terça-feira, 29 de outubro de 2024

Stanley Jordan, um clássico

Por Edmilson Siqueira



Stanley Jordan, aos 63 anos, é considerado um dos melhores e mais completos guitarristas do mundo. É tão bom na guitarra que seu lado pianístico nem sempre é citado, mas ele começou na música aos seis anos de idade aprendendo justamente piano. Porém, aos onze anos, iniciou os estudos de guitarra, seu principal instrumento até hoje. Mais tarde, começou a tocar em grupos de rock e soul. Em 1976, portanto aos 16 anos, ganhou um prêmio no Reno Jazz Festival de Nevada.
E andou por vários festivais de jazz ao mesmo tempo em que estudava teoria musical e composição da Universidade de Princeton, se formando por lá. Mas, mesmo tempo diploma de músico e podendo partir para uma carreira acadêmica mais sólida, preferiu continuar na rua, onde sua incrível técnica chamou atenção de ninguém menos que o executivo Bruce Lundvall, então no selo Elektra Music. Lundvall era, antes, da Blue Note. O convite a Jordan foi recusado - ele achava cedo demais para gravar um disco. 
Um ano e meio depois, Lundvall foi convidado para reativar o lendário selo Blue Note e convidou novamente Jordan para gravar. E desta vez ele aceitou. O disco "Magic Touch" que saiu dessa união, foi o primeiro da nova fase da Blue Note e chegou ao topo das paradas de jazz, tendo vendido mais de 500 mil cópias, sendo aclamado nos Estados Unidos e na Europa.
Foi uma estreia impressionante e, a partir daí, Stanley se consagrou definitivamente, exibindo sua técnica diferenciada de tocar guitarra - ele queria levar a complexidade sonora do piano para a guitarra e, por isso, criou o o que ele chamou de "técnica do toque", que consiste em tocar as cordas pressionando-as rapidamente contra a madeira do cabo da guitarra, tanto com a mão direita como com a esquerda. Claro que precisa ser um gênio para tocar assim e ele toca com a maior tranquilidade. 
O disco que estou ouvindo de Stanley Jordan é um que une o gosto pela arte de tocar guitarra com prazer de tocar à frente de um público, pois foi gravado ao vivo e ele mesmo já disse que nessas horas ele se sente mais à vontade ainda para exibir suas qualidades.


 
Trata-se do "Stanley Jordan Live in New York", gravado em 1989 no Manhattann Center e lançado nove anos depois justamente para celebrar os 60 anos da gravadora Blue Note. E é o próprio Bruce Lundvall que assina o texto do encarte do CD, onde, entre outras coisas, assinala: "Esse concerto captura Stanley no auge da forma. Considere como um artista pode remodelar padrões com seu solo próprio e virtuoso, transformando as músicas de Coltrane e reconstruindo uma canção pop de Rod Temperton com suas próprias características. Stanley Jordan é realmente um artista singular."
Sobre o disco, que era para ser uma gravação em vídeo, a critica especializada disse o seguinte: "Sua justa seção rítmica — com Jeff "Tain" Watts na bateria, Kenny Kirkland no piano e Charnett Moffett no baixo — conduz a complexa e comovente execução de guitarra de Jordan através das faixas acústicas de destaque como "Impressions" e "Cousin Mary", ambas de John Coltrane. Mas os destaques do show são as duas peças solo de Jordan, o blues "Willow Weep for Me" e o clássico "Over the Rainbow", onde ele se apresenta com uma liberdade e virtuosidade estimulantes. Jordan resiste à tentação de deslizar para o então onipresente som de jazz suave, tornando este um lançamento atemporal."
Ou seja, ele pode ser ouvido a qualquer tempo que sempre levará prazer aos ouvidos mais exigentes. 
Além das quatro já citadas, as seguintes músicas compõem o disco: "Autumn Leaves" (Jacques Andre M. Prevert, John H. Mercer e Joseph Kozma); "For You" (Charnett Moffett); "Flying Home" (Stanley Jordan); "Still Got The Blues" (Stanley Jordan) e "The Lady In My Life" (Rod Temperton). 
Ah, os próximos discos do grande guitarrista terão música brasileira. Ele tem andado por aqui (aliás, já esteve muitas vezes no Brasil, desde 1985), diz que sua música foi muito influenciada pelos ritmos brasileiros e os próximos álbuns da carreira, inclusive, têm participações especiais de Milton Nascimento e Jorge Ben Jor. Quem venham logo!
O CD está à venda no Mercado Livre e pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=UooBC2Ti3Cs&list=PLMYJI0hHMCKIjS0V3hl04a6UkwqV-Lixg

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Festejo no mesmo lugar

 Por Ronaldo Faria

 


Nesse tempo que nos resta no meio da fresta, fazer a festa. Eternizar felicidades no meio da tristeza. Vaguear e vagar nas estradas do sertão, cheias de pó e luares proscritos nas vozes que saem com o acordeão que fala pelo fole o mesmo que o peão traz no alforje para o dono de tudo, senão. No mundo, nessa brincadeira de eira e beira, feira e frieira, o homem desgarrado sai a achar que a próxima légua lhe trará clarão. Qual bobo, desses que a gente pede pra não chegar no alpendre do sertão e afastar feito cortejo de leprosos a tocar o sino ao longe, mal sabe que nada sabe. Com suas bandeiras e desejos os leprosos ao menos pedem, num só ensejo, pouco de comida sem mostrar sua dor. Com distância certa, recebem o louvor e seguem, sem partes do corpo e feridas à mostra, sua sina. Do alto, o tal Senhor os abençoa em torpor.
Nesse destempero que nem o melhor tempero traduz, a luz chega frígida e fraca entre nuvens que mentem que vão se fazer em chover. A seca continuará altaneira. Os pequenos santos que recebem cocô de morcegos na cabeça na igrejinha perdida no meio do nada apenas sabem que nalgum dia irão valer cada centavo atávico que a lida se profetiza. Como chinelos trocados na noite vendida são soluço que Pafúncio das tiras antigas nunca conceberia. Mas, rima desmedida, folha renascida do tronco que a realidade carcomida dá, tudo segue na pantomima que o palco sem atores e o teatro sem plateia dão. Patética, a frenética alvorada se faz ligeira. Bordadeiras costuram seus mantos e buscam onde perderam as agulhas no meio do palheiro ou do pardieiro. Sonhadora, a infausta e linda senhora, jovem ademais, sabe que a vida foge para além dos arames cravados entre pausa e morte. A ver a lua crescente e sentir o cheiro do cipreste, se regozija de ainda poder sonhar.
 
