sábado, 3 de agosto de 2024

O eterno Otis Redding

Por Edmilson Siqueira


Ninguém cantou soul music como ele e, dificilmente alguém cantará. Ele saiu de um emprego comum onde ganhava pouco, aos 15 anos para entrar na banda de Little Richard e ganhar algum dinheiro a mais e ajudar a família. Onze anos depois, ele morreu num acidente de avião. Nesse curto espaço de tempo, se transformou num dos maiores cantores do EUA e, com certeza, no maior, até hoje, de soul e  rhythm and blues. 
Estou falando de Otis Redding, nascido na cidade de Dawson, na Georgia, em 1941. Sua carreira foi meteórica. Após participar do grupo que acompanhava Little Richard, dois anos depois juntou-se à banda de Johnny Jenkins, The Pinetoppers, com quem fez uma excursão pelos estados do Sul como cantor e crooner. Uma apresentação em uma sessão de gravação da gravadora Stax, levou-o a assinar um contrato para gravar seu primeiro single, "These Arms of Mine", em 1962.
A própria Stax lançou o álbum de estreia de Redding, "Pain in My Heart", dois anos depois. Inicialmente popular principalmente entre os afro-americanos, Redding mais tarde alcançou um público mais amplo de música pop americana. Junto com seu grupo, ele fez pela primeira vez pequenos shows no Sul dos Estados Unidos. Mais tarde, ele se apresentou no popular clube noturno de Los Angeles Whiskey a Go Go e viajou pela Europa, se apresentando em Londres, Paris e outras cidades importantes. Ele também se apresentou no Monterrey Pop Festival em 1967, poucos meses antes do fatídico voo.
A Spotfy anuncia sua discografia de estúdio completa em dez álbuns e, claro, ele não pode ter gravado mais que isso em apenas onze anos, já que sua principal atividade eram as excursões, inclusive fora dos EUA.
Seu estilo único, derivado do gospel e sua facilidade de interpretação, aliada a uma voz marcante e sincera, fizeram dele, rapidamente, um ídolo. Sua facilidade em enveredar pela música, fazendo improvisos que poucos conseguiram ou conseguem, deram a ele um lugar de destaque num mercado musical que já era gigantesco na metade dos anos 1950. 
Seu primeiro disco já continha cinco composições suas, provando que ali estava nascendo um fenômeno. Acompanhado de uma banda enxuta - três metais, guitarra, bateria e contrabaixo - Otis colocava sua voz como mais um instrumento, sem jamais perdeu a profundidade de seu canto e a sinceridade de interpretação.
Um dia, navegando pela  Amazon, deparei com uma oferta de uma caixinha com cinco CDs de Otis Redding e outra de Sergio Mendes. A dos brasileiros já foi assunto aqui. Eu me lembro que dei uma vasculhada na oferta e descobri que eram cinco discos de estúdio de Otis, todos eles com as capas originais - o que, aliás, torna impossível ler os textos das contracapas que, na cópia para o tamanho CD, ficaram quase microscópicos. 
Mas eram os cinco discos iniciais de Otis, o que me daria, além do prazer de ouvi-lo cantar, uma boa ideia da carreira desse fabuloso astro. 



