quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Papo de dois viventes do século há muito passado

 Por Ronaldo Faria


-- Quantas já foram?
-- Sei lá, Raimundo. Você é muito sistemático. Isso importa? Está preocupado com a conta? A gente vai rachar meio a meio. Deixa de estrupício.
-- Não é isso. É que a Aurora está em casa me esperando.
-- Ô meleca, ela te espera faz mais de 50 anos. Vai ser justamente hoje que ela irá resmungar? Ela já está dormindo faz tempo...
-- Sei não. Será que a novela das seis já acabou?
-- Raimundo, ela acompanhava as novelas da Rádio Nacional. Acha que ainda está acordada?
-- Seu garçom, por favor, que horas são?
-- São 19h20, Seu Raimundo...
-- Está tarde, Zequinha. Falei que voltava às seis e meia.
-- Mas pelo amor de Deus, o medo é da canja esfriar? Pois saiba que ela já esfriou. As pelancas da galinha já dormem sobre o caldo.
-- Como você é mau, Zequinha. Você sabe que eu não gosto de canja fria...
-- Se é por causa disso, ô colega da caderneta, manda duas coxinhas quentes pra mesa!
-- Coxinha? Sabe que eu não posso com fritura desde que operei a vesícula há 40 anos atrás.
-- Isso é coisa da sua cabeça. Não esquenta. Vamos comer as coxinhas e conversar sobre a Copa de 58. Lembra que ouvimos juntos a final na casa de papai? Tinha um monte de gente colada na transmissão. Quando acabou era o tal de festejar e gritar. Vou te dizer, naquele dia, papai estava tão bêbado que aproveitei e tomei um gole da pinga que ele nem lembrava que estava a bebericar.
-- É, foi emocionante. Acho que veio a redenção da nação. Como disse o Nelson Rodrigues, perdemos a vergonha de sermos perdedores, vira-latas, ou algo assim.
-- Ah, já vivemos muito, não? Claro que não. Só por termos quase 90 vivemos demais? Eu posso até usar bengala, ser meio banguela, sentir dores no corpo quase todo, mas ainda venho aqui no boteco do neto do Seu Irineu tomar minhas cangibrinas.
-- Você gosta de parecer um garotão, como dizem esses de agora. Mas desde que a Marieta morreu não tem prumo na vida.
-- Prumo nada. Foi a segunda chance da liberdade. Quando eu vou pra casa eu não vou preocupado com a pelanca da galinha. Vou pra assistir minha tevê, comer o que tiver e dormir.
 -- Por isso que seus filhos e netos não te procuram. Você se acha a derradeira bolacha de sal do pacote.
 -- Raimundo, você é um imbecil carimbado e lambido de selo. O fato da pelancuda da Aurora ainda babar na fronha te faz melhor? Faça-me o favor...
-- Eu pelo menos chego em casa e tem alguém.
-- Claro, isso se o aparelho de audição dela não estiver descarregado!
Preocupado com o tom da conversa, Kleiton, o garçom, toma as rédeas da história.
-- Senhores, muita calma nessa hora! Vai a terceira cerveja ou já fecho a conta?
-- Terceira? Zequinha, você quer ficar bêbado de verdade? Traz a conta!
-- Raimundo, com todo o respeito, vá se foder! Não saio daqui sem a saideira! Traz a terceira!
Discute de lá, pragueja de cá, e chegam à conclusão que uma latinha irá satisfazer o desejo ensandecido de beber.
-- Então está bem, vou trazer a latinha e a conta.
A voz de Kleiton vira a sentença final.
-- Tem o dinheiro pra pagar?
-- Claro, minha aposentadoria é pouca mas dá pra esse arroubo.
-- Consegue fazer a feira se pagar?
-- Com certeza! Não sou mendigo.
-- Então está tudo certo. Até a próxima semana?
-- Claro. Apesar de você ser um chato, virei.
O destino, porém, bradou diferente. Aurora, asmática, naquela semana, como dizem hoje, empacotou. Raimundo, viúvo novo, se fechou em casa a pensar nas canjas que não mais existirão e no boa noite dito com a voz da amada que não ouvirá. Zequinha, que há muito já sabia o que era esse destino moribundo, compareceu religiosamente ao bar e bebeu até não querer mais.
-- Já são três Brahmas? Fecha, por favor. Ainda quero viver mais uns dois anos.
No mundo próximo uma chuva fina definhava na esperança. A vida estava quase uma lambança.
 
(Ao som de Pixinguinha e saber se os diálogos estão corretos ou não)

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