(Ao Renato Teixeira)

sábado, 26 de outubro de 2024

Na validade

 Por Ronaldo Faria


-- Mesmo a alma não sendo pequena, acho que vale a pena.
A frase de Alcebíades soou profética, hermética, digna de uma hemeroteca. Dessas que a tinta da impressora não se perdeu em vão. Em desvão, a ouvir Paulinho Pedra Azul, mandar voar, cantar, sofrer e sobreviver, se entrega às falácias que mostram que a vida corrói. A relembrar a sordidez que a vida dá quando os anos destrói, sabe apenas que os pássaros sem penas nunca poderão revoar.
-- Daqui, desta distância equânime e tântrica do bem-querer, vale-me apenas escrever. E valha-me Deus se algo mais quiser viver. Para tal ser, hoje já é muito sobreviver.
Entre os poucos dentes, ardentes de tanto querer e perder, Alcebíades vai a beber a si próprio no imbróglio de sobreviver. E transita nos pesadelos e desmazelos que cada noite traz entre temor e azia. Onde ele nunca saberá onde estar, com quem forjará fugas, rusgas, atropelos, trôpegos zelos, infaustos termos, desmazelos, singelos e frugais jograis. Mero peão num jogo de xadrez que o xeque-mate há décadas já matou o coração que sangra sem parar esperando apenas a hora de estagnar, se desmazela na inglória paz.
 
II
 
-- Mais outra?
-- Fazer o quê, Livânio? Seria leviano abrir mão do desejo de um copo vazio a pedir para descer e nos fazer encontrar.
O dedo em riste, como um chiste, chama o garçom.
-- Meu irmão, traz pra nós aquela que você estava guardando pra levar embora.
Num jardim que qualquer fantasia criaria, a ternura de um bem-te-vi voa à busca da certeza de que não há para onde voltar. O tempo expropriou emoções, forjou sensações, aquiesceu sordidez. Nele mesmo não se fez. Brincou de ser extemporâneo, caminhou em ruas escuras, lambeu corpos em turras, regozijou-se de ainda crer. Foi na incongruente e inglória glória de uma roupa a voar no varal que se esconde da tempestade que quer chegar.
-- Por que perdemos a noção de antemão da pouca lucidez que ainda nos resta? Pra que viramos festa de nós mesmos, embriagados de folguedos que sabemos no amanhã serão algo a profanar, xingar e execrar?
-- Boa pergunta, Livânio. Essa eu deixo sem resposta posta. Nem tudo nesse mundo saberemos profetizar. Vivamos o momento somente. Quem sabe será este nosso derradeiro tormento?
Na rua que vira avenida de repente a noite já se faz, sobremaneira, onde casais se misturam em beijos e toques, vilipêndios mil. Se fazem boiadeiro a levar as reses que desconhecem seu inexistente céu, viram luz de lampião no querosene a queimar. No lugar, certamente, em sangue a cair no chão de cimento branco, irão se largar. Afinal, como papagaio de papel, não conseguirão sequer voar.
-- Sabe, Livânio, seria bom se pudéssemos o tempo voltar. Enlouquecer e não prever o futuro que o presente nos trouxe. Que conseguíssemos reescrever erros, normatizar desesperos, somatizar ensejos, esperar e implorar aos deuses inexistentes que beijos sob escadas nunca deixem de lamber lábios e se fazer nunca mais.
-- Aí você está querendo demais. Menos, menos. Fique aqui na mesa, pois dependo de você pra rachar essa conta que se antevê logo mais.
Nos devaneios de Livânio, o estrupício de um ser solitário, errante, segregado de si. Mas, naquilo que o pífio vazio traz, o garçom, amigo, chefia ou irmão, diz que o bar vai fechar. Uma água corre entre os pés e a conta brota no lugar. Os amigos se despedem e, apiedados de si mesmos, seguem seus rumos no prumo de um Uber. Do alto, a lua pede tempo ao sol para não desdizer o que o poeta infante pensou escrever.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Sons e coisas

 Por Ronaldo Faria


No som rola lamento astral. Mas lá fora voa um vento anormal ou sepulcral? Juvêncio Silva, por quem entre os dentes as palavras silvam desde a perda de todos da frente, não sabia responder. O sorver de emoções e unções era pouco para tão pouca e louca solidão. Plácido, como se fosse parte de um hino nacional, irracional, caminhava na avenida onde a aplicação de formicida matou todos os ratos. Agora limpa, não fossem os papéis e restos de comida que os transeuntes atiram das janelas dos prédios e dos ônibus, do pisar in loco no local, poderia dizer que estava no céu. Mas qual... Era apenas um esperma esperto e rápido natimorto que, depois de nove meses, descobriu que se deu mal.
-- Porra, José, minha mãe tinha que dar logo para aquele pé de chulé?
-- Sei lá, Juvêncio, amor e tesão não têm explicação.
Mas, absorto e trôpego, seguia a pé até o ponto de ônibus mais perto. Ao derredor, como fosse uma orquestra em mi menor, ouvia um gato miar em desespero. “Espero que não queiram pegar seu couro pra tamborim.” Mas, o gato, que tem sete vidas, que cuide das outras seis, elucubrou. A sua única há muito já tinha se esvaído numa dessas enchentes que o Rio de Janeiro vez ou outra vê. “Se não comeu o rato da leptospirose, que se foda esse incompetente.”
Ao chegar o ônibus, faz sinal e sobe ligeiro. Passa o cartão e senta num banco livre. Foi parar do lado de uma mulher que devia ter 30 ou 40 anos. Mas era linda, inverossímil, perturbadora. De quem a idade era eterna puberdade. Ou a cana que lhe foi dada pelo Manoel do bar estava adulterada de etanol. Não. Era linda! Todos os homens da condução a olhavam com olhares de desejo, desses que traduzem a servidão. “Para ela e por ela seria o escravo que a Lei Áurea não se fez em realidade até este rincão.”
Mas a donzela, na formosura que a faz mais do que a virgem em pedestal mais singela, está absorta, solta nos seus devaneios. Nada vê. As ruas, com seus trajetos e pórticos, esquinas e asfaltos negros e quentes, janelas fechadas e meninos delinquentes, nem sequer passam na velocidade do fumacê que sai do escapamento que polui o mundo que foge entre quilômetros e rodas carecas. Para ela, a paralela realidade é mera inverdade. Sequer há ou existe saudade. Logo o ponto findo chegará e irá descer. Sublime, senhora dos próprios portais, dará adeus aos mortais que a desejam ademais. E ficará, em cada um, como delírio passageiro, talvez fruto de um gole desatento, de um nariz a cheirar violento, de um rebento que nasce da erva queimada antes da madrugada. Tanto faz.  Que o fim da finitude declarada saiba dormir em paz quando o motorista, suado e catatônico, afônico e cansado, proferir que é o ponto final. Dentro do coletivo restarão apenas ilusões e as babas que os bois-humanos deixaram verter em vão.
 
