sábado, 20 de julho de 2024

Olho de Prata

 Por Edmilson Siqueira

 

Há quase dois anos, Ronaldo Faria escreveu aqui sobre o Olho de Prata, show que foi apresentado no Centro de Convivência Cultural em 1979, com Zeza Amaral, Alfredinho Soares e Celinha. O show era composto das músicas que Zeza e Alfredinho vinham fazendo pelas madrugadas, muitas delas aprendidas e cantadas pela Celinha nos próprios botecos que a turma frequentava, principalmente a Adega Florence lá na Vila Nova.
Estou voltando ao assunto por alguns motivos: o primeiro é que fui um dos produtores do show (éramos uns quatro ou cinco, todos trabalhando na base da amizade) e, como tal, posso dar alguns detalhes a mais do que o Ronaldo. O segundo é que ouvi novamente o CD do show - um CD que é resultado de uma gravação em fita k7 que o Osny passou para a nova mídia - para ver se estava tudo bem com ele. Ouvi novamente não apenas por gostar das músicas, mas porque eu ofereci uma cópia ao Danilo Fernandes, da Rádio Educativa, para, quem sabe, ilustrar alguns do seu ótimo programa sobre os artistas musicais de Campinas e região. Além disso, minha amiga Bete Ribeiro, que hoje é companheira do Zeza, me providenciou, rapidinho, uma cópia do folheto (hoje chama folder, né?) do show, com os nomes de todas as músicas - eu lembrava máximo de três - para abastecer a discoteca do Danilo de modo completo.
Trata-se, como já devem ter percebido, de um disco que não existe no mercado.
Por esse trabalho todo, me veio a vontade de escrever alguma coisa sobre o já lendário show que lotou por duas noites o teatro do Centro de Convivência, com ingressos extras suficientes para que o corredor central fosse todo tomado por gente sentada no chão.
E foi grande mesmo. Acompanhei muitos ensaios e vi tudo sendo montado sob a batuta de um profissional em vários ramos, o artista plástico, jornalista, escritor, fotógrafo, cronista e boêmio Jota Toledo. Toledo foi o coordenador geral e distribuiu magnificamente as tarefas. Para iluminar o espetáculo, convidou Amadeu Tilli; para o cenário, Geraldo Jurgensen, para a direção musical, Maninho, para a direção de cena Marcos Ghillardi e botou na produção alguns amigos que ele sabia que tudo fariam para que o negócio andasse da melhor maneira possível, inclusive este escriba.
A ideia era botar o pessoal no palco - violões (Zeza e Alfredinho), flauta e sax (Maninho), cavaquinho (João Luiz), contrabaixo (Serginho) e percussão (Paizão) - e fazê-los cantar suas músicas e, às vezes, contar histórias que os inspiraram como se num bar estivessem. E a ideia funcionou.
A grande maioria das músicas apresentadas teve como autores Zeza e Alfredinho, juntos ou formando dupla na composição, mas a abertura do show foi com "Homem de Papel" um poema de Raimundo Oswaldo Barroso que Zeza musicou. É uma letra forte com visíveis críticas sociais à ditadura que ainda entristecia o Brasil à época.
Em seguida, a presença delicada e firme de Celinha, com sua voz que lembra muito a de Maria Bethânia, (muitos diziam que Celinha sempre foi melhor...) apresenta "Sereia da Noite" (Zeza Amaral), que cria o clima ideal do boteco na madrugada para o show prosseguir.
"Prego" de Alfredinho, que vem a seguir. A triste separação é aqui, mais uma vez, retratada com primor pelo poeta que fica sozinho cantando suas mágoas. Músicas típicas de inspirados boêmios, como éramos todos à época.



Essas três músicas deram o tom do espetáculo: musica forte com crítica social, samba canção romântico e o samba tradicional, onde prevalecem as dores de amores e a sadia malandragem.
No palco, cantava um, cantava outro, ou os dois juntos e, de repente, Celinha deslumbrava a plateia transformando a música dos parceiros em algo nobre, pra ser aplaudido de pé, como foi quando ela cantou à capela.
E com direito a grand finale: o sambão composto pela dupla, "Verei Raiar", que, além de encerrar o show com um clima mais do que elevado, presta a devida homenagem à Adega Florence, dos irmãos italianos, que ficava na esquina da Carolina Florence com Primeiro de Março, na Vila Nova, e que foi, durante vários anos, o quartel-general dessa turma (eu mesmo a frequentei por algum tempo) que amava a noite e suas musas.
O show, como já disse, teve duas apresentações com lotação com ingressos extras. Depois, devido ao sucesso inicial, foram conseguidas mais três datas, mas o sucesso não se repetiu e sobraram apenas as lembranças de quem viu e ouviu e de quem, como eu, conseguiu uma fita K7, que virou CD, e pode ainda ouvir pra matar as saudades de um tempo que não volta mais. 
Pra encerrar, Zeza e Celinha ainda estão por aí (Zeza prepara novidades musicais inclusive), mas Alfredinho, infelizmente, nos deixou em abril de 2018.



sexta-feira, 19 de julho de 2024

A Mazinho Quevedo

 Por Ronaldo Faria

 

Marlúcio, mistura do desejo dos pais de se chamá-lo Mário ou Lúcio, viajava com a vaquejada no sertão que há muito não sabe o que é água ou remissão. É só brincadeira, sobremaneira ensimesmada de si mesma na fragrância da mulher que mostra seus peitos à vontade. No seu amanhã, logo cedo e de manhã, quando o sol resolve expulsar a lua e a negritude do céu, a certeza de que haverá um cateretê. Lúcido, translúcido, no imaginário de um aprendiz, segue inútil na estrada cheia de pó e poeira, onde a eterna história da eira e da beira não se faz história rasteira e verdadeira.
Marlúcio, que pensa em mudar para o “Sul” e se tornar peão numa obra qualquer, mesmo sem casa ou mulher, segue no seu jumento a prosear consigo mesmo. Brinca de se embriagar e fazer da inaudita sobrevivência o derradeiro chegar. Nele, crê, haverá a amada, a chaga curada, a porteira nunca fechada. Afinal, se nessa vida de perrengues e ventres nus não houver crer, de que vale continuar? Volátil em si mesmo, sabedor de seus breus e banidos queixumes a Deus, continua apesar do sol que mata o plantio sórdido e a montaria a seguir seu latifúndio nenhum.
Marlúcio, cadáver ambulante no destempero que o tempero do destino não sabe alternar, só diz que a hora é de orar. No amanhã, a amada a cobrar. No mato rasteiro, a cobra pica a perna do menino. A morte é certa abraçada nela. O chocalho da cascavel é como um samba e xote a rima ordenar. A ordem de hoje não quer saber, sequer, o que o amanhã será. Ser-se-á a pomba vadia qualquer ou o rei sabiá. Afinal, se a vida é apenas momento em tormento, que as tormentas do logo mais sejam como a garça branca, a voar. A alma, insone, há de desertar e despertar.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Floriano, que a flora te dê flores

