Por Ronaldo Faria
Na mesa, ensimesmado, Valfrido
vaticina a sorte pueril de viver. Ri tresloucado e desdenhado nas horas escuras
que sombreiam de luzes os negrores ao redor. E viaja em si mesmo. Acaricia a própria
barba para se saber amado. Naufragado nas efêmeras pernas das fêmeas que habitam
seu passado, submerge e emerge a cada gole e som da canção. No bar, uma roda de
samba ensaboa de suor os casais que dançam o fim de mais um dia em nostalgia. Valfrido,
sentimental a ponto do sentimento se tornar mortal, é um a mais na travessia
que converge aos loucos e sonhadores. Na encruzilhada se encontra perdido.
Noutra mesa, calada e
ruborizada com a cantada que acabara de levar, Selma redescobre o imbróglio que
é ser virgem com ascendente em capricórnio. “Ir ou não? Responder ao aceno ou
ficar na minha, feliz por sê-la?” O amanhecer ainda não chegou ou disse que
está para aportar. Há muito a se fazer e viver. Selma se assemelha à certeza de
que a solidão pode ter fim, tal e qual crescem no jardim a camélia e o jasmim. “Melhor
ficar na minha...” Na fila do banheiro feminino, a floreira forra de vermelho o
inerte desvelo.
Como todo o conto sobre dois
que desejam virar um ser uniforme e disforme, Selma e Valfrido se esbarram enquanto
o garçom tenta entender o pedido de Francisco, um personagem que em nada mudará
o fim deste escrito. “Desculpa, não te vi” – diz Valfrido embriagado na beleza
de Selma. “Sem problema”, respondeu a nova musa, coberta literalmente de ouro linguístico
no eufemismo do amor e da paixão. A certeza é que ambos mentiram a si mesmos. Seus
olhos com certeza se cruzaram e se encontraram quase míopes e esbugalhados.
A partir daí, a traduzir o
solilóquio que se fez, os dois transgrediram poemas e prosas, conversaram sobre
mil versos enquanto a vendedora chega com um buquê de várias rosas. “Me dê
duas, das mais bonitas”, diz Valfrido. “São suas, já que ninguém até então te
presenteou com nenhuma.” De fato, Selma nunca havia ganho uma pétala sequer. No
mundo de hoje o romantismo parece ter se esquecido de fazer parte dos
dicionários e do imaginário. “Obrigado, vou guardar com todo carinho”, disse
com a voz da descoberta.
Decerto, todos pensarão que a
história se acabou nas cobertas de um ou do outro. Em orgasmos e engasgos de
saliva. Mas não. Saíram do bar ao fechar e seguiram pelas ruas e esquinas a
gargalharem sabe-se lá do quê. Nem era preciso saber. Afinal, no final de tudo,
só a eles interessa a troça ou a troca de beijos e afagos, mãos coladas e
cabelos acariciados como fossem infindos agrados. Despediram-se no portão, se
despiram da solidão e disseram que na manhã aberta voltariam a se ver. Depois, nas
respectivas camas, antes lugar de choros e dramas, descobriram que há chamas a
crepitar nos raios do sol a chegar.
(Com as bênçãos do som de Belchior)
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