sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Acabou...

 Por Ronaldo Faria


Acabou! Acabou o Carnaval, o sal da areia colado no corpo, o suor que escorreu entre perfumes falsos e tresloucados beijos.  Terminou a busca pela sereia com gosto de cereja, a benfazeja loucura dos quatro dias, a orgia fatídica e idílica. Findou a profética magia que determinava que haveria o dia da centelha do querer. O bloco desceu a ladeira mas esqueceu de subir de novo. A galinha gemeu e não colocou o ovo.
Acabou! Acabaram os dias de Momo, rei destronado, que esquentaram os corpos trágicos e cômicos ao mormaço de quase 50 graus. Nada mais de bebidas e energéticos, intrépidos foliões e rejeitados amantes que dormiram sós na solidão de uma escola que erra o enredo. Os vendedores com seus grandes isopores já estão roucos de tanto gritar. As falsas baianas retomam sua rotina de voltar a retornar.
Acabou! Chega de “está cedo”, onde a madrugada ainda diz que falta muito para o sol tornar a raiar. O sol já ressurgiu rei no calendário e no lunário. E veio senhor de tudo, resoluto em terminar com amores descabidos, cabides que seguram as roupas íntimas e molhadas,  dádivas que só surgem na entrega eterna da paixão. Como renegados e execrados no amor, surgem parceiros perdidos nas estórias inglórias da ilusão.
Acabou! A hora agora é de brindar a realidade, a frágil e fácil verdade, a famélica crença de que o amanhã será além de uber ou metrô. De abrir a janela ao som do recomeço, no apreço de querer ser. De descer no elevador e dar bom dia sonolento ao vizinho que, igualmente, lamenta o mecanismo da máquina que o coloca no chão. Nesse momento, se isso for alento, sopra a brisa de vento. No ar, a emoção parece ser de domingo. De um domingo distante em que a folia poderá retornar.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Na inconstância de Constância

 Por Ronaldo Faria


Peripécias de peças sem palco e passos sem som. Périplos à busca da perfeição e palavras vagas e vãs. E talvez o fim esteja a poucas horas. Com a hóstia na boca, Constância contrasta com o tempo que ferve do lado de fora. O padre, na verve, prega para os poucos fiéis que ainda decidem se a decisão de ter ido à missa foi boa ou ruim. “Na avenida ao menos tinha um tamborim”, pensa Serafim. Do seu lado, Constância espera que o barulho do samba não mate o arrulho dos pombos na capela de Nossa Senhora do Fervor.
-- Constância, queria ter ido o “Farofa e pó é tudo farinha”. Porra, Carnaval é só uma vez por ano! Missa tem todos os dias.
-- Quer falar baixo. Ou melhor, calar a boca. Está na hora da consagração.
-- Consagração é na Praça da Apoteose! Isso aqui é como se os componentes da bateria tivessem desistido de sair.
-- Irmãos, o sangue de Cristo! Amém – diz o padre contrito na sua fé e profissão.
-- Deu. Constância, estou indo. Te vejo em casa amanhã de manhã ou na quarta-feira.
-- Se você sair, não precisa nem ir pra casa!
-- Fui!
Serafim levanta do banco e sai resoluto pelo portal de madeiras entalhadas e pintadas de verniz. Abre os braços para o sol que queima o mundo sem piedade e grita: “Valeu, vida, eu estou aqui!”
Entra no carro, liga o motor, passa a primeira e acelera na rua vazia. O povo não está no Largo do Rosário e da Reza. Está todo mundo no bloco a fazer do tempo um pouco de vento nas ventas, a aspirar carreiras e seguir na esteira da música que sai do trio-elétrico.
-- Obrigado, vida, por me dar a chance de revoar feito pomba vagabunda de praça a comer restos esquecidos entre um pacote de migalhas de bolachas ou biscoitos.
Enquanto isso Constância beija a mão do padre que dá o seu anel de pedra preciosa para ser enxaguado de saliva e cuspe pelas ovelhas agarradas. As desgarradas há muito não comparecem no altar.
-- Como Serafim pode ter me trocado por um desfile de bloco? E tudo aquilo que vivemos? Que trocamos nas noites de açoites de corpos e nos risos de descobrir que o amanhecer depois surgiria para mais?
Na bunda da foliã a banda passa e abunda o cenário ao derredor com olhos de desejo e uma certeza onde o não é sempre não (nas graças daquilo que deve ser). A dor não faz parte do compasso. No passo das pessoas ressoa o tempo, imensidão de tristezas represadas, vastidão de carências castigadas, encontro de loucuras que dão razão ao maior desejo de ser feliz na cidade que fervilha de tesão e solidão do depois. Mas o que é o depois?
Serafim já passou há muito de Bagdá. Está perto da Faixa de Gaza. Falta só acreditar que nesta madrugada terá uma gozada. Senão, no cadafalso que se abre quando o mestre de bateria apita o final de tudo, o desejo será atropelado pela realidade. Na forja que cria e molda os próximos dias até daqui a um ano próximo de folia, será preciso crer que vale a pena persistir. Cambaleante, Serafim entra no carro, escapa de barreiras alcoólicas de policiais de saco cheio de terem que resguardar a sociedade que se encheu de saciedade e chega em casa. Estaciona o carro na garagem, desce e vai no controle remoto que seu corpo dá encontrar o quarto onde está Constância. A porta, porém, está fechada.
-- Constância, abre a porra da porta! Cheguei! Me perdoa!
O silêncio inclemente que vem detrás da porta é a certeza de que o máximo hoje será o sofá de dois lugares, ralo e velho, que tem na sala. Serafim, no espaço que sobra ao chegar vê que a sua mala está no chão, pronta para com ele zarpar. Devagar, relembra da igreja e da ameaça velada. Tudo bem: o combinado não é caro. “Mas quem sabe amanhã, aliás logo mais, o coração de Constância não mude de ideia?” Serafim deita no sofá, boceja e cai no sono profundo. Na rua o caminhão de lixo passa a catar os restos que cada um acha ser resto. Ainda no clima, um dos lixeiros canta o samba da Mangueira. Logo mais os jurados decidirão se a Verde e Rosa fará jus a mais um título.
Ps.: o título de eleitor do Serafim não estava na mala. Numa madrugada em que festejava a vitória do partido ele foi roubado junto com a carteira em vinte e quatro reais.
 