 Por Ronaldo Faria


“Logo mais deve ser hora de parar”, pensa pândego Floriano. Puto pelo nome lhe dado, de um ditador militar do passado, diz a todos ser apenas Ano. Desse jeito serve para aqueles 365 dias que foram bons e mesmo para aqueles que queremos esquecer. Logo, ele sempre estará bem aos presságios e maldições de todos, a rodo. Quisera todos nós tivéssemos um nome assim, desses que não fedem e nem vão cheirar. Que passarão incólumes pela vida, quase despercebidos da eternidade, livres da maldade e da devassidão, da guilhotina da gramática e da sofreguidão. Anatólios, Ferdinandos, Maristelas, Berenices e outros tantos (me perdoe quem assim é, não foi por mal, foi só por rima) que tramas levarão para sempre? Serão diferentes, referências para o além. Ainda bem. Quem irá querer ser alguém a mais entre tantos milhões de alguéns?
“Logo mais é hora de voltar à realidade, a puberdade tardia, a bastarda terapia nunca feita, afeita a pedir perdão ao mundo singular.” Floriano, perdoem o erro, seu nome é Ano, está atônito com a verborragia que emerge de tão ignóbil ser. Mas, no derredor da dor, esse emaranhado que mistura tango e fado, casais casuais veneram o lábio colado, a devassidão do logo mais, a tristeza do após. Muitos estarão longe e longínquos quando a próxima meia noite vier. Certamente, abrigados nos seus cantos sem vozes, viverão seus descaminhos e artroses, camaleões de incertezas e veleidades, bastardos de si mesmos. Imaginários seres descompensados e cheios de mentiras, castas de uma religião que une nada ao passado. Assim, assoberbados de coisas nunca feitas ou a fazer, nadam em mares que se arrebentam nos corais do crivo sentimento.
“Que os ventos que eternizam fastios e fatalidades fátuas saibam quando parar.” Na fé que a fatalidade dá, Ano não deixa a dança acabar. Com certeza ela há de rodopiar noutro luar, colada com o amante que se acha o emir do Catar. A fé empertigada de perdigotos que vêm das bocas trançadas e traçadas no mesmo limiar, o lumiar da parcimônia que nem mesmo a maior amônia traz a sensação do amor a derrear. E tudo vira um universo particular, um espaço mínimo e fugaz. Espaço milimétrico entre a verdade explícita e aquilo que só o amor maior esconde dos olhos da inveja mordaz. Na canção que não existe em partitura, a particular vontade de amar e se derramar em prantos e travessias, travessuras de pegar nos seios quando isso era coisa de menino brejeiro.
“Hoje, sortilégios de Satanás, acho que estou nessa vertente de escrever talvez porque esteja perto de morrer. Também, de boa, um dia vamos todos nos foder, ou não. Talvez o fim não seja só esmaecer...” Ano, enfim, descobriu a essência de ser, ou sê-lo.