(A ouvir o segundo CD Ouro Negro, do Maestro Moacir Santos)

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Reencontro em dois ainda com o Maestro Moacir Santos

 Por Ronaldo Faria

 


-- Jussara é você?
-- Claro. O tempo passou tanto que não dá nem pra me reconhecer?
-- Não é isso. É que você, eu, nós mudamos. Aos trancos e barrancos.
-- Sei não. Engordei muito? Os preenchimentos se perderam?
-- O quê? Que preencher é esse? Pra mim só é o do imposto de renda.
-- Você parou no tempo? É a ressignificação do rosto.
-- É, com certeza. Afinal, o paraíso, mesmo em seus percalços, é onde estamos felizes...
-- É harmonização facial.
-- Claro. O importante é estar de acordo com os contornos que o desejo nos dá.
-- Gostou?
-- Quem sou eu pra gostar? Pouco ou nada conheço desse troço. E, sem troça, não sou expert em beleza.
-- Eu sei. Você é geneticamente limitado externamente, mas a mente pode ir além e ver o belo do outro como se fosse você o mais belo.
-- Infelizmente eu acho que faltei nessa aula de psicologia e autoestima próprias.
-- Tudo bem.
-- Mas e o compadre Edivaldo? Vai bem?
-- Larguei daquele traste. Resolvi ser um novo alguém.
-- Sei. Mas o que ele fez?
-- Nada.
-- Nada e você largou quase 40 anos de casada?
-- Foi. Achei que ele não me acompanhava mais no rejuvenescimento interior e exterior. Hoje eu sou como uma flor, a rebrotar.
-- Como assim?
-- Eu estou em contagem regressiva. Não faço mais anos há algum tempo. Volto dois ou três anos a cada semestre.
-- Sei. Entendi. Então, com quantos anos você está agora?
-- Acho que 28 ou 29. Parei de contar quando cheguei nos trinta.
-- Certo.
-- Quer dizer, não queria dizer, mas vou falar: completei 18 ontem.
-- Sério?
-- Seríssimo. Virei menina-moça!
-- Sei. Que bom.
-- E você?
-- Eu, pela certidão de nascimento, continuo com 72.
-- Nossa, tem idade para ser meu avô!
-- É. Fazer o quê? Sou das antigas, ainda sigo o calendário gregoriano.
-- Se eu fosse você, e vai aqui um conselho de amiga na flor da juventude, entrava na faca e remoçava uns trinta ou quarenta anos. Você ainda pode dar uma canja... É só se abrir para a vida.
-- Não, obrigado. Meu plano não cobre e eu vivo de aposentadoria do INSS.
-- Tadinho... Valeu pelo papo, mas eu tenho que ir. O Paulão, o salva-vidas do Posto 8, tem que me dar aulas de respiração boca na boca.
-- Claro. Foi bom te reencontrar.
-- Claro que foi. Mas não se anime. Não sou dessas sugar baby. Não preciso de daddy mais. Meu divórcio me deu independência total.
-- Parabéns. Valeu.
-- Fui. Beijinhos pra você!
Enquanto Jussara, na verdade agora Juju, se afastava o senhor septuagenário que o tempo procrastinou olha para o calçadão e revê, num delírio de sol a 48 graus, o sorveteiro oferecer Chicabon.
-- Me vê um e outro pra bombonzinho que se foi. Mas eu só tenho dez cruzeiros...

(Em homenagem a Nicole Kidman)

domingo, 20 de outubro de 2024

Diana Krall again

Por Edmilson Siqueira

 

Já escrevi sobre alguns CDs de Diana Krall aqui e, se hoje repito a dose, é porque a moça, que já está beirando os sessenta, continua ótima. Foi assim com os dois últimos lançamentos dela, "Love Is Here to Stay" (2018) e "This Dream of You " (2020). E o que me levou a escrever sobre ela de novo, foi o antepenúltimo lançamento, ""Turn Up the Quiet", de 2017.
Apesar da foto da capa do CD não ser lá essas coisas (segundo meu velho e saudoso amigo, Tadeu Costa, "o fotógrafo deixou a moça com um cabeção"), o resto do encarte é bonito e o conteúdo musical é, mais uma vez, coisa finíssima.
Diana Krall, como quem acompanha a carreira da moça já sabe, toca piano desde os quatro anos e, ainda jovem, já tocava e cantava em grupos de jazz em casas noturnas de Nanaimo, uma cidade canadense com menos de 90 mil habitantes, na província de Colúmbia Britânica, onde nasceu.
Sua carreira foi meio meteórica: aos 17 anos, ganhou uma bolsa para estudar no Berklee College Of Music em Boston, Massachusetts. Passado algum tempo, mudou-se para Los Angeles, Califórnia, passando a estudar com Jimmy Rowles, com quem ela começaria a cantar. Em 1990, Krall foi para Nova York, gravando alguns álbuns e finalmente alcançando sucesso internacional. 
Depois foram dezessete discos de carreira, três DVDs (um gravado no Brasil), shows pelo mundo todo e inúmeras participações em discos de diversos astros do jazz.
"Turn Up the Quiet" (algo como "Aumente o Silêncio"), é um disco essencialmente de jazz e seus standards, e nessas águas Diana navega tranquilamente com muita qualidade. Ela mesmo explicou como chegou a esse disco: ""Eu pensei sobre essas músicas por um longo tempo. Estar na companhia de alguns dos meus maiores amigos na música me permitiu contar essas histórias exatamente como eu pretendia. Às vezes você só precisa aumentar o silêncio para ser ouvido um pouco melhor."
Algumas informações da Wikipédia são importantes para se compreender o disco: "Alan Broadbent conduz três faixas no álbum que reúne Krall com Christian McBride e Russell Malone para algumas composições junto com o baterista Jeff Hamilton e o baixista John Clayton Jr., este último creditado junto com Krall em seu álbum de 2005 "Christmas Songs". "Turn Up the Quiet" também marca seu último álbum com seu produtor e amigo de longa data Tommy LiPuma, que morreu em março de 2017. LiPuma trabalhou pela primeira vez com Krall em seu segundo álbum de estúdio, "Only Trust Your Heart" (1995)."
Como se vê, é um álbum mais que especial e seu repertório, todo de clássicos do jazz, reafirma essa característica. E a crítica o recebeu muito bem.
Christopher Loudon do "Jazz Times" declarou: "Tocando e cantando em todas as faixas e reunida com o coprodutor Tommy LiPuma, que morreu semanas antes do lançamento do projeto, Diana Krall está no mais suave dos humores. Ela raramente levanta sua voz acima de um sussurro, seu auto acompanhamento está igualmente contido. Até mesmo as músicas tipicamente tratadas com bastante entusiasmo e verve, como "Blue Skies", "L.O.V.E." e "Sway" - são temperadas de forma suave. Vocalmente, ela cresceu um tom mais escuro, um ou dois graus mais granulado e, no processo, tudo ficou mais atraente. Já Maertin Townsend do "Daily Express" chamou o álbum de uma "joia de disco".