(Ao som de Cazas de Cazuza)

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Thomas Walbum Trio, from Denmark

Por Edmilson Siqueira


"Hi Ed, Greetings from Denmark." Depois dessa frase há uma assinatura que eu sei ser de Thomas Walbum. Trata-se de um autógrafo no CD "Boston", com o Thomas Walbum Trio.  
Claro que pouquíssima gente por aqui conhece esse artista. O CD, importado, eu comprei numa noite na casa do Kha Machado. Os dois devem ser amigos e Thomas veio para uma visita e acho que combinaram uma apresentação. Eu nem sou amigo do Kha, já escrevi sobre ele aqui e na revista Metrópole, onde tinha uma coluna. Acho que daí partiu o convite.
Foi uma noite agradável, com vinhos e algumas guloseimas (não me lembro se houve cobrança de ingresso), mas saí de lá com um CD do Thomas devidamente autografado.
É um CD de jazz puro, ou seja, piano, contrabaixo e bateria - a formação que mais aprecio em se tratando de jazz - e que, além da formação, trata o improviso em cada faixa com a devida seriedade tanto que a menor faixa passa dos cinco minutos e a maior passa dos dez. 
Thomas ao piano é acompanhado por Joe Hunts na bateria e John Lockwood no contrabaixo. Das sete músicas do disco, três são de Thomas. As gravações aconteceram em Boston, no dia primeiro de junho de 2001.
No encarte do CD fico sabendo que Thomas, dinamarquês, se graduou no Rhythmic Conservatory em Copenhague e também completou o grau de Master of Music no famoso Berklee College of Music do Conservatório de Boston, se formando em Jazz Performance. O período no Berklee culminou com a formação desse Thomas Walbum Trio e "Boston" foi o primeiro CD deles.  
E foi, digamos, uma estreia auspiciosa. Os três músicos se entendem perfeitamente bem e o resultado é uma sonoridade que não fica a dever os bons trios de jazz norte-americanos.
O disco começa com "Like Someone In Love" (Van Heusen e Burke), uma das favoritas de Thomas, como ele mesmo diz no encarte, nos comentários que faz sobre cada faixa. Dessa, diz o ainda o seguinte: A abertura alegra e arejada reflete o quanto nós gostamos de trabalhar juntos. A música praticamente seguiu sozinha e nossa performance acabou sendo uma versão simples, clássica e agradável desse que é um dos grandes standards do jazz". 
A segunda faixa é "Green Dolphin Street" (Kaper e Washington). Thomas fez algumas intervenções, como ele próprio assinala: "O que eu fiz aqui foi adicionar um groove lento e bluesy em sétima a essa melodia clássica cativante." 



