Peripécias de peças sem palco
e passos sem som. Périplos à busca da perfeição e palavras vagas e vãs. E
talvez o fim esteja a poucas horas. Com a hóstia na boca, Constância contrasta
com o tempo que ferve do lado de fora. O padre, na verve, prega para os poucos
fiéis que ainda decidem se a decisão de ter ido à missa foi boa ou ruim. “Na
avenida ao menos tinha um tamborim”, pensa Serafim. Do seu lado, Constância
espera que o barulho do samba não mate o arrulho dos pombos na capela de Nossa
Senhora do Fervor.
-- Constância, queria ter ido
o “Farofa e pó é tudo farinha”. Porra, Carnaval é só uma vez por ano! Missa tem
todos os dias.
-- Quer falar baixo. Ou
melhor, calar a boca. Está na hora da consagração.
-- Consagração é na Praça da
Apoteose! Isso aqui é como se os componentes da bateria tivessem desistido de
sair.
-- Irmãos, o sangue de Cristo!
Amém – diz o padre contrito na sua fé e profissão.
-- Deu. Constância, estou
indo. Te vejo em casa amanhã de manhã ou na quarta-feira.
-- Se você sair, não precisa
nem ir pra casa!
-- Fui!
Serafim levanta do banco e sai
resoluto pelo portal de madeiras entalhadas e pintadas de verniz. Abre os
braços para o sol que queima o mundo sem piedade e grita: “Valeu, vida, eu
estou aqui!”
Entra no carro, liga o motor,
passa a primeira e acelera na rua vazia. O povo não está no Largo do Rosário e
da Reza. Está todo mundo no bloco a fazer do tempo um pouco de vento nas
ventas, a aspirar carreiras e seguir na esteira da música que sai do trio-elétrico.
-- Obrigado, vida, por me dar
a chance de revoar feito pomba vagabunda de praça a comer restos esquecidos entre
um pacote de migalhas de bolachas ou biscoitos.
Enquanto isso Constância beija
a mão do padre que dá o seu anel de pedra preciosa para ser enxaguado de saliva
e cuspe pelas ovelhas agarradas. As desgarradas há muito não comparecem no
altar.
-- Como Serafim pode ter me
trocado por um desfile de bloco? E tudo aquilo que vivemos? Que trocamos nas noites
de açoites de corpos e nos risos de descobrir que o amanhecer depois surgiria
para mais?
Na bunda da foliã a banda
passa e abunda o cenário ao derredor com olhos de desejo e uma certeza onde o
não é sempre não (nas graças daquilo que deve ser). A dor não faz parte do
compasso. No passo das pessoas ressoa o tempo, imensidão de tristezas represadas,
vastidão de carências castigadas, encontro de loucuras que dão razão ao maior
desejo de ser feliz na cidade que fervilha de tesão e solidão do depois. Mas o
que é o depois?
Serafim já passou há muito de
Bagdá. Está perto da Faixa de Gaza. Falta só acreditar que nesta madrugada terá
uma gozada. Senão, no cadafalso que se abre quando o mestre de bateria apita o
final de tudo, o desejo será atropelado pela realidade. Na forja que cria e
molda os próximos dias até daqui a um ano próximo de folia, será preciso crer
que vale a pena persistir. Cambaleante, Serafim entra no carro, escapa de barreiras
alcoólicas de policiais de saco cheio de terem que resguardar a sociedade que
se encheu de saciedade e chega em casa. Estaciona o carro na garagem, desce e
vai no controle remoto que seu corpo dá encontrar o quarto onde está Constância.
A porta, porém, está fechada.
-- Constância, abre a porra da
porta! Cheguei! Me perdoa!
O silêncio inclemente que vem
detrás da porta é a certeza de que o máximo hoje será o sofá de dois lugares, ralo
e velho, que tem na sala. Serafim, no espaço que sobra ao chegar vê que a sua
mala está no chão, pronta para com ele zarpar. Devagar, relembra da igreja e da
ameaça velada. Tudo bem: o combinado não é caro. “Mas quem sabe amanhã, aliás
logo mais, o coração de Constância não mude de ideia?” Serafim deita no sofá,
boceja e cai no sono profundo. Na rua o caminhão de lixo passa a catar os
restos que cada um acha ser resto. Ainda no clima, um dos lixeiros canta o
samba da Mangueira. Logo mais os jurados decidirão se a Verde e Rosa fará jus a
mais um título.
Ps.: o título de eleitor do
Serafim não estava na mala. Numa madrugada em que festejava a vitória do
partido ele foi roubado junto com a carteira em vinte e quatro reais.
(Ao som de Cazas de Cazuza)