Bobby Reed, da "DownBeat", escreveu: "Para este álbum, Krall selecionou as músicas, escreveu os arranjos do conjunto e supervisionou três formações diferentes de conjunto. Neste ponto de sua carreira, Krall sabe como colocar sua própria marca distinta em padrões de décadas, fazendo-os soar frescos e vibrantes, ao mesmo tempo em que honra as melodias que os fãs do Great American Songbook conhecem tão bem." 
Jim Hynes, da "Elmore Magazine", comentou: "Coloque seus fones de ouvido à noite e ouça a sutileza e a nuance de Krall aqui no silêncio. Você não pode deixar de ficar impressionado"
Os 48 minutos e 18 segundos do disco estão divididos entre as seguintes faixas:
"Like Someone in Love" (James Van Heusen e Johnny Burke)
"Isn't It Romantic"          (Richard Rodgers e Lorenz Hart)
"L.O.V.E." (Bert Kaempfert e Milt Gabler)
"Night and Day" (Cole Porter)
"I'm Confessin' (That I Love You)" ('Doc' Ralph Edward Daugherty, Al J. Neiburg e Ellis Reynolds)
"Moonglow" (Irving Mills, Edgar Delange e Will Hudson)
"Blue Skies"       (Irving Berlin)
"Sway" (Norman Gimbel, Pablo Rosas Rodriguez, Luis Demetrio e Traconis Molina)
"No Moon at All" (Redd Evans e David A. Mann)
"Dream" (John H. Mercer)
"I'll See You in My Dreams" (Gus Kahn e Isham Jones)
O CD está à venda por aí, nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na integra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=1MjEcvI5ePQ&list=OLAK5uy_nwNBNhifXhIkIl2fl8On5lq8YOpMmTaFs&index=2

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

A bloquear

Por Ronaldo Faria


O bloco está prestes a sair. Fantasiado de Prestes, o Cavaleiro da Esperança, Juarez espera sua Olga aparecer. A tarde, tardia diante de tal agonia da espera, surgia encardida entre uma nuvem aqui e outra acolá. E urgia o tempo que escorria nos passos dos casais e seus abadás. Na batida de tamborins e rufar de tambores, a bateria marcava os passos dos pés e passeava de coração em coração. “Ingratidão dela se não vier”, pensou Juarez. “Mas quem saberá o que se passa na cabeça dessa mulher...”
Olga era como um barco que navegava perdido em mil léguas do sonhador. Uma nau distante de qualquer porto que um mapa náutico conhecesse ou vislumbrasse. Galé sem convés a sucumbir nas calmarias. Dela, nenhum marujo se forjou sequer ser capitão. Suas velas, explícitas no corpo livre e cabelos que misturam ventos e maresia, eram o que a faziam singrar camas e mares sem leme ou âncora a lhe direcionar ou parar. Olga era sua própria bússola. “Vou sambar se assim quiser...”
No meio de toda essa batalha sem canhões e pólvora molhada, balas de ferro, ganchos e arcabuzes, na simétrica paz que a orgia monástica e o amor dão, Juarez e Olga esperavam, quiçá, um saque ao tesouro chamado juntar. Na cena, sirenas em cantilenas chamavam as sereias para cantarem as canções que fariam marujos bêbados na morte dos oceanos se encontrarem. A serpente gigante que embarcações devorava apenas espera a saga da epopeia terminar. Seu jantar não perdia por esperar.
Quando enfim o bloco decide partir em procissão de Orfeu e Momo, eis que a sentença que se pensava desde o início tem fim por fim. Feito estrupício que só a ilusão desdenha e dá, Olga e Juarez se juntam em corpos e ósculos. “Demorou, pensei que nem vinha mais”, balbuciou o homem. “Foi só atraso para descobrir se realmente queria no trio elétrico ir atrás”, respondeu a mulher. E assim, de mãos dadas e bocas juntadas e untadas, seguiram entre risos e gargalhadas, refrãos e toadas. No Carnaval, em suas etéreas ressacas, todos de uma forma ou outra se salvam. Aos amantes, botes e coletes, jogados na folia, não naufragam.
 
II
 
-- Esses escritos para o Maestro Moacir Santos são apenas um cântico no quântico desaguar de letras e sílabas que sibilam na página branca que abranda o final do chegar. Quem sabe um despertar de cândidas vozes intercaladas de metais. Como a história numa ladeira de Olinda onde o rapaz busca a amada que, disse, viria vestida de fada. Onde o descrédito que se dá ao crédito de uma paixão fugaz é de tal modo verdadeiro que nem mesmo o pierrô escondido faz findar a ilusão. A colombina, concubina do boneco gigante, ri por detrás dos casarios o casório de poucos dias. E senta-se no meio fio a beber entre paralelepípedos e epitáfios nunca escritos, circunscritos aos sonhos do poeta asceta.
-- Essas lembranças ínfimas e infinitas, forjadas entre mil versos e goles, alforjes e andarilhos, quarto de pedras que um dia foi senzala, exala na fala calada dos dedos que gritam no teclado. Malfadado, o aprendiz prefere o frevo ao fado. Volátil, a voar num quadrado que liberta além do que nunca foi ou será, passeia de meias e nudez num antro onde marginais e mulheres virginais não vão. E nele se atira e se esvai. “Oxalá, em teus lúgubres lugares me prometa nunca me encontrar!” Hoje, como epifania, todos os povos escondidos nas sombras da alma decidem fugir de si. Loucos, travestidos de alegria, paródias sórdidas do nada, parecem apenas ter pena da vida. Logo adiante, o dantes nunca vindo far-se-á.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Mistureba de gêneros em exatidão