O disco segue com "Into The Void", a primeira música de autoria de Thomas. Ele diz que a ideia surgiu numa manhã assim que chegou em Boston: "Eu estava me sentindo um pouco mal-humorado, perdido e inseguro, mas havia algo de excitação e expectativa sobre a desconhecida experiência que viria a seguir. A primeira parte é baseada nos princípios do intercâmbio modal, que ajuda a criar uma atmosfera de incertezas." 
"Love For Sale", o clássico de Cole Porter é a quarta faixa. Sobre o autor, Thomas fiz que ele sempre foi um de seus favoritos, "com seu infinito fluxo inventivo, de letras e melodias cheias de imaginação e um grande senso de humor." E é tentando, e conseguindo, imprimir essas qualidades na interpretação que o Trio nos apresenta esse clássico. 
Outro clássico, desta vez de George Gershwin - "Embaraceable You" - é a quinta faixa.  Thomas afirma que decidiu animar um pouco as coisas, "celebrando a maneira como um novo amor dá um salto no seu passo com uma versão de ritmo mais rápida". E ficou muito bom.  
"Octopus Blues" e "After Dark" são as duas últimas faixas, ambas de autoria de Thomas Walbum. A primeira, com um longo solo do contrabaixo e espaços também para o baterista mostrar suas qualidades, preenche a a expectativa de um blues bem definido. 
A segunda, conforme diz Thomas, "começa com um solo lindamente tocado por John Lockwood". E prossegue suave no piano e bateria. O tema, diz Thomas, surgiu in Copenhagen, "durante um daqueles momentos de tristeza à três da madrugada". E foi descoberto quando ele remexia suas velhas composições em Boston. 
Bom, se alguém ficou com vontade de ouvir, a única opção que encontrei foi em https://open.spotify.com/intl-pt/track/2R8iQSyBu6RBPrvmAGPvRV. Não encontrei o CD à venda.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Vai ou não vai?

 Por Ronaldo Faria


-- E aí, a escola desce ou não desce?
-- Pra descer ela primeiro tem que subir!
O papo de maluco beleza entre Pafúncio e Honório parecia um solilóquio à porta do único mictório da avenida.
-- Como assim?
-- Meu cacete, você perguntou se desce e eu respondi que só desce se subir.
-- Isso eu já sei. Então mudo a pergunta. Sobe?
-- Aí depende do jurado.
O papo estava difícil. Pafúncio, preocupado com o legado do seu pai, que era o mestre de bateria no passado, pensava em seus batuqueiros que não podiam atravessar o samba-enredo. Já Honório, sambista de destaque com seu pandeiro, tinha prometido o título à Adalgisa, a porta-bandeira que dormia com ele todas as noites na cama que rangia volta e meia em Madureira.
-- Tudo bem, então vamos pra cima!
Na avenida que não era a principal como palco da festança, na verdade um espaço para se sonhar um dia estar sob os holofotes de emissoras e cliques de gringos que nunca viram uma passista gingar, o importante era desfilar com fé.
-- Barnabé, segura a onda da ala das baianas. Faz elas rodarem como se o amanhã nunca existisse. Se tiver de morrer do coração, que seja aqui! Nada de Samu e UPA!
-- Tá falado, seu Justiniano.
Justiniano, ainda não apresentado, é o patrono da escola.
-- Carlinhos da Carola, carnavalesco de purpurinas e paetês, quero ver agora se a tua ideia valeu os tantos milhões! Se a escola não subir, pode fugir da comunidade. Afinal, pra se morrer de bala perdida ou achada não tem idade!
Assim, quando a sirene dispara para iniciar o desfile, a escola põe o bloco na rua e mostra desde a comissão de frente, com céleres cavalos marinhos vestidos de plástico para mostrarem a derrocada dos mares (o enredo era “O fim da terra e dos mares na finitude dos deuses da África quando se encontraram com Orfeu”), a força do entredo estaria por vir. O primeiro carro alegórico – A apoteose de Netuno no boteco do Almir – foi um colosso. A sambar sobre a mesa principal, Alícia do Justiniano, mulher do patrono, rebolava sua última plástica a sorrir sem a boca sequer poder fechar. E seguiram alas, novos carros (“Polvo sem tentáculos na rede dos pescadores pecadores” e “Ressaca na seca do sertão”) e alegria que o povão fazia surgir a cantar no samba de Carlinhos Apontador e Gervásio Gago Beleza. No fim do desfile, em fila de agradecimento, integrantes da comunidade beijavam a mão de Justiniano garantindo a cesta básica de março próximo.
-- Agora é esperar o resultado. E Deus que se apiede do jurado que não der dez...
No dia do julgamento, não teve aquele que não visse na Acadêmicos Fabulosos do Ilê de Iaiá do Morro da Piedade Piedosa a campeã. Na quadra, Pafúncio estava preocupado agora era no próximo ano não cair; Honório caía de bêbado feliz porque garantia Adalgisa no barraco por mais um ano; Carlinhos da Carola esperava convite de outra agremiação com menos bala na agulha pra disparar; Carlinhos Apontador e Gervásio Gago Beleza esperavam o Zeca Pagodinho deles um dia poder lembrar da dupla. Barnabé amparava dona Cremilda, baiana mais antiga da escola e que estava estafada, quase em piripaque. Justiniano? Esse ninguém nem precisava falar. Apalpava, beijava e erguia a taça de campeão e via Alícia tentar fechar a boca esticada para a foto do jornal estadual não desfocar.
-- Porra, Alicia, tu não disse que o doutor era porreta? Chiquinho Dedo Trêmulo, meu segurança, amanhã tu vai levar um lero com o vagabundo... E pode passar o rodo.
Na quadra, a felicidade estava a rolar inconsequente e real. O importante era escancarar o fim da espera, terminar os barris de chope e saber que Carnaval é só um dia pra se viver.