terça-feira, 16 de julho de 2024

O estranho e admirável Thelonious Monk

 Por Edmilson Siqueira


Há alguns anos, no mês de agosto, dei de presente a um amigo uma caixa com cinco discos de Thelonious Monk. Meu amigo, apreciador de jazz, não conhecia a obra do grande pianista. Eu conhecia um pouco e, por isso mesmo, comprei a caixa com os CDs certo de que estaria dando um bom presente. 
No dia seguinte meu amigo me manda uma mensagem agradecendo mais ainda o presente. Ele estava ouvindo e se deliciando com a música de Monk, superando qualquer expectativa. Perguntou se eu tinha os discos, eu disse que não e que seria difícil comprar de novo, já que o vendedor da Saraiva (lembram dela, lá no Iguatemi?) me disse que era o único. Então meu amigo me disse que iria copiar todos eles e me dar. E são esses cinco CDs "piratas" que tenho e que ouço sempre, um presente que acabou virando dois presentes.
E valeu a pena.
No início dos anos 1960, Monk ingressou na gravadora Columbia para trabalhar com Teo Macero, produtor de Miles Davis. Desta vez criou um quarteto, com o saxofonista Charlie Rouse, o baixista Larry Gales e o baterista Ben Riley. A caixa reúne gravações desse período: "Monk's Dream" (1962) - o álbum mais vendido de sua carreira, "Criss-Cross" (1962), "Solo Monk" (1965), "Straight, No Chaser" (1967) e "Underground" (1968). Todos idênticos aos originais, inclusive com os encartes.
Thelonious Sphere Monk, nascido em Rocky Mount, em 10 de outubro de 1917 , morreu em Weehawken, em 17 de fevereiro de 1982. Desde sempre foi considerado um pianista único, e, apesar de um estilo excêntrico, é considerado um dos mais importantes músicos do Jazz, pois tinha um estilo único de improvisar e tocar.
Diz sua pequena biografia inserida na Wikipédia: "Era famoso por seus improvisos de poucas e boas notas. Preciso, fazia com duas ou três notas o que outros pianistas faziam com nove ou dez. Cada nota entrava perfeitamente no contexto da música, numa mistura melódica e rítmica. Somente notas necessárias e muito bem trabalhadas. Sentado ao piano, tocava-o encurvado, com uma má postura, além de seu dedilhado ruim, com os dedos rígidos, que ficavam perfeitamente eretos e batiam nas teclas tal qual uma baqueta faria em um tambor. Excêntrico, Thelonious não era muito bem visto pela crítica da época, porém era unanimidade entre os jazzistas. Compunha melodias e criava ritmos nada usuais."
Só que os sons e ritmos "nada usuais" de Monk são agradabilíssimos aos ouvidos dos fãs de jazz, como pode ser constatado em qualquer dos cinco discos ou mesmo em outros de sua vasta discografia.
Mas a coletânea de CDs inserida nessa caixa dá um ótimo panorama da obra de Monk.  São quatro quartetos e um disco solo. E, ouvindo, ficará fácil perceber que, entre outras qualidades, a música de Monk é divertida e desde a primeira vez que se ouve percebe-se a abordagem única ao piano.
Não estranhe, mas logo se ouve acordes e notas que estão claramente fora do lugar, mas que em suas mãos parecem se encaixar perfeitamente. Um texto num dos encartes diz que "os músicos que o acompanham, John Ore no baixo e Charlie Dunlop na bateria, pegam as síncopes de Monk e dançam com eles usando um vocabulário musical incrível. John Ore e Frank Dunlop aparecem em três dos discos e Ben Riley (bateria), Larry Gales (baixo) no álbum Underground. Todos os quatro discos nos presenteiam com o grande saxofonista tenor Charlie Rouse, que se associou a Monk por uma década. Um dos discos - Underground - tem uma foto de capa tirada em seu apartamento cheio de objetos malucos e fora do lugar que aumentam sua mística - dizem que ele tinha uma vaca de estimação e a deixava correr livremente em seu apartamento." ... Thelonious Monk influenciou quase todos os músicos de jazz modernos com sua abordagem angular para solos e composições."
O álbum "Criss Cross" resume bem a fórmula de Monk: metades com composições bastante curtas mas muito densas, com uma estrutura rítmica e melódica por vezes confusa (a peça homónima e "Eronel"). E outra metade com um coquetel dinâmico de composições rítmicas e sólidas ("Think of One", "Pannonica") e baladas delicadas (o standard "Don't Blame Me" magnificamente interpretado por Monk, e "Crepuscule with Nellie", numa versão sublime de densidade e concisão.



O álbum "Straight No Chaser" contém peças mais longas, onde são especialmente os solistas que brilham pela sua inventividade e capacidade de resposta. Ouça com atenção, na peça homônima, revisitada para a ocasião, o acompanhamento de Monk por trás do solo de Rouse: ele pontua o fraseado do saxofone com notas de piano espaçadas e dissonantes (o que muitas vezes cria um efeito cômico marcante), então, finalmente, silencia, deixando Rouse com baixo e bateria. Da mesma forma, as estranhas harmonias de "Locomotive" e a forma como os solos da gravíssima "Japanese Folk Song" (incluindo a bateria) persistem em repetir a melodia de forma quase matemática, não deixam ninguém indiferente.
“Underground” segue o mesmo espírito. “Raise Four” desenvolve um tema inebriante repetido mecanicamente num ritmo não tão óbvio quanto parece (e com um belo baixo de Gales); "Boo Boo's Birthday", uma das composições mais divertidas e complexas do disco faz muito sucesso. E ainda há "Green Chimneys", uma peça emblemática  que mistura notas de piano e saxofone.
O álbum "Solo Monk" contém gravações de Monk sozinho ao piano. Aí encontramos clássicos interpretados com emoção ("Ruby My Dear", "Ask Me Know" e o seu final com notas ressonantes sempre surpreendentes), blues com batidas claras e precisas ("Monk's Point").Mas é sobretudo “I Should Care”, de 1min56, que domina o conjunto: música ao mesmo tempo complexa e clara na sua execução, surpreendendo sempre nas progressões de acordes e notas.
Tudo já seria fantástico se esta edição oferecesse apenas os álbuns originais. Mas eles foram generosos o suficiente para adicionar takes alternativos como faixa bônus. Podemos assim ouvir um primeiro rascunho de "Green Chimneys" gravado durante as sessões de "Straight, No Chaser", o primeiro take de "Bolivar Blues" onde ouvimos a construção da peça (Monk ainda não incorpora os seus trinados hipnotizantes), e muitas outras belas obras.
A caixa está à venda na Amazon por 249 reais e no Mercado Livre por 199,90.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Madrugada na tarde com Leny Andrade e Cesar Camargo Mariano

 Por Ronaldo Faria


 

A madrugada chegou mais cedo, sem métrica ou medos, em plena tarde quente, na quentura que deixa a gente demente e, quiçá, ausente. Que nos joga nas hélices de um ventilador que faz voar a dor que transita no quadrilátero do fim. Mas parece madrugada, dessas que padece de tempo para amanhecer e traz picardia, neons não vistos pela clarividência e a claridade, ausência de corpos a se delinearem.
A madrugada, tragada de blasfêmias e pecados, tratados e translúcidos recados, vocifera que logo chegará a aconchegar corpos, deitar em camas profanas e viajar num tempo que não é o seu, e muito menos de Orfeu. Quem, em sã consciência, dormirá às cinco da tarde? Logo agora em que transitam tantos pleonasmos, tantos sentimentos, tantas coisas que a gente não sabe de onde vem. Certamente, na mente abstrata que nada trata, o negror é a síntese da poesia e da dor, do amor.
A madrugada deixa a poesia mais volátil, tátil, com cheiro de fim e cor de algo a mais, mesmo que o mais seja assim, eu em mim. Afinal, no final tardio e urdido de lamúrias e alguém de Astúrias, vale a primazia que a aspirina de amanhã trará. Para os tantos acalantos e lamentos, astrofísicos e atrofiados desejos, o que vale é o ensejo que pode vir de si mesmo ou do primata Redentor. Agora, com a azia antecipada, constipada talvez, espero somente a minha vez de ser feliz.

sábado, 13 de julho de 2024

Ao som de Vinicius e Toquinho

 Por Ronaldo Faria

Vem, Vinicius de Moraes. Venham tardes de prazer, de fugas do mundo e viver. Vem amor que nunca se foi. Venham promessas cegas, carnavais passados, areias de pés molhados. Vem mulher da cidade, caipira ou do exterior. Venham medos e tragédias, alegrias e comédias, copos de beber saudades e prazer. Vem ilusão de ser feliz. Venham, depois e, pois, as noites mal dormidas, as anginas, as chuvas desgrenhadas.