 Por Ronaldo Faria


O bar está botecateado entre as garrafas de cerveja e o carteado. No truco, que para Souza até hoje é igual a turco (nunca saberá), as apostas e gestos de olhares e mãos tomam conta da cena. Grata surpresa é a gata cor de mel que chegou no lugar para ronronar por um pedaço de linguiça mineira apimentada e acebolada. Manfredino, tinha um zap nas mãos (seja lá o que isso possa ser, mas deve ser bom) e queria decidir a partida ali. Mas, esperto, tão perto da derrota que decide jogar o tudo ou nada, Valêncio levanta a mão e diz que não aguenta mais segurar: “Tenho que ir no banheiro!”
A regra do jogo era sagrada: pediu pra mijar, tem que parar. Os outros três da mesa não têm como negar. Baixam as cartas e pedem mais um balde de cervejas. Afinal, quem perder paga. E até a jogatina acabar há muito a se beber e jogar. Valêncio, na crise da meia idade, aproveita a ida ao mictório para olhar as mesas que ainda restam com corpos a rodear. Numa delas vê Ofélia, um tanto de menina no pouco de velha. Era bela? Era. Talvez como um amanhecer no luar pirotécnico que meteorologistas disseram ser de sangue. Senão, melhor do que a gozação que sofreria ao perder outra nova rodada.
 
No som que saía das caixas acústicas, um tanto de resto de Wando e o que poderia vir (agora parei de escrever para ver o que irei escutar).
 
Entra Benito de Paula. Paulatinamente, feito semente que brota de forma descomplacente, surge um samba que urge na brincadeira de ouvir e escrever. Mas qual, Valêncio já tinha esquecido a urina de mentira e pregado os olhos em Ofélia. Os três da mesa? Que se virassem da forma que quisessem. A mulher em questão era melhor que qualquer rainha, fosse de que naipe fosse. Ouro? Valia mais. Copas? Haja coração! Espadas? Só se for pra arrancar o peito que se entregava. Paus? Quem dera o seu se fizesse ereto diante do fato. Dono de si, decide ir até a mesa onde estava seu alvo sentado.
-- Boa noite. Meu nome é Val (ele tinha vergonha do Valêncio e achava que seus pais o odiavam desde o nascedouro).
-- O meu é Ofélia (ela curtia assim se chamar ao saber que era personagem importante de um autor inglês e que um dia um príncipe ela enfim encontraria).
Na mesa do truco, seus adversários não entendiam a demora.
-- Será que ele está com a bexiga presa?
-- Acho que não. Pode ser que a fila esteja grande?
-- Não. Deve ser entupimento da glande.
Mas qual. Valêncio e Ofélia estavam numa prosa prosaica em que prosopopeia e eufemismos se misturavam ao léu. Falavam de passado, de presente e, quiçá quem sabe, futuro soturno. Afinal, entre um furo e outro que o amor deixa nas paixões derradeiras sempre há espaço e fresta para o furto de um amor brejeiro.
E como a vida não deixa deixas para o ator do momento fazer da alegria lamento ou vice-versa, ambos brincam de direitos, dinheiros, sujeitos e defeitos. Tudo em ordem na desordem indevida e imperfeita da vida. O restante, batismo de bamba ou babalorixá, é apenas pena da galinha que foi degolada na encruzilhada mas não depenada.  Talvez uma farofa sem sal, a garrafa de pinga que nunca foi marafo, o prato de barro no parto que a gira fez girar.
-- E depois? – perguntaria o mais sábio dos raros leitores.
Sei lá! Que cada nota, letra, sílaba ou verso sejam apenas a loucura de descobrir que o truco é o enigma que um tal carioca de raízes nordestinas nunca saberá se é malandragem ou sorte do destino. Nos goles que saem dos copos e transbordam nas línguas de Valêncio e Ofélia, pouco ou nada importa. A porta fechada da casa empoleirada no refeito e rarefeito mundo é uma espécie de ninho, desses que nem marca de leite em pó pode se apropriar. Detrás dela, os dois se amam em louvor. Na mesa do bar, o trio, cansado de beber e esperar, paga a conta e vai dormir ou vomitar.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Elis e Toots

Por Edmilson Siqueira



Há uns 20 anos, eu estava em Barão Geraldo, mais precisamente numa galeria chamada Tilly. O que eu estava fazendo lá não tenho a mínima ideia, mas me lembro de uma loja de discos (de CDs, né?) e dentro dela o meu amigo Tatá. Amigo é modo de dizer, pois não éramos próximos, mas sempre que nos encontrávamos trocávamos grandes papos sobre música. A primeira vez que o encontrei foi na lendária Raposa Vermelha, onde ele trabalhava e dali eu saí com meu primeiro LP de jazz, "Three or Four Shades of Blues", do genial Charles Mingus. A segunda foi num sebo ali da José Paulino, no Centro de Campinas. A gente se encontrava também em bares, principalmente no City Bar, em noitadas de cerveja e sanduíche e muito papo musical.
A terceira vez que encontrei Tatá foi nessa discoteca de Barão. Ele me contou que, por discordância musical, tinha saído do sebo e agora estava ali. E, me conhecendo, perguntou se eu tinha um disco chamado "Aquarela do Brasil", com Elis Regina e Toots Thielemans. Não tinha. Comprei sem ouvir, não só pelo gigantismo dos nomes, mas também porque o Tatá falou que era bom demais.
E é mesmo, pois desde então ele tem audiência cativa na vitrola (CD player, né?) e não dá para se cansar das interpretações particularmente perfeitas de Elis e da gaita jazzística de Toots, sempre dando um molho especial à música.
Tatá, infelizmente, morreu há uns anos, mas, além da saudade dos grandes papos musicais, restaram essas duas lembranças, o CD do Mingus e esse desses dois artistas genais que se reuniram em Estocolmo, na Suécia, em 1969, para produzir essa joia rara.
Há dois textos no encarte, um deles sem autor, escrito apenas para o CD, que introduz o texto maior, do jornalista sueco Oscar Heldiund. No primeiro, ficamos sabendo que Elis não viveu para ver e ouvir o disco na versão digital além de outras informações. Diz o autor que se trata de um dos discos mais alegres e memoráveis de Elis: "Naquela época, em que Elis estava se apaixonando pela Europa pela primeira vez, tinha-se a impressão de que a juventude, energia e vitalidade aquela figurinha delicada irradiava eram eternas. Também pareciam eternos os ritmos que permeavam toda sua pessoa e a gama surpreendente de texturas, dinâmica e expressão contida naquela voz extraordinária, tão eternos quanto a garganta que os produzia."
Já o jornalista que assina o texto maior, que estava no LP original, é só elogios a ambos os artistas. Sobre o belga Toots: "... é capaz de tocar e assobiar e tocar para o sol da meia-noite de tal modo que os mosquitos caem mortos de tanta beleza."
Sobre Elis: "Nascida e criada no sul provinciano, onde deveria se tornar professora de jardim de infância. Mas não. Em vez disso foi para o Rio e começou a cantar. (...) o que foi bom para ela e para o Rio."
O CD não tem ficha técnica (talvez o LP tivesse) e, depois de muito pesquisa na internet, encontrei numa página chamada Discogs que parece ser de Portugal. Lá está que as faixas 3, 9 e 12 foram arranjadas por Claes Rosendahl. Que o contrabaixo esteve nas mãos de Jurandir Duarte, que o baterista foi o grande Wilson das Neves, que o violão foi do genial Roberto Menescal, a percussão de Hermes Contesini e o piano a cargo do também grande Antonio Adolfo. Com um time desse, Elis e Toots deitaram e rolaram...