Além de "Pain in my Heart", a caixa traz "The Great Otis Redding Ding Soul Ballads", "Otis Blue - Otis Redding Sings Soul", "The Soul Album" e "Complete & Unbelievable - The Otis Redding Dictionary of Soul". 
Entre as 59 músicas - são 12 em três discos e 11 nos outros dois, que era o que cabia nos LPs - estão alguns de seus maiores sucesso, como "Pain in my Heart", "Stand By Me", These Arms of Myne" e Lucille", todas do primeiro disco. No segundo, destaques para "That's How Strong My Love Is", Nothing Can Chance my Love" e Home in your Heart". No terceiro, logo na segunda fa0xa, "Respect", um megassucesso de Otis e, na quinta, "I've Been Loving You Too Long", que depois foi gravada também pelos Rolling Stones.  E ainda há "My Girl" (outra gravação dos Stones) e, invertendo o jogo, "Satisfaction" o eterno hit da banda inglesa, que nunca escondeu suas origens no soul e rhythm and blues. Aliás, essa gravação de Otis virou cult e até hoje é lembrada pelos amantes do rock. 
O quarto disco traz um texto na contracapa, sem identificação do autor, que começa assim: "Há muitos cantores de soul, mas grandes cantores são raros. Otis Redding é um dos grandes. Em poucos anos ele se tornou conhecido, através das suas gravações de sucesso e suas excitantes apresentações, como um digno sucessor dos legendários cantores de blues do passado.  É um disco onde as interpretações de Otis atingem quase um ápice.
O quinto e último disco da caixa, começa com outro sucesso: "Fa-Fa-Fa-Fa-Fa (Sad Song)", mas contém uma das melhores interpretações de Otis, que até hoje é muito tocada em rádios voltadas ao jazz e ao soul: "Try a Little Tenderness", grava por muita gente depois dele. Outra, digamos curiosidade do disco, é a versão dele para "Day Tripper", de Lennon e McCartney. 
Os discos lançados depois desse, ou eram gravações que ele já havia feito em estúdios para lançamentos futuros, ou gravações ao vivo de seus muitos shows, não só nos Estados Unidos.



E do seu maior sucesso, a composição sua e de Cropper, "Sittin' on the Dock of the Bay", que a tantos encanta até hoje, ele não desfrutou. Seu lançamento foi póstumo, como póstumos foram muitos prêmios que ele recebeu, bem com a criação de prêmios com seu nome, a inclusão em vários Halls of Fame e a colocação de seus discos em muitas listas de melhores de todos os tempos.
Enfim, o mundo perdeu, precocemente, um artista que, com certeza, tinha muito ainda a nos mostrar nas décadas seguintes. Se vivesse até hoje, teria 83 anos, só três anos a mais que Mick Jagger que ainda está por aí, esbanjando energia e talento.
A caixa com os cinco CDs está à venda por aí, nos bons sites do ramo. Vale a pena.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

A Caetanear a blasfêmia do chegar

 Por Ronaldo Faria

 

Ele estava deitado, sem consternação ou o caralho. Apenas estava. Como diria o poeta, num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico. Estava a beber decilitros e poesia. A caminhar na imaginação tardia. A sublimar o tempo para que o agora não seja o momento da canção. Quanto tempo faltaria? No tempo verbal que o poeta não sabe dizer qual na gramática seria, saber-se-ia.
Ele sobrevoava entre as favas secando ao sol, à espera de brotar, e um arcanjo malandro que faz trovas para que as virgens que sobem ao céu achem que as nuvens são púrpuras. No cantar da saudade, a performance das notas que denotam a natureza em perdão. No universo que se esmera entre a imensidão e o trovão, a púbere voz da amada que se faz díspar e volátil a se ouvir e redimir.
Ele, cancioneiro sem esmero de si mesmo, plágio das músicas e seus poetas, efeméride de algo que surge nalgum lugar, profana a forma e alude o descrente crer em outras línguas desse mundo a mais. Filho do antes da ditadura, da Capital Federal, vive até hoje a acreditar que há um socialismo a se esconder na semente à espera de um planeta, num canto de continente, a brotar e chegar.
Ele, carcinoma pungente e escondido que logo irá chegar, planteia o pranto que os olhos nem sabem como traduzir. Os raios de Sol que dentre em pouco voltarão, volteiam a ínfima procrastinação. Nas palavras frias e frígidas da imensidão da loucura em antemão, a servidão. Mas para que serve a vida? Ávida de lavradios tardios não vem a malfadada ternura, a lânguida e pura fervura.
Ele, conspurcado de si em medos e blasfêmias, amante de todas as fêmeas, amanhã não irá enlouquecer ou beber. Um túnel atemporal irá lhe tragar e trazer a eterna e a sempre amada. E então, o que vier, virá. No antever do descrer, jusantes vão se entrelaçar. E se bastar só um olhar, um prosear de passados e a incerteza do nunca chegar, já terá valido o que o inválido do amor nunca terá.