Vem, poetinha. Venham letras e rimas, rumos e sinas, cataclismos e orgias. Vem pirotecnia do antes no fechar de cortinas do espetáculo. Venham universos de versos, versículos temerosos do pecado, incongruentes e ausentes na esquina finda. Vem corpo ereto, deitado ou tosco no tosquiar do amor. Venham conquistas ínfimas, vitórias ganhas no grito, derrotas no apito. Vem decágono que o coágulo do coração não deixa de habitar. Venham dez histórias, dez blasfêmias, dez fêmeas de nunca esquecer.

Vem, branco mais preto do Brasil na linha direta de Xangô. Venham goles a olhar os olhos da amada, risos de quem sabe tudo e nada, luares repletos de luzes na escuridão do céu. Vem mar em maresia plena. Venham Iemanjá, Marias, Anunciações e Carolinas. Vem próxima musa, reclusa nalgum lugar nunca visto e nem antes descoberto. Venham lençóis amarrotados, sóis alumiados, nuvens a voarem num universo largado. Vem o que tiver de vir, porque estarei, só pra variar, aqui. Venham toscas namoradas  sem muita espera, sem cair da esfera, sem acordar a fera que dorme dentro de mim.

Vem, Vinicius amoral e fatalista, fatal. Venham lamúrias que nos encontram no após do depois, fúrias da separação e da canção, unção famélica da tristeza e da melancolia. Vem morena que caminha a enlouquecer os marmanjos em seus meandros. Venham medos desprovidos de certeza, cuidados mil na rosa que há muito despetalou, visões plúmbeas de um horizonte que parece simples. Vem estrada já seguida e evitada. Venham visões polares que a íris começa a embranquecer, delírios do garoto de colchas de retalhos, alhos e bugalhos.

Vem, poetinha. Venham loucuras que o álcool dá, dádivas que a certeza da morte dão no ouvir de outro Ronaldo que era freguês de sebo como eu. Vem aquilo que tiver de ter sido. Venham corpos amorfos, cinzas esperadas, vermes que possam ter subtraído a vida e da sorte. Vem barco que ainda espera o porto de chegar. Venham mulheres cheias de saudade a esperar o marinheiro fagueiro, os presentes do Oriente, falácias que se conta quando não há nada a contar. Vem universo reverso e sagaz. Venham garimpeiros de músicas, catadores de emoções, buscadores de torvelinhas paixões astrais. 

O mundo nos espera. Ele vos espera. Em terra.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Praguejo em samba-funk

 Por Ronaldo Faria

 

Um Cavalo de Tróia se meteu na tramoia. No colo da mulher, a joia. Pra rimar, a selva tem a jiboia e no mar o menino segura sua boia.
“Alô, rapaziada, cadê aquela apaixonada tarada? Pelo visto, vamos ter mais uma noite a virar prato vazio sem mandioca! Seca na horta.”
No som alguém diz que temos de voltar à pilantragem. Mesmo se estiver à margem, com saudade ou na periferia pueril da cidade.
Nas frases desconexas, um samba zen, um imbróglio que se tem, o carro a correr mais de 200 para driblar o inoperante e errante radar.
No mar, decerto e com certeza, se a tese da travessia sob a chuva não rimar, ondas e sereias se misturam aos troços que flutuam no soprar.
No asfalto quente que queima as patas e os pés de andarilhos, ninguém teme passar pelos trilhos para sua amada do subúrbio beijar.
Na mesa do passado, cubra libre e gim com tônica estão atônitos com o casal afônico que troca línguas, olhares e toques sentimentais.
Quem rogou a praga ou mandinga o fez tão bem que nem a boa da lata consegue fazer dela um interregno em vidas proscritas e desertas.
A musa louca estrangeira de casamentos mil deve estar agora abotoada numa camisa de força ou desbotada nas madrugadas molhadas?
Afinal, raio em X acerta na mosca ou a mosca pousa resoluta, como uma filha da puta, justamente no lugar que determinará a sentença final?
Em uma semana chega 2024. Quem não conseguir segurar a onda que pelo menos se preste a cair de quatro e resistir. Algo, saibam, irá florir.
As contas que chegam e despencam feito tempero do feijão tropeiro no bolso acham que são eternas. E, voluptuosas, carnudas, são mesmo.
“E aí, rapeize, agora vai? Há décadas que diz que vai e, de repente, feito repente, não vai a lugar nenhum. O poeta errou de maternidade.”
Carioca sem oca a ferver os ovos no asfalto, uma ova! Do ovário da baiana surge a trama que parece nunca virar rap, funk e nem sequer reggae.
No batuque do atabaque, o baque da arritmia, a inóspita e sombria trilha de uma cascatinha que chega do morro e vira torno para a vida tornear.
Na sala de aula, a opulência da morena vinda de outros mares, alhures lugares e olhares. Na lousa, Karl Marx vira cupido de prenúncios do Núncio.
Derrubar o morro ou não? A estrada vai chegar? De que adianta com o “progresso” querer prosear? “Senhores motoristas, vamos nos engarrafar.”
O vento que venta no ventilador daqui não é o mesmo que joga o bafo quente do ventilador daí. Logo, nos ventilemos para não ventilarmos mecanicamente.
Fernanda Abreu é como uma biografia que a abreugrafia daria se tivéssemos seguido os maços e descompassos que nos brandiam vitoriosos nas orgias.
“E aí, galera, em 2024 vamos cruzar a esfera?” O vendedor de pacotes turísticos tenta descarregar a mais rasteira quimera. Acho que irá se foder...
“Diz pra nós, sangue bom: você preferia que voltasse o grapette, o crush, o mineirinho ou apenas o velho, gelado, achocolatado e bom chicabon?”
Tempo bom em que o pipoqueiro que estourava milho defronte da escola podia vender o Zorro, geleia colorida e amendoim sem cocaína e afins.
Agora fodeu: gastei o dinheiro do barbeiro em doce. Pra quem jogo a culpa? Na inflação que chegou no golpe de 64 ou no dono comunista da quitanda?
 