O disco começa com nada menos que "Wave", um dos sucessos mundiais de Tom Jobim, cuja letra era para ser de Chico Buarque, mas ele demorou tanto que Tom só aproveitou a primeira frase, que Chico fez assim que ouviu a música pela primeira vez, na casa de Tom e levou a gravação para botar letra. Mas demorou...
E segue com "Aquarela do Brasil" (Ari Barroso) e "Nega do Cabelo Duro" (Rubens Soares e David Nasser) num mix que nem tinha esse nome quando foi gravado.
A gaita de Toots fica sozinha na terceira faixa, "Visão", de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar., mas Elis volta na faixa seguinte com "O Sonho" de Egberto Gismonti, apesar de na capa e no encarte essa música estar como a oitava.
Aliás, a relação das músicas está uma bagunça completa, por isso não vou dar aqui a sequência. Além das quatro já citadas, compõem o disco "Corrida de Jangada (Edu Lobo e Capinan); Wilsamba (instrumental, de Roberto Menescal); Você (Menescal e Bôscoli); o Barquinho (Menescal e Bôscoli); "Five for Elis" (T. Thielemans); "Canto de Ossanha"(Baden Powell e Vinicius de Moraes); "Honeysuckle Rose" (F. Waller e A. Razaf) e "A Volta" (Menescal e Bôscoli). 
Há vários sites de vendas de CD que têm o disco, com preços variados (alguns o chamam de raridade), mas ele pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=aIdrw46hOJU&list=PLVzIDK0SR6tAak9pFVnNdz7-B54Q8kHxy .

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Breganejomo-nos

 Por Ronaldo Faria


Wandeilton, que era para ser chamado de Wando não fosse o moço do cartório contra homenagem a ídolos e defensor dos nomes que nem precisariam de CPF para não ter outro igual, era desses que distribuía rosas vermelhas às futuras ou nunca feitas amantes, fazia versos em dodecassílabos, fosse lá o que isso fosse, declamava poemas de outros criadores e se dizia às portas da morte se a desejada decidisse nem um beijo no rosto dar.
Wandeilton, trabalhador de obra civil, onde a civilidade não volta apesar do esforço sol a sol de carregar tijolos e sacos de cimento, era um a mais. Mal-ajambrado, desequilibrado no fio da navalha, desconjurado nas fés que a vida dá, ia a cada dia a tentar se achar. Acabadas as tantas horas de trabalho, corria para o boteco mais próximo onde uma dose de pinga fosse maior que o salário mirrado do término do mês. E lá ouvia que a dor um dia iria acabar.
Na estrada que o sortilégio se faz descrédito e demanda, Wandeilton surgia enamorado da orgia que o desejo previa ser real. Mas, ao fim de cada madrugada, quando o dia tragava as gotas que ainda teimavam em descer do copo em embriaguez, voltava ao alojamento da obra para dormir a ouvir o ronco do Alcino, paraibano atarracado e altaneiro. Assim, a cumprir seu capítulo fagueiro, lembrava de ter construído o viaduto de mão única e primeiro.
No dia seguinte, quando o mesmo pedinte tentava conseguir um pão dormido da sopa de pacote de letrinhas, Wandeilton molhava o corpo na água fria que corria dos canos que vinham da rua e retomava sua sentença tensa. Na cabeça, além do capacete obrigatório que fervia a moleira, a esperança de encontrar um amor. Como diria Wando, uma moça para se abraçar e que mesmo não sendo tão pura pudesse, ao menos, embolar nos cabelos.
Assim, por fim, foi com Francineide, em homenagem às avós Francisca e Neide, por parte de mãe, que bateu o pé na maternidade e disse que sua filha não se chamaria Gretchen, que o pai queria colocar, que Wandeilton se encontrou. Numa esquina escura, onde gente pura não vai, se encontraram e se agarraram, se beijaram, desceram as roupas, se penetraram, gozaram, disseram foi bom pra você e pra mim, se desejaram e foram curtir o Wando cantar.
A partir desse dia, na mesmice de nossos todos dias (e deles também), passaram a ser um só. Depois, num casebre de periferia ou subúrbio, fizeram que nem lebre: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete filhos. Hoje, Wandeilton é chefe de obra e Francineide faz faxina pra quatro madames de bairro chique. Quando eles não estão em casa, Wancleide, filha mais velha, cuida dos outros rebentos. E assim, com esforço e bolsa-família, vão tocando a vida. Na parede, um pôster do Wando, que Deus o tenha, ganha destaque na sala. No quarto brilha solitária uma moldura com Nossa Senhora.