(Em homenagem a Beth Carvalho e todos sambistas do País)

sábado, 9 de novembro de 2024

Mosquito proscrito ao som de Leny Andrade e César Camargo

 Por Ronaldo Faria


Um mosquito chato e pequeno, com tanta coisa a fazer na vida vem logo encher o saco do pseudo cronista Felisberto a tentar escrever.
- Puta que te pariu, vou te matar, lazarento!
-- Remédio, remédio, que tédio!
Felisberto era esse ser a descrer da loucura que é viver.
-- Pra quê essa merda se no fim dá tudo em bosta?
O mosquito esquisito buscava o copo de cerveja insistentemente.
-- Será esse morfético, ser insignificante, não frequentou o AA mosquital?
Sem saber se o tinha engolido ou não num gole a mais ou se o ventilador a mil o tinha impedido de continuar a voar, Felisberto por fim se acalma.
-- Agora vou poder pensar em Lavínia.
Recoloca o papel na máquina, vê se o rolo de tinta, já meio gasto, aguentará até o fim da proeza e volta a datilografar.
-- E agora, digo que a amo ou que a venero? Venerar parece coisa venérea. Melhor não. A amo. É isso! Amo-te, por começar parágrafo.
Ser solitário, catártico, prosaico, metamórfico, sabe-se lá mais o que, ele decide fazer um poema que pareça ode à elegia apaixonada.
“Daqui, nessa noite inesperada, sangrada, espero minha amada.
Será ela coisa forjada, arrebatada, enamorada, ávida? Saber-se-á.
Sei apenas que ela é noturna e soturna, taciturna...”
-- Puta que me pariu, a porra do mosquito voltou?
No meio de um pensamento, Felisberto atenta que o pequeno ser retoma seu voar.
-- Como esse infeliz ainda está aqui?
Sem saber ler pensamento ou voz de um ser humano, o ser de asas pequenas e assimétricas permanece em verve a perturbar o coitado do escritor atemporal.
-- Vai tomar no cu! Agora é guerra!
Colérico, Felisberto levanta da cadeira de madeira maciça e corre até a cozinha onde guardava um inseticida que trazia escrito “cuidado na sua utilização”.
-- Se prepare para morrer, famigerado...
Enlouquecido, despeja jatos por todo o lugar E inala tudo ao redor com voracidade de quem quer o tempo parar. Para ele, agora não tem tempo ou lugar.
-- Morre, desgraçado, morre!
Após o frasco secar, a casa parece um campo de batalha biológica entre a lógica e o esvanecer. Tonto, sem conseguir sequer dizer a quem queria escrever, Felisberto cai no chão. Intoxicado, com o coração a querer parar, vê o ridículo inseto, mosquito em presto, voar até o copo de cerveja quente. Interligados na cena, ambos morreram em poucos minutos. Se Felisberto tivesse lido a forma de aplicação teria visto que era preciso deixar o ar circular. Se o mosquito tivesse lido o rótulo da cerveja teria sabido que o produto não era recomendado a insetos e congêneres. O enterro dos dois, cadavérico e letal, teve hora e local iguais. E ninguém, de asas ou pernas compareceu...Mas, no horário marcado, as doses obrigatórias de remédio foram cumpridas.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Chuva, vento, Leny e César Camargo