quarta-feira, 31 de julho de 2024

A ouvir Caetano

 Por Ronaldo Faria


-- Foi isso que você previu anos pra caralho atrás?
-- Certamente não. Num apartamento de Ipanema, quase na Globo pra criar documentários,  eu previa outra realidade. Mas, essa foi a verdade que sobrou...
Cândido, famélico ser do passado, conversava com Afrânio, que não era nem de melô ou franco. A mesa do bar juntava saudade e realidade. E a Zona Sul no seu azul iluminado agora pela lua que não sabe se é cheia ou meia que vê tudo. Tanto faz. No fim, tudo vai ser o que tiver de ser. A mesa de bar tinha cheiro de maresia, futura azia e cheiro de outra maresia, dessa que sobe, segura e dá barato geral. Pertinho, tinha ondas com espumas claras e volatilidade. Talvez saudade. Sangue a fluir na melhor idade.
Cândido, guerreiro desde o momento que surgiu e ungiu de destino o istmo entre a lucidez e a loucura, passou a batalhar com suas dicotomias e essências cadentes e urgentes, seus medos e desvelos, bastardas politomias e sabe-se lá o quê. E se escondeu em retalhos, atalhos, cadafalsos falsos, sofismas mil. Para ele, cadáver vivo nas férias dos vivos, qualquer bobagem já é manchete de parar as máquinas. E ouvir as decrépitas rotativas ativas a colocarem letras pretinhas e fotos coloridas no papel branco, aos seus trancos.
-- Foi isso que você previu anos pra caralho atrás?
-- Sei lá. Foi o que me foi dado, por surpresas e buscas, momentos de bruscas verdades e certos azares. Afinal, não é isso que é a realidade?  Utopias, sangrias, orgias, perfídias, fábulas e fulgurantes dias, cinzentos, cheios de unguentos e passos diários e lamacentos.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Milton, com toda nobreza

Por Edmilson Siqueira


 
As últimas apresentações de Milton Nascimento durante sua despedida dos palcos me despertaram um pouco de pena do gênio mineiro. Embora todas a qualidade de sua música estivesse ali presente, Milton se esforçava para cantar do jeito que já cantou. E quem ouviu, por décadas, o brilho incomparável de sua voz, não poderia ficar totalmente feliz com a performance de um grande cantor que, agora já com idade avançada, não era o mesmo, nem poderia ser. Há poucos Jagger e Matogrosso no mundo. E mesmo o brasileiro faz ótimos shows poupando agudos e danças pelo palco.
Claro que o fato de a voz de Milton não ter o mesmo brilho de forma algum empalidece sua carreira. O último ano em que ele passou pelos palcos foi uma despedida sincera, de gala eu diria, relembrando uma obra imortal.
E como não teremos mais aquele mesmo Milton ao vivo e como dificilmente ele vai gravar novamente, o jeito é curti-lo indiretamente, através de grandes artistas que não só preservam sua obra regravando-a, mas fazendo de forma magistral.
É o caso do CD que está rodando agora no meu Panasonic: "Milton - Por Monica Salmaso e André Mehmari". Ouvi uma música acho que foi no YouTube e nem esperei terminar para encomendar o bichinho.
Quando chegou foi um completo deleite.  
Monica acho que dispensa apresentações. É uma das melhores cantoras brasileiras atualmente, com um repertório e parcerias irrepreensíveis. 
André Mehmari é pianista (toca marimba de vidro também no disco). Além disso é compositor e arranjador. Dois parágrafos da Wikipedia bastam para deixar qualquer um de boca aberta: "Suas obras foram executadas pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), Orquestra Petrobras Sinfônica e Orquestra Amazonas Filarmônica, dentre outras importantes formações brasileiras. Na música popular, gravou discos com o bandolinista Hamilton de Holanda e cantora Ná Ozzetti.
Em 2010 assinou contrato com um dos mais importantes selos italianos de jazz, EGEA, que representa o artista na Europa e para o qual vai lançar cinco discos solo. O primeiro deles ("Miramar") foi gravado no Oratorio Santa Cecilia, no centro histórico de Umbra (Itália) e já foi lançado nesse país."
Ou seja, o cara é muito bom.  
E, além dele, há ainda a participação especial de Teco Cardoso tocando flauta baixo e sax soprano.
O resultado dessa união é um disco que dá prazer em ouvir do começo ao fim, colaborando para tanto as incríveis interpretações de Monica, o piano meio mágico e André e o acréscimo em duas faixas, do colorido do sopro de Teco.
"A Lua Girou", canção que inicia o disco, composta só por Milton, é quase uma oração pedindo a devida proteção aos deuses da música para abrir os trabalhos. O casamento entre a voz de Monica e o piano de André é perfeito.
Após o longo respiro da primeira faixa, o piano se encorpa a seguir para "Noites do Sertão, com música de Milton e singela poesia de Tavinho Moura.  
A terceira faixa é uma dessas que se tornaram clássicas, não só pela beleza da música e da letra, mas pelo conjunto apontar para um tempo em que não vivíamos sob o tacão da ditadura militar. "Saudades dos Aviões da Panais" ou "Conversando no Bar", de Milton e Fernando Brant, é dessas músicas que, a gente tinha prazer de dizer quando Milton a lançou, enganaram os censores do regime de exceção que a tudo proibiam.
Nova canção só de Milton, "Morro Velho" dá sequência às pérolas que Monica e André nos presenteiam. Interpretação no ponto certo, com o mesmo clima que Milton criou lá atrás e que ainda retemos na memória.