(Frases dedicadas à vascaína Fernandinha Abreu)


terça-feira, 9 de julho de 2024

Natal de raiz

 Por Ronaldo Faria


Na roda de samba o Papai Noel dança com passos loucos a dobrar os joelhos. Após os festejos com copos mil de cerveja, cachaça e até anis, mesa farta, batuque e cabrochas seminuas, o importante é esquecer que Jesus pediu a Deus de presente torrar os habitantes da Terra ao Sul e congelar aqueles do Norte. A todos, a morte, de insolação ou hipotermia. Para ele, tanto fazia... Por isso, o Papai Noel cover daquele que se esquece das crianças mesmo em prece queria apenas rodopiar e brincar de sonhar.
Sonhar com o aumento do salário que não vem, a condução refrigerada que não tem, as contas que caem aos borbotões deixando de chegar. Para Noelton Ramos da Silva, nascido durante a procissão de Ramos, quando sua mãe foi levada com urgência à casa da parteira mais próxima, o mínimo necessário era deixar de ser operário. No calvário matinal, porém, tudo isso parecia somente delírio casual. O importante agora é dançar, suar, derramar um gole pro santo e esquecer a pindura no boteco do João.
Uma ou outra criança privilegiada brinca com carrinho, bola ou boneca doados por um vereador que espera no próximo ano se reeleger. Outras que chegaram atrasadas à distribuição olham com inveja ou choram por mais um Natal de mãos vazias e dor. O som que sai do repenique, do cavaquinho e do pandeiro, da caixa de fósforo que, volta e meia, para de acompanhar e um cigarro acender, é o que dá o tom. Depois das Tordesilhas vencidas, vem o som de Palmares na esperança do sorriso mesmo que breve.
Do céu, o sol declina em centígrados aos milhares acima da média o drama que já virou comédia. Na trama que existe nas ruelas das favelas e comunidades, a chama desprovida de vida, ávida de mais outra vida. “Jéssica, traz mais umas várias!” Com o Natal antevendo logo depois o Ano Novo e um Carnaval que não vai demorar, o importante é vadiar. Não esquecer de fechar a tranca do lar e ter a esperança de que a pança não vai murchar. “Jéssica, manda o Ednaldo botar sem dó mais espetinhos na churrasqueira!”
Para Noelton, Papai Noel por poucos dias no shopping que normalmente não entra, o que vale agora é cantar alto, sambar de bota de salto, encher de esperança o saco vazio que descansa na escadaria da laje. Uma ou outra pomba faz barulho e arrulho perto das caixas acústicas e Zezinho tem liberação do dono do morro pra meter-lhes estilingada. Lá embaixo, onde o som é de jingle bell, tudo parece diferente, ausente, intermitente. Graças à geografia, do alto vê-se mais de perto o trenó que a tracejada derruba sem dó.
 
(Ao som do pagode ao vivo)


segunda-feira, 8 de julho de 2024

Muito prazer Bruna Caran

 Por Edmilson Siqueira



Eu não conhecia Bruna Caran, mas isso é coisa de alguém já na terceira idade que se fechou um pouco no jazz e nos grandes nomes brasileiros que começaram nos anos 60 do século passado e hoje estão com mais ou beirando os 80 anos. Ou já morreram. Claro que conheço bastante gente nova que fez ou faz coisas boas, mas são raros aqueles que chegam com a mesma qualidade de gerações passadas. Sei também que tem gente que eu nunca ouvi falar e que vendeu muito mais discos que os grandes do passado. Mas, para mim, número de vendas de disco nunca foi referência para a qualidade, no Brasil e, aliás, na maior parte do mundo. 
Por essa e outras eu não conhecia Bruna Caran, uma intérprete que me surpreendeu com o excelente disco "Afeto e Luta", onde ela canta somente músicas de Gonzaguinha, esse cantor e compositor do primeiro time da MPB que, por uma desses azares da vida, nos deixou cedo, vítima de um acidente de carro.
Fiquei sabendo da existência dela porque recebi, de uma amiga, a Beth Ribeiro, um videozinho no WhatsApp onde ela conta a origem da música "O que é o que é?" o sambão de Gonzaguinha que ganhou as paradas e até hoje, depois de mais de 40 anos (foi lançado em 1982), ainda é sucesso por aí, sendo tocado e regravado constantemente. E merecidamente, diga-se, porque é delicioso.  
Para quem, como eu, não sabia da origem dessa música, conto aqui rapidinho, conforme o depoimento da Bruna: Gonzaguinha mandou cartas para seus fãs com uma pergunta: o que é a vida pra você? Recebeu uma enxurrada de respostas, todas preservadas até hoje pela irmã do compositor, que é produtora artística. A carta que ele mais gostou era escrita com uma letra infantil que dizia que a vida para ele, um garoto de oito anos, era brincar, andar de bicicleta, e que, de qualquer jeito, a vida era bonita. Então Gonzaguinha resolveu abrir o samba, a capela, dizendo que prefere ficar com a resposta das crianças, a vida é bonita...



A partir do vídeo, fui saber quem era Bruna Caran e descobri que sua carreira já tem estrada. Nascida em Avaré (SP), filha de uma família extremamente musical, começou cedo as aulas de piano e canto. Aos nove anos passou a fazer parte dos Trovadores Mirins e em seguida dos Trovadores Urbanos. É formada em Música pela Unesp desde 2010 e toca, além de piano, violão, cavaquinho e acordeom. Não bastasse tudo isso, quando cresceu se tornou uma mulher extremamente bonita. Tanto que trabalhou na tevê como atriz.
E já gravou muita coisa. Foram quatro CDs antes desse "Afeto e Luta", com as músicas de Gonzaguinha, que agora deve se tornar um DVD, como "Alívio", um belo DVD gravado em 2021, que já contém o famoso samba de compositor.
A gravação de um disco inteiro com músicas de um artista que marcou época por seu talento que, com certeza, se vivo fosse, seria um nome ainda muito maior da MPB, é uma dessas esperanças que a gente acaba tendo diante de uma realidade onde a boa música passa longe dos ouvidos da maioria do público, que é massacrado por sucessos instantâneos que desaparecem no ano seguinte, junto com seus "cantores". Discos como "Afeto e Luta", além de nos dar muito prazer ao ouvir, incentivam bons compositores a continuarem tentando um lugar ao sol e isso é bom para a música e para a nossa cultura.  
"Afeto e Luta" é muito bonito do começo ao fim. No YouTube você pode ouvi-lo inteiro: https://www.youtube.com/watch?v=nesBahHE0Mc. E o CD está à venda por aí, nos bons sites do ramo.
 