 Por Ronaldo Faria


A chuva se alvoroça do lado de fora para cair. Um vento de brisa tresloucada com cheiro d’água balança roupas no varal e derruba o que vê pela frente. Em quilômetro insanos de  correr pelo céu, a noite se prepara para apagar o que o dia ainda acreditava ser. Um ou outro transeunte transita veloz para fugir das gotas que caem fortes e perenes. Aos poucos o lugar vira um encher de poças e pés molhados a correrem no asfalto escondido por rios de água urbana. Do alto, José e Maria olham para tudo como não fosse com eles. Ambos, ou os dois, como diria o desavisado que visse a cena, sequer levantam da cama. Nus, mumificados em um amor ininterrupto, abrupto, paulatino em gestos e versos, preferem esperar a hecatombe passar. “Tudo passa, ela também passará”.
A sexta-feira é de Carnaval, festa carnal por essência naquilo que ao desejo se faz essencial. Mas, para o casal bíblico, fálico, tragicômico na sua epopeia, a festa de Momo já tem décadas de existência e nunca acabou. Quarta-feira de cinzas? No calendário deles inexiste. Todos os dias são dias de vestir fantasias, beber nostalgias, tragar doses de alegorias em saliva e paixão. No bloco que desfilam, não há bateria que peça para parar, foliões que desistam de desfilar seja onde for, no asfalto ou no mar. Para eles, a piedade não vem de bênçãos mundanas, profanas fantasias, dionisíacas orgias. A comissão de frente, que afronta jurados e notas, loucuras e artroses, passos e vozes, não precisa de coreografia. Basta um sorriso, uma fina brisa que bordeia o derredor e um antídoto pra dor: o juntar corpos, saciar cópulas, sorrir juntos num sorriso que os olhos veem.
E assim, como botões de rosa que decoram o fim do decoro de corpos, continuam a se tocar e vislumbrar que um dia, em inclemente sangria, verão seus copos entornarem emoções nas fálicas e inertes unções do querer ser feliz. Por isso não se importam com a chuva que inunda e destrói, com o vendaval que derruba e corrói, com a previsão que se diz factível e atroz. No quarto, catacumba que macumba nenhuma desfaz, se fazem únicos e invisíveis ao mundo. Na rua, após o dilúvio sobrenatural, que chamam de menino ou menina espanhóis, alguns voltam a sambar em som de atabaques e bumbos molhados e desafinados. Num beijo molhado e escandalizado, como diria o compositor, Maria e José, José e Maria, continuam sua estrada de ribalta e espera. Nos dois, descansa a fera...