sábado, 12 de outubro de 2024

Nas ruelas da emoção

 Por Ronaldo Faria


As ruelas eram estreitas naquilo que manda serem as ruelas de favela. Se as portas abrissem para fora, alguém teria de esperar um entrar pra sair ou sair pra poder entrar. Nelas, nem preá conseguia fazer rodízio de cria. Mas Veneranda, dessas que se venera desde o nascimento, conseguia seguir por todas como fosse cabrocha em dia de desfile de escola de samba. Driblava cada esquina no seu microscópico tamanho de milímetros quadrados, onde até quadrilátero de palmos era de difícil existir, como fosse uma das tantas moscas que habitavam o lugar. E ia com as coxas a brilharem no sol sob o céu que coloria cada passo que dava. Por onde passava até as biqueiras pediam para o movimento parar. Algo mais importante que trocar gramas por cédulas ou cartões de crédito estava a acontecer. Veneranda descia o morro para o asfalto à sua beleza se render.
O mês era de fevereiro. Quente como todo fevereiro brasileiro, a ver descer chuva vez ou outra a derramar águas, encher ruas e desaguar em esgotos cheios de entulhos. Nessas horas a moçada tinha de correr para salvar os bagulhos. E quem tinha janela que pudesse fechar se mandava de um cômodo ao outro para cerrar a vista do concreto do vizinho defronte. Mas, se Veneranda estivesse na rua, o tal de Pedrão do Céu, esse que dizem cuidar do departamento de águas do além, segurava a válvula e xingava o anjo mais puxa-saco que quisesse ver o tempo cair. “Seu babaca de asas de bosta, quer molhar aquilo que Deus resolveu fazer como exemplo maior de beleza? Está suspenso por um século. Vá pro limbo pensar na merda que queria fazer!” E assim o tempo escurecia, carregava de nuvens negras, mas continuava límpido até que Veneranda chegasse ao seu destino.
Um dia, porém, nesses dias que nem o Criador consegue ter explicação plausível, Veneranda encontrou Fausto, ser infausto que ninguém consegue dizer a que veio. De metrô, mototáxi, alternativo ou busão? Ninguém conseguia responder. Sabia-se apenas que ele estava lá, próximo dos olhos de Veneranda, a desbotar da cena que podia se esperar no desesperar do fim. Ser que se não tivesse conseguido vingar do parto difícil que sua mãe (Quitéria o teve quase como diarreia), não teria feito falta nenhuma ao mundo. Contudo, nesses absurdos que a trama da escrita dá, perpetuou sua chegada. E conquistou a mulher que todos, todas e todes mortais queriam ter. Nele, Veneranda entregou tudo aquilo que tinha. E fez-se amante e única. Virou joguete do destino e sua voz, em falsete, disse que era dele até a morte todo o seu viver. O mundo estava fadado a perdê-la ao sempre. Mas, para sorte do texto, sem pretexto milicianos invadiram o local e numa bala achada o peito de Fausto se encontrou. No enterro, além dela, linda, viúva nunca casada em cascatas de lágrimas, um surdo batia e marcava a felicidade de milhares de olhos que sabiam que o luto um dia iria acabar. E nesse cessar, Veneranda de novo seria a imaginação da fábula milenar. Do alto, até a lua resolveu brotar para festejar...

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Seis e nada mais

 Por Ronaldo Faria


Foram seis anos de amor e entrega. Sem guerras e tréguas. Entre a calçada da praia e a areia do mar. Não chegaram na tal crise dos sete anos. A separação fez-se antes. Como tragédia de Dante ou desertor de qualquer quartel de Abrantes. Agora, pouco importava saber o que aconteceu. Se houve morte de miliciano, traficante ou civil. A bala perdida do fuzil algum corpo torto encontrou. Estamos no Brasil.
Mas os seis anos estavam lá. Carinhos, olhares, esperas e ternura ínfima. Tempos de ladeiras e carnavais sem folia. Talvez um lampejo de alegria. Na finitude que só sua chegada dá, o tempo não disse antes para a solidão que ela ia aportar e ficar. Como brinquedo de folguedo de bloco de frevo, deixou para o último beijo a certeza da fria nostalgia. E assim se foi, coração na alternância da lembrança e da dor.
-- Foi bom. Foi... Verbo no passado que o presente sabe que ficará até o fim, no futuro.
Nas teclas transversas do computador, com a inimaginável puta dor, Aparício parece um palhaço no picadeiro da vida que o circo mambembe do tempo coloca com ingressos todos os dias a nos vender. Mas continua seu trilhar de pular do trapézio e engolir facas sob as luzes do holofote caolha. Para ele, o que ainda vier é lucro, nas despesas da espera das chamas que vão juntar duas cinzas numa só criação.
Na inglória glória da viagem entre neurônios histriônicos e seus delírios mortais, tais e quais oferendas de rendas a Iemanjá, Aparício transita na fina flor da lâmina da faca que corta segundos de agora e depois. No apocalipse da dramaturgia empírica do primarismo vocal, o branco e o preto, o vermelho e o cinza são apenas cores transgênicas e loucas. Em seis anos, o céu de sol e luar é semente de juntar...

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Saudade e Rick Wakeman

 Por Ronaldo Faria


Rua escura, soturna, absurda e abstrata em si mesma. Entre uma gota e outra de chuva fina, uma nota e outra de música ínfima, o som do bêbado que chora a morte do olhar mais perpétuo e terno que já se viu. “Até quando essa tristeza dilacerante, esse precipício entre a realidade e a saudade?” Josué, taciturno ser largado à solidão de si mesmo, contava os minutos que se largavam no asfalto e corriam para os ralos e esgotos públicos. Quem sabe logo ali perto um púbis não estaria a se juntar à água que se esvaía fria e passageira... No ônibus que transitava deserto e reto, pneus lançavam jorros de enxurrada tardia. Longilínea, Lavínia se lavava de lânguidos beijos e saliva. No apartamento que estava defronte da cena ela brincava de ser rainha num mundo etéreo e tragicômico. Atônito, Josué vivia noutro mundo. Catatônico, embriagado de tragos e trovas, ia ao centro da sua terra que não tinha fim ou fundo para afundar.
Numa casa próxima, Abelardo tomava seu suco natural de babosa. No fogão a água fervia e condensava para tentar encontrar as nuvens que se preparavam para cair na cidade em orgia. Se desse tempo de subir em vapor, seria a chuva que lavaria o quintal que Abelardo nunca regou. A rosa cálida agradeceria, a grama queimada e esturricada saborearia enfim a vida, a árvore morta e seca esperaria o milagre de renascer. Quem sabe até a pomba que aparecia de vez em quando para comer resto do lixo iria, por fim, aprender a sonorizar... Mas, para Josué e Lavínia, espectadores de tudo sem saber sequer que tal cena se faria, o momento era outro. “O céu fechou geral. O dilúvio que não deu tempo da arca construir vai cair”, pensou Josué. “Ainda bem que estou em casa, senão a chapinha ia pro saco”, deduziu Lavínia. “Que  o mundo se acabe em água porque o fogo é foda”, frisou Abelardo. “Que esse merda não tampe a panela”, sentenciou o vapor gasoso.
Mas, para salvar o emprego do meteorologista Araújo Jorge que não previu a tormenta, tudo não passou de jogo de cena. As nuvens passaram, a lua abriu e o breu virou neon, faróis de carros e telas de celulares a clicarem pratos de comida, beijos e encontros. “Tontos daqueles que acreditam em previsão do tempo”, disse orgulhoso de si Benevides, que não estava ainda na trama mas não tinha conseguido, no passado, ser aprovado no vestibular de Meteorologia. “Que todos tomem no meio dos seus cus!” No centro da eternidade que nunca nenhum de nós saberá se existe, um tal de Deus de mil e uma denominações e crenças ao longo dos séculos ri de tudo, toma outra taça de vinho que estava em promoção nas vinícolas do Éden e manda preparar uma tormenta que atingirá o planeta de norte a sul, leste a oeste. “Estou de saco cheio de tanto profetizar!” No fogão, o vapor d’água consegue uma fresta de janela alcançar e sai a sorrir: “Chuva vou virar!”