Segue a lista das músicas, com ótimas participações especiais entre parênteses:
1. COM A PERNA NO MUNDO 
2. VIVER, AMAR, VALEU
3. SANGRANDO
4. EXPLODE CORAÇÃO
5. BELO BALÃO
6. SEMENTES DO AMANHÃ (Participação de Leila Pinheiro e Nanan Gonzaga)
7. EU NEM LIGO (Participação de Zeca Baleiro)
8. REDESCOBRIR (Participação de Zé Renato)
9. É (Participação de Preta Ferreira)
10. CAMINHOS DO CORAÇÃO - Música incidental: A Vida do Viajante de Hervé Cordovil e Luiz Gonzaga - (Participação de Renato Braz).

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Farelos de Emicida

 Por Ronaldo Faria

 

Farelos de vira-latas caramelos se misturam com o inverso do universo onde o verso sai trôpego e trágico. Atávico, cármico, delirante, procrastina o que, numa tina vazia e entregue à azia, se enche de vinho e rotina na retina. Nesse plano, onde mapas e rotas viram restos no reto discreto projeto que nunca está ereto, o caminho é torto e difuso. Confuso. Na junção em que a oração musical torna tudo carnal e Carnaval fora de hora, o final em que milhares de letras e notas norteiam a poesia e o desmazelo que chegam sem zelo.

Farelos de anos que repousam quietos e tétricos, onde o profano é insano e a magia se volatiliza em frágeis momentos que os tormentos brincam de orações e orgias. Nas lamúrias do bêbado caído nas suas ruas sem esquinas, no flagelado que morre gelado no calor do inverno, a odisseia de navegar mil mares secos e milhares de ressequidas e esquecidas bocas vermelhas e tetas febris. No agora que já virou depois, presente cheio de passado, o amargo saber que há nessa história tanto de mim e pouco de você.

Farelos de farofas sem perfume, oratória da amante que diz esperar que agora, no presente e no passado, role na metrópole a orquestra de gaitas de fole. No rolê emblemático que sobrevive há décadas na roda da Terra a rodar sem sair do lugar, centilhões de fonemas e temas, loucuras e beijos e perdas que perdigotos derramaram à saliva salva nos lençóis. A cantar, o menestrel de bordel deseja todas coxas. No olhar negro de vilipêndios e compêndios, o largar que se esparrama nas tramas dos loucos tremas mortos.

Farelos de logo mais é hora de parar de escrever e viajar, no garimpar de vírgulas e pontos, consoantes e vogais, coisas morais e amorais. Sevícias e vícios desconjurados e descomunais. Pelos canais dos rios e mares, veias que correm em sangue exangue, volúpias e coisas de quem se acha sagaz, o mistério da busca limítrofe entre a loucura e a paz. Nas avenidas desconexas que levam a nenhum lugar, casais juntados pelo amor tentam chegar e se achegar para na essência da madrugada doentia fazerem a vida desabrochar.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Saudade ao som de baião

 Por Ronaldo Faria


Saudade, essa maldade intrínseca e seca que devora a gente em cada pedaço de ser. Que não devolve a vida que nos faz falta, como se o destino fosse o segundo de um tiro de revólver a revolver o que o coração não deixa sumir no sumidouro que é cada dia sem o bem-querer.
Saudade, essa maldade malfadada peluda e pungente, que destrói a essência da gente. Que não nos deixa mais dormir em paz e se apraz por nada ser. E se transmuta muda a se rever em olhares negros e iguais de milhares de pixels que os olhos juntam mistérios e sofreguidão.
Saudade, palavra nossa, brasileira, rasteira, veemente e dormente, aos seres doentes à busca daquilo que se deixou perder. Iniqua e inócua no dicionário que nenhum vocabulário dá. Na margem da crença, a bênção da espera de juntar vidas e cinzas num único e efêmero amém.

