Quimeras", "Convocação" (com um berimbau na seção rítmica), "Arpoadora" (de influência jobiniana), "Das Marés", "Cora, Minha Viola", "Enquanto Espero", "O Medo", "O Sacrifício", "Prisma Noir", "Me Leva", "Jazidas" e "Benguelô/Metamorfoses" compõem o painel que João e Francisco Bosco nos ofereceram há 25 anos e que continua atual e muito bom de ouvir.  


Mas se o disco é "familiar", não quer dizer que João Bosco entrou sozinho no estúdio. Ele se cercou de um ótimo time de músicos, como Nico Assunção (baixo), Ricardo Silveira (guitarra e violão de aço), Carlos Bala (bateria), Hugo Fattoruso (Teclados), Marçal e Robertinho Silva (percussão), André Gomes (cítara), Marcio Montarroyos (flugel horn, Ramiro Mussoto (berimbau e percussão) e Paulo Moura (clarineta).  

O resultado da união "familiar" e de tanta gente boa só podia ser ótimo.  


O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode também ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=tmZIACsKZRU&list=OLAK5uy_m1rlLOgOKCzj0rKauqiGucHn-cW5JRYKY . 

terça-feira, 26 de julho de 2022

Ao Júlio Reis

 Por Ronaldo Faria

Viver de amor, em flor. A si mesmo florescer. Talvez um pouco nada ou um nada de ninguém. Um pedacinho de qualquer coisa, partícula naquilo que for. Cadência de diminuta existência, fagulha no universo do louvor. Brincadeira atemporal no temporal que não veio, veio incrustado de busca à espera daquilo que somente urge ao mundo que não se faz. Afinal, ao mundo a realidade quiçá se refaz. Quem sabe uma alegria efêmera, uma incerteza ao mundo profunda, a inefável sofrência de sê-lo. Em desmazelo, me jogo ao nada. Na cadência do universo, o atropelo... Nas notas de um tempo atrás, uma valsa à serenata.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

A boa trilha do Trem Misterioso

Por Edmilson Siqueira 

Um filme de 1989 reuniu, na sua trilha sonora, um respeitável time de roqueiros, baladeiros e blues-men que até hoje ainda são ouvidos por aí. O filme se chama Mystery Train e é uma antologia de comédia-drama escrita e dirigida por Jim Jarmusch e ambientada em Memphis, Tennessee. O filme é composto de três histórias envolvendo protagonistas estrangeiros, que se desenrolam ao longo da mesma noite. 


Mas o que nos interessa aqui é a trilha que abre com um sucesso de Elvis Presley de 1955, e que deu nome ao filme. Elvis gravou "Mystery Train" em 1955 e a canção voltou anos depois com algumas mudanças e acabou abrindo a trilha do filme e lhe dando o nome. 


A segunda faixa do disco também é Mystery Train, só que na versão de Júnior Parker, que é seu autor e a gravou em 1953. A versão de Elvis melhor, mas essa se apega mais às raízes da country music. 


O clássico "Blue Moon" (Rodgers e Hart), uma música gravada por roqueiros e jazzistas, aparece na terceira faixa, na versão de Elvis Presley, que colocou nela todo romantismo possível.


O grande Otis Redding dá um brilho especial à trilha, comparecendo com "Pain in My Heart" (Naomi Neville), com ótima interpretação desse que foi um de seus maiores sucessos em sua curta carreira, que acabou aos 29 anos um acidente de avião.  


Outro grande, Roy Orbison, aparece com "Domino" (Samuel Phillips). Trata-se de rock e dos bons. "The Memphis Train" (Mike Rice, Rufus Thomas e Willie Sparks) vem a seguir na voz de Rufus. Outro rock no melhor estilo americano, aliás, uma das melhores gravações do disco. 


"Get Your Money Where You Spend Your Time" (Tommy Tate e James Palmer) é a sétima faixa, na interpretação da Bobby Blue Band, uma soul music da pesada, onde os metais se sobressaem.  O clima continua na faixa seguinte, "Soul Finger", uma música com nada menos que seis autores. É a primeira só instrumental do disco. 


A "segunda parte" do disco (as aspas são porque da nona música em diante deve ser o lado B do disco de vinil) é toda composta por John Lurie e tocada por ele próprio na guitarra e na gaita, por Marc Ribot na guitarra e no banjo), por Tony Garnier no baixo e por Douglas Bowne na bateria. Trata-se da chamada música incidental que deve acompanhar os personagens nas diferentes cenas do filme. São oito trilhas instrumentais que podem ser ouvidas com atenção ou não, O grande filé do disco são as oito primeiras faixas com grandes intérpretes e ótimas músicas. 

O disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=E971qc92J1I&list=PLXdA5lMqFnPEOTRKxSLCL7XaOQivGAAkG . E ainda pode ser comprado por aí nos bons sites do ramo. 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...