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Nas odes das ondas

 Por Ronaldo Faria


A onda bate quieta na areia que requenta no mormaço da noite que veio depois de seus 40 e tantos graus que horas antes a cidade vivera. No balaústre que divide o asfalto do fato, Ana analisa o que seria se, no passado, sua mãe tivesse optado por chamá-la Luiza: “teria sido, ao menos, homenageada pelo Tom Jobim.” Mas, qual, lavrada a certidão, ficou só Ana. Assim, nome pequeno de uma sílaba agregada quase em si. Sonora denominação, sem a sonoridade de um nome composto. Somente, solene, Ana. Porém, pra onda que termina de chegar e a espuma redundante e junta que cabe numa terrina que embriagará o pelotão de apaixonados que caminhará a ouvir do som que quebra nas rochas, isso pouco importava. Fosse ela Ana ou Quitéria, Maria ou Ofélia, Tânia ou Amélia, tudo ficaria igual. Aos oceanos basta ser um caminho de rios ou encontro de águas. Não uma aquática lamúria noturna. E assim, assimétrico em sua vastidão, o mar não vê que Ana deixa os olhos marejar de lágrimas que igual a ele têm sal.
Do alto dos prédios, logo abaixo das nuvens raras, televisões brilham em 4K e HD. O que existir agora tem que existir em multivisão que nunca seria quadro assinado de Salvador Dali. Portanto, Ana decide ir buscar seu rumo. Longe de Roma, deixa que o vento a leve. Na avenida que flutua na imaginação e se prende ao asfalto graças à lei da gravidade, segue até sua casa. E lá, no desaconchego do lar, dorme nua e lívida. Sem não antes se questionar: “Por que cargas d’água tinha que ser apenas Ana na hora de registrar?” Da rua, um bêbado regurgita seu próprio despudor.

 (Ao som de Jorge Vercilo e Tom Jobim)

domingo, 3 de novembro de 2024

The Dells e Burt Bacharach: uma união perfeita

Por Edmilson Siqueira


Juntar um conjunto vocal afinadíssimo, viciado no rhythm and blues, com arranjos excepcionais e um repertório de maravilhosas canções interpretadas com talento e ineditismo só pode resultar num disco sensacional. 
Pois foi isso que aconteceu quando o produtor e arranjador Charles Stepney juntou o grupo The Dells e a obra musical de Burt Bacharach com as letras de Hal David. E com um detalhe: só músicas que houvessem sido gravadas por Dionne Warwicke. 
A formação inicial do grupo remonta a 1953, entre amigos do ensino médio, e o nome escolhido foi então El-Rays. Eles lançaram sua primeira gravação em 1954 e dois anos depois tiveram seu primeiro hit de R&B com "Oh What a Night". Depois de se separarem devido a um acidente de carro quase fatal em 1958, a banda se reformou em 1960 com Funches sendo substituído por Johnny Carter. Essa formação permaneceu junta até a morte de Carter em 2009. Em 2004, os Dells foram introduzidos no Hall da Fama do Rock and Roll e no Hall da Fama do Grupo Vocal. O grupo se apresentou até que uma doença forçou o vocalista de longa data Marvin Junior e o vocalista baixo Chuck Barksdale a se aposentarem, encerrando a carreira de 60 anos do grupo. 
Nesses 60 anos de estrada, foram 28 álbuns gravados até 2008, muitas coletâneas e vários singles que chegaram a frequentar as paradas de sucesso.

 
O álbum em questão foi assim apresentado pela casa de discos Dustin Groove, de Chicago: "A Chess Records assume a música de Burt Bacharach, com resultados surpreendentes – graças aos vocais profundos do The Dells e à produção impecável do lendário Charles Stepney. O álbum é um tremendo encontro de mentes, já que o The Dells realmente transforma as composições brilhantes de Bacharach – dando a elas profundidade e sentimento de maneiras bem diferentes de quaisquer outras interpretações das músicas. Os arranjos de Stepney também são incríveis – a par de seu famoso trabalho para Minnie Riperton, Rotary Connection e Ramsey Lewis – tão majestosos quanto Burt Bacharach poderia ter desejado, mas com uma abordagem muito diferente e uma leve corrente de funk. A instrumentação é de Stepney, Phil Upchurch e membros do The Pharaohs – além de uma seção de cordas completa também. Outro clássico do soul barroco dos dias de glória da cena soul de Chicago!" 
Como se vê, não é pouca coisa. E basta ouvir os primeiros acordes e a vocalização inicial de "I'll Never Fall in Love Again", faixa de abertura do disco, para perceber que o trabalho e coisa de gente grande. Todas as dez faixas seguintes frequentaram as vitrolas de muita gente durante anos, na voz da então mulher de Bacharach, Dione Warwicke. Só que a nova roupagem que os Dells e Stepney deu a elas, fez com que se sentisse estar ouvindo algo novo e muito bom também. 
As dez faixas seguintes são: ""Walk On By"; This Guy's In Love With You"; "Raindrops Keep Fallin' On My Head"; "I Just Don'T Know What To Do With Myself"; "Close To You"; Trains And  Boats And Planes"; "A House Is Not A Home"; "I Say A Little Prayer For You";  "Alfie" e "Wives And Lovers".Há alguns exemplares do disco em vinil para venda no Mercado Livre. Não encontrei CD. O que eu tenho não é oficial, mandei copiar do LP que tinha. Mas dá para ouvi-lo inteiro no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=oV2WcMdCoE8&list=PLR-S3EnQixcJtQxbqo8BCdteNWPMx33ZD
"The Dells sing Dionne Warwickes' Greatest Hits" é um disco gravado em 1972 em Chicago e que, até hoje, é ouvido por aí em estações de rádio especializadas em rhythm and blues e soul music. O grupo não existe mais, mas sua música - há várias outras gravações memoráveis deles - parece ser eterna, pois alia o bom gosto do repertório à qualidade dos vocais e dos arranjos.


sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Zeus

Por Ronaldo Faria


Zeus! Isso é nome de colocar numa criança? Fazê-la desde o início ser um deus? Obrigar o pobre pequeno a dar ordens em todos os outros deuses da mitologia desde o primeiro choro e a primogênita mamada? Pra puta que pariu os pais que isso determinaram...
-- Zeus, e aí, vamos pra balada?
-- Vai ter birita?
-- Claro que vai!
-- Então estou nessa...
Zeus, brasileiro da gema, era desse jeito: ser multiforme em constante deformidade. Para ele, tanto valia o agora ser de grandiosidade de salões performáticos ou feito às vielas mais combalidas e diminutas. Se houvesse o que beber e viver, seu endereço estava ali. Todos pegaram o rumo, seguiram o prumo e colocaram a bússola no destino taciturno. Tudo, no fim, sabiam, vira fim de turno.
-- Que horas são?
-- Sei lá. Como ainda tem estrela no céu, deve ser tarde pra ser dia e cedo pra ser madrugada.
-- Bem pensado.
-- Se é escuro, vamos seguir o desejo. Afinal, um dia ele não existirá. Num caixão fechado e colocado debaixo de tudo, só a certeza de que se fez, fez. Se não fez, não mais fará!
Nas calçadas e esquinas, casas e janelas que rodeavam os amigos na busca de viver, olhares e suores, mãos e respirar sôfrego se misturavam com as gargalhadas do pequeno e grande exército de retintos e brancos leões.
-- Será que a Carolina vai estar lá?
-- Não sei. Mas deve estar. Ela não perde festa que tenha erva e cerveja.
Esse era o amor maior de Zeus: Carolina, Carol para uns e Lina pra outros mais. Mulher de cabelos que voavam negros entre a pela branca e os olhos que misturavam verdes e azuis todos límpidos, corpo que nem mesmo Michelangelo saberia esculpir, boca de lábios vermelhos em carne e prazer, era a musa que nem mesmo o próprio Zeus terá encontrado em Atenas ou Tróia. Carolina, vaticínio que o Vaticano assinaria como determinante e digno de alfarrábios bíblicos, era sua razão de existir.
-- Zeus, você é vidrado nessa mina...
-- Vidrado? Não. Vidro quebra. E ela é muito mais.
Por fim o grupo chega ao folguedo na pequena casa que se escondia numa rua pequena, pacata, estrábica à loucura da cidade, impávida no seu nenhum colosso.
-- Porra, encheu pra caralho! Como essa moçada toda soube do que ia rolar aqui?
Para Zeus, pouco importava. O importante era cruzar com Carolina. E assim se foi, a esbarrar com loucos desvairados, transviados, alucinados, calcinados de tanto queimar, bastardos e futuros contadores de histórias que se vale relembrar. E assim, de repente, de frente a frente, se dá com a amada. Sob a luz das velas que enlevam a cena, a agarra de presto. A beija com carinho e saciez como se logo mais não houvesse resto. E se deixam partir ao quintal que respira brisa e maresia ao luar que afugenta o tempo de passar. Neste momento, sem pecado, lamento ou perdão, se entregam em desvario e servidão. Dentro da casa, cálices se veem atirados no chão ao escaparem de mãos trêmulas e incertas. Alheio a tudo, o universo, em verso poético, pede que o mundo pare de girar.
 
(A ouvir Caetano Veloso em seus/meus Anos 80) 

Acabou...

 Por Ronaldo Faria Acabou! Acabou o Carnaval, o sal da areia colado no corpo, o suor que escorreu entre perfumes falsos e tresloucados beijo...