terça-feira, 2 de julho de 2024

Pixinguinha, 100 Anos

Por Edmilson Siqueira 


Não, Pixinguinha não faria 100 anos neste ano. Já teria feito em 1997, ele que nasceu no fim do século 19, em 1897. O título desse artigo se refere a uma homenagem feita a ele, exatamente naquele ano, com o lançamento de um luxuoso álbum, com dois CD, um magnífico encarte e belas capas duras. Coisa de primeiro mundo, rara por aqui até hoje.
Talvez se conheça pouco da obra desse grande mestre da música brasileira. Você citaria, de cabeça, cinco músicas dele? Além de Carinhoso, Rosa e Lamentos, fica difícil, né? (aliás, se tivesse feito só essas três já teria sido genial). Mas Sérgio Cabral, o pai, jornalista, biógrafo e grande conhecedor da música popular brasileira, considera Pixinguinha um dos três maiores nomes da nossa música. 
Pois ele e Hermínio Belo de Carvalho são os autores dos textos que acompanham a luxuosa edição dedicada a Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha, compositor, arranjador, maestro, professor, flautista e saxofonista. E bom em tudo isso. 
"Ago Pixinguinha - 100 Anos" é o nome do álbum, um projeto artístico e uma produção de Herminio Belo de Carvalho que é nada menos que pesquisador, escritor, autor de letras memoráveis da nossa música (inclusive parcerias com Pixinguinha) e que dedicou toneladas de linhas ao mestre, sempre louvando sua genialidade.
As gravações das 20 faixas dos dois CDs, com exceção das gravadas ao vivo, foram realizadas nos estúdios da Som Livre e reuniram times fantásticos de músicos, arranjadores e cantores. O resultado foi um painel precioso da obra de Pixinguinha, passando tanto pelas músicas com letras antigas e com algumas atuais, bem como com as instrumentais, que revelam toda a qualidade e complexidade das composições de Pixinguinha.
Como se não bastasse todo esse material de primeira qualidade, o encarte que traz um lindo texto de Hermínio e uma apresentação deliciosa escrita por Sérgio Cabral, é ocupado, em sua maior parte, por uma enorme entrevista com Pixinguinha, onde ele conta tudo que se lembra de sua vida, inclusive o ano que passou tocando, com seu conjunto, na Europa, mais precisamente em Paris. Sim, os franceses apreciaram também a genialidade de um grupo de músicos brasileiros no início do século passado, de novembro de 1921 a abril de 1922. 
Como menciona o ótimo site "Brasilian Fotográfica" (https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?tag=shererazade-dancing): "Foi o primeiro conjunto brasileiro a apresentar na Europa a música urbana produzida no Rio de Janeiro na época. Tocaram durante os seis meses que ficaram em Paris, na época a capital cultural do mundo, choros, maxixes, polcas, tangos brasileiros, sambas, lundus, batuques, valsas, cateretês, emboladas, cocos e toadas sertanejas. Chegaram em 11 de fevereiro, no porto de Bordeaux, na França e foram recepcionados na Gare d´Orsay, em Paris, no dia seguinte, pelo Duque e pelo jornalista Floresta de Miranda, secretário particular de Guinle. Nos meses seguintes, como Les Batutas, seriam atração fixa numa badalada casa noturna de Paris, o dancing Shéhérazade, na Faubourg Montmartre, 16." 



A entrevista é, na realidade, uma síntese do depoimento que Pixinguinha deu ao Museu da Imagem e do Som do Rio em 6 de outubro de 1966 e 23 de abril de 1968, depoimentos esses que envolveram como entrevistadores, o próprio Hermínio, Cruz Cordeiro, Ilmar Carvalho, Ari Vasconcelos, Hélio Marins e Jacob Bittencourt (Jacó do Bandolim), e tiveram a direção de Cravo Albin, diretor do Museu. 
 O depoimento, para se ter uma ideia da abrangência, começa com Pixinguinha explicando seu apelido que, na verdade, era Pizinguim, que foi dado pelo sua avó, africana, (numa época de epidemia no Rio, ele contraiu a doença chamada "bexiga" e o apelido virou Bexiguinha, depois Pexinguinha que ele não sabe como virou Pixinguinha) e vai até seus sentimentos de completar 70 anos e ter esperança de viver mais "uns dez anos pelo menos", o que não ocorreria, pois ele morreria cinco anos depois do segundo depoimento, em 1973.  
Mas é um depoimento sensacional, não só pelo que diz o mestre, mas por pelo fato de seus entrevistadores serem todos grandes conhecedores da vida e da obra de Pixinguinha.
Os dois discos são de dar água na boca do apreciador da boa música brasileira. Com arranjos modernos, ótima gravação, as músicas contam com a fina flor da interpretação brasileira. Segue a lista (entre parênteses estão os parceiros de Pixinguinha, alguns dos quais colocaram as letras muito depois das músicas feitas ou mesmo depois que Pixinguinha já ter morrido):
 
Disco Sambando, Chorando
1) Carinhoso (com João de Barro) - Nana Caymmi
2) Mundo Melhor (com Vinicius de Moraes) - Alcione
3) Rosa - Caetano Veloso
4) Lamentos (com Vinicius de Moraes) - Chico Buarque e MPB4, na melhor gravação cantada dessa música
5) Fala Baixinho (com Hermínio Bello de Carvalho) - Maria Bethânia
6) Cochichando (com João de Barro e Alberto Ribeiro)- Zezé Gonzaga e Eduardo Dusek
7) Gavião Calçudo - Zeca Pagodinho
8) Um a zero (com Benedito Lacerda e Nelson Ângelo) - Arranco de Varsóvia
9) Vou Vivendo (com Benedito Lacerda e Hermínio Bello de Carvalho) - Cristina Buarque e Sérgio Ricardo
10) De Mal Pra Pior (com Hermínio Bello de Carvalho) - Paulinho da Viola
11) Página de Dor (com C. Nunes) - Ney Matogrosso
12 - Benguelê/Yaô (com Gastão Viana) - João Bosco
13) Ingênuo (com Benedito Lacerda e Paulo César Pinheiro) - Simone e Baden Powell
14) Patrão Prenda Seu Gado (com Donga e João da Bahiana) - Fundo de Quintal
 

Disco Tocando, Tocando
1) Carinhoso (com João de Barro) - Tom Jobim
2) Rosa - Hermeto Paschoal
3) Tapa Buraco - Radamés Gnatalli e Camerata Carioca
4) Um a Zero (com Benedito Lacerda) - Raphael Rabelo e Paulo Moura
5) Ingênuo (com Benedito Lacerda) - Radamés Gnatalli, Seu Sexteto e Edu
6) Naquele Tempo (com Benedito Lacerda) - Baden Powell
7) Marcelo Quer Água - Camerata Carioca
8) Pula Sapo - Pixinguinha
9) Urubatan (com Benedito Lacerda) - Pixinguinha
10) O Gato E O Canário (com Benedito Lacerda) - Água de Moringa
11) Samba do Urubu - Pixinguinha
12 Lamentos (com Vinicius de Moraes) - Jacob do Bandolim e Época de Ouro
13 Proezas de Sólon (com Benedito Lacerda) Jacob do Bandolim e Época de Ouro
 
O álbum está à venda nos bons sites do ramo com preços variados. E podem ser ouvido na íntegra em https://immub.org/album/ago-pixinguinha-100-anos.