domingo, 6 de outubro de 2024

O ótimo Quarteto Wynton Marsalis

Por Edmilson Siqueira


Sabe aqueles músicos que são uma fonte inesgotável de talento, que tudo que fazem e gravam se torna clássico? Pois Wynton Marsalis é um desses. Já escrevi sobre ele aqui duas vezes, a primeiro comentando um CD duplo, gravado ao vivo, e a segunda, um disco que ele gravou com ninguém menos que Eric Clapton, enveredando pela praia dos blues.
Pois desta vez trata-se de um disco genuíno de jazz com vários standards todos magnificamente interpretados. O disco se chama, bem a propósito, "Marsalis Standard Times" e só não digo que é o melhor dos três, porque todos são muito bons e não dá para classificá-los.
Lançado em 1987 pela CBS norte-americana, foi gravado em dois estúdios: primeiro no da RCA, nos dias 29 e 30 de maio e, depois no da Sony, em 24 e 25 de setembro de 1986. O grupo formado por Marsalis par a empreitadas só tinha cobras: além de Marsalis no trompete, Marcus Roberts no piano; Robert Leslie Hurst III no contrabaixo e Jeff Watts na bateria. 
O encarte do disco tem um longo texto assinado por Stanley Crouch, um poeta americano, crítico musical e cultural, colunista, romancista e biógrafo. Ele era conhecido por sua crítica de jazz e por alguns livros.
Crouch abre assim seu artigo: "Ao longo dessa gravação, o Quarteto Wynton Marsalis faz com que o jazz que ele nos entrega seja pleno de integridade, ousadia e sem remorso. Mas, ao assumir seleções do repertório padrão que inspiraram um bom número de performances clássicas do jazz, Marsalis e seus amigos estão se colocando em uma situação em que seu trabalho tem de ser julgado em relação ao melhor de toda tradição. Aqui, eles são desafiados a afirmar suas imaginações em contextos que não são nem misteriosos nem exóticos, nem desconhecidos nem carentes de obras-primas tão imponentes, que alguns músicos desta geração escolheram evitá-los completamente."
Por aí já se vê que a gravação poderia ter como resultado uma enorme encrenca. Um repertório cheio de clássicos do jazz é terreno sagrado para muitos músicos e os poucos que se atrevem a adentrá-lo, geralmente o fazem depois de muita estrada. 

 
"Mas", prossegue  Crouch, "o Quarteto de Wynton Marsalis não é dado à evasão, e é por isso que observamos coisas novas acontecendo com essas peças familiares e encontramos espaços para novas pegadas em pisos de salão de baile arranhados e marcados por centenas de pés".
Ou seja, o resultado todo foi muito bom, com a moçada provando que a pouca idade não foi obstáculo para que a excelência do resultado se fizesse presente.
Vai saí que todo disco é um passeio gostoso por músicas que estão na lembrança de todo apreciados de jazz. Saca só o tal do repertório:
1 - Caravan (Juan Tizol e Duke Ellington)
2 - April in Paris (Vernon Duke e Edgard Harburg) 
3 - Cherokee (Ray Noble)
4 - Goodbye (G. Jenkins)
5 - New Orleans (H. Carmichael)
6 - Soon All Will Know ( W. Marsalis)
7 - Foggy Day (George e Ira Gershwin)
8 - The Song Is You (Jerome Kern e Oscar Hammerstein II)
9 - Memories of You (Eubie Blake e Andy Razaf)
10 - In the Afterglow (Wynton Marsalis)
11 Autumn Leaves (Joseph Kosma e Jacques Prévert)
11 Cherokee (Ray Noble)
O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=JsVMXCirqto&list=PLupfniYUeXcnVY8t4todnj6gIg-H25Zls

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Emile Zola ou Cláudio Zoli?

 Por Ronaldo Faria

 


A noite rolava meio emblemática e meio trágica na sua atávica forma de ser e sobreviver. Casais se lambiam, se falavam, se arfavam, se comiam, se tragavam em goles que surgiam a cada sorver como gaitas de fole. E trocavam beijos, línguas invasivas, dentes abertos, garganta a engolir cuspes e controvérsias que toda paixão dá. E se abraçavam, sangravam, contorciam, retorciam feito fetos que alguns desafetos deixaram brotar. O que será o próximo dia?
Benito, filho bendito de casal qualquer, homem, hímen e mulher, não estava nem aí para o que pudesse florescer e vir. Para ele, a fórceps, o mundo era somente sonho raro. Sobra de luz de poste na esquina onde a vida une vidas solitárias, apátridas que a catarse traveste de paraíso e ultimato trágico de se viver. Benito, vivo em si a crer que nunca é tarde para sobreviver, rolava a noite nos sons que o cataclismo ungido de fé nos corpos nus e banidos um dia será e seviciará o destino num querer. E talvez, quem saberá, num asilo insólito juntará a maternidade.

Acabou...

 Por Ronaldo Faria Acabou! Acabou o Carnaval, o sal da areia colado no corpo, o suor que escorreu entre perfumes falsos e tresloucados beijo...