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Presságio natalino

 Por Ronaldo Faria


O Natal corre brejeiro e cheio de cheiros, madrigal. Se esconde nas cercanias de casarios perdidos no tempo ao vento quente que voa e revoa entre as galinhas e porcos que fugiram do facão e das mesas adstringentes. As lamparinas acesas se sobressaem na escuridão em derredor. Há pouco lugar para a dor. No alforje do homem suado que volta de aboiar o gado reticente, o presente. Na igreja, beatas trocam orações e dedos a cruzarem as contas do terço que passam rápidas a pedir esperança e chuva tardia. Logo mais será dia 25. O dia que, dizem, nasceu um Jesus. Num lugar quase igual a esse do sertão: pobre, esquecido do mundo, largado à sua sina. Logo a solidão se dará à remissão de cada um, em nós.
Daqui a uma semana, pensava Florêncio, montado no cavalo que seguia arfando os últimos metros da labuta animal, o ano vira. E o mundo vira outro mundo. Ou, como já disse um poeta, Viramundo. E tudo promete renascer: esperanças, crenças, as tranças de Maria, acalantos, prantos, despojos, jogos de azar. Mas, infelizmente, na frente da realidade, as contas na venda do Seu Antonio, a falta de comida no prato, o afago demente, a mente submissa às suas agruras, as tardes de tristeza pungente de cada gente permanecerão, ou não. No alpendre, Maria sorri seu sorriso de branquear a lua mais luzidia. E abre os braços para abraços e tratos de corpos que fluirão em suores na sentença do amor maior.
Hoje, na insensata lucidez que a loucura dá, Florência sonha com as flores que, decerto, seus pais anteviam para ele ao lhes dar tal nome. Mas, como no sertão há florescer? De onde tirar a água que dará sobrevida aos caules carcomidos e finos que não dão nem comida pra formiga? Talvez agora essa seja a menor das indagações. As próximas ações são de entrega àquilo que a vida determinou como sandice ou louvor, porvir de si mesmo. O momento, no lamento da vaca a ver seu bezerro morrer, é rever Maria, fazer de segundos a mais a tresloucada e demorada orgia, acreditar que vale crer. Em algum lugar, no homem vestido de vermelho quente no calor das terras tropicais, os sinais se evaporam a mais.


sábado, 29 de junho de 2024

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria


O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. Afinal, como disse o presidente louco, se fosse sólido, comê-lo-ia. Afinal, para quem comia Eloá, o que viesse era lucro. E lucrar do nada já é um ganho a se fazer e parafrasear.
Mas os bares parecem que fecharam mais cedo, no enlevo do final de mais um ano. As pessoas, ao que parece, preferem se tornar misantropos, seres amorfos e trôpegos, quando o ano está para dar o último suspiro. Como o foi o derradeiro suspirar da filha amada num leito frio de alumínio.
Mas, afinal, para que servem os bares, esses espaços de lumiares e luminárias que se prestam para o garçom cobrar o devido pelas loucuras e angústias, augúrios, tragicomédias vespertinas para as anginas de gente que sobrevive na sobrevida que a chuva que vem com o Verão que se derrama na súbita trama?
Nas mesas que a volúpia da loucura traz para embriagar a saudade que nada mais traz do que os erros cometidos e tardios, vadios, banidos, os seres múltiplos e metamórficos se perfazem em presto no resto da sanidade atroz. No caixa, o sorridente Genésio nem lembra mais que já foi rima para mulher do vizinho.
Contudo, porém, o bar está cerrando as portas que não existem e molham os pés dos raros bebuns que ali resistiram e persistiram. A madrugada que daqui a pouco se tornará dia, torna o torno que cria novas formas numa fórmula molecular. E brinca de esquecer a vida, batuca na cuca e aconselha um “vá dormir”.
No mundo que parece se entreolhar, o segurança maior que o pé direito que se endireita no bar, mostra que é hora de “transitar”. Quem, na sã consciência que ainda resta e presta, pensará desigual? Estrada retomada, chapiscos de parede mortal a riscar os braços, abraços que não chegarão no dormir do então.
Sentimental, diríamos um quase débil mental, Hermínio, eflúvio como massa corpórea, chega ao lar. Lá fora, no aforismo que uma baleia nunca conseguirá engolir, o mundo persiste e insiste em inexistir. Quisera ele se chamar Jonas. Ao menos seria bíblico. No istmo da saudade, rio e mar esperam sobreviver antemão.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Sá e Guarabira

 Por Ronaldo Faria

Um baseado chega naquilo que se baseia ser a ínfima realidade certeira e brejeira. E faz o mundo voar, volatizar, traceja tempos e têmporas, refaz passado e realidade, átimos e átomos de um pensar esfarelado. Nossas lembranças, nas reentrâncias desmedidas, são apernas coisas escondidas num pedaço de cérebro que logo se desfará. No lugar, um ilusório brincar de saber que tem que ser agora porque a sanidade está a derrear.

Genovésio, longevo ser que pensava morrer há vinte anos, vive a noite como se ela fosse um açoite desses que sangram nas costas um sangue que desce sem parar. Para ele, elástico nas formas de escrever, existe o limite da essência do nunca voltar. De não poder refazer erros de outrora, quimera ilusória, aurora que nunca surgiu. A urgir, a urgência de ser. Nas estradas demarcadas e voláteis, algo que ficou e ninguém poderá tirar.
No mundo daquilo que hoje se sabe, no pó fortuito de toda a estrada, a imaginária e insana realidade de tempos no atrás de atrozes, nas artroses do pensamento e do lamento, do alento descompassado da flor que nasce sombria no fulgor. No fundo de uma angústia, a dor. A insana chegança de querer transformar passado em presente redentor. No mundo abstrato, o destrato que um lampião de querosene hoje se faz em detrator.
Lembranças surgem e emergem dos cântaros, correm nos poucos neurônios que existem e prestam são, sobremaneira, maneiras de acreditar que há como eternizar momentos de alentos para o que  virá. Na madrugada, canto de sabiá. Na insurgente crença que a gente traz, Genovésio faz seus versos para ninguém. No apartamento ao lado chora um neném. Quando ele para, a avó diz amém. Do futuro, ninguém sabe o que vem.

Zé dá o Tom final

 Por Ronaldo Faria “Em quantos mililitros parar? Não enquanto existir espaço vago e vazio nalgum lugar e banheiro altaneiro em rota segura n...