A quinta música une as genialidades de Milton e Caetano. À melodia rápida e à letra complicada, mas com todo sentido, é feita a leitura de um trecho do conto homônimo de João Guimarães Rosa, do livro "Primeiras Estórias". Fica tudo muito bonito e adequado, pois André deixa o piano para tocar marimba de vidro, à qual é acrescentada a flauta baixo de Teco Cardoso.    
"Canção Amiga" é o resultado dessas uniões mágicas que só a música e a poesia podem proporcionar. Um poema de Carlos Drumond de Andrade musicado por Milton, se transforma em sons imaginários que agarram as palavras do poeta e as torna mais belas ainda.
A faixa seguinte não é de autoria de Milton e sim da artista chilena Violeta Parra. Está no disco não só por sua excelência e significado, mas porque Milton a gravou no Clube da Esquina 2. Composta por Violeta em 1953, essa música fez parte da peça produzida por Leonard Bernstein para inauguração do "John F. Kennedy Center for the Performing Arts", em 1971.
"Paixão e Fé", composta por Tavinho Moura e Fernando Brant ficou nacionalmente conhecida na voz de Milton. Aqui, Monica faz jus à interpretação do mineiro e o piano de André a povoa com um brilho especial, num arranjo sensacional.
"Milagres dos Peixes", de Milton e Fernando Brant foi uma dessas canções que a cretina censura da ditadura proibiu de ser executada. O jeito foi inseri-la no disco, na ocasião do seu lançamento, sem a letra. Depois que a ditadura acabou, pudemos conhecer a letra e percebemos que a poesia era apenas um canto de amor de amor ao próximo, coisa da qual, certamente, os obtusos censores não entendiam. O sax de Teco Cardoso, aliado à voz de Monica e ao piano de André dá o tom certo e preciso para a bela canção.
"Credo", de Tavinho Moura e Fernando Brand, é a faixa seguinte. Canção forte, de esperança em dias melhores, é acrescida de uma citação à clássica San Vicente que lhe dá o devido ímpeto final em mais um grande trabalho vocal e instrumental da dupla.
"Paula e Bebeto" de Milton e Caetano Veloso, fecham esse momento precioso da música popular brasileira. Quase nada a acrescentar aqui à excelência do disco como um todo. A mensagem universal da música ("Qualquer maneira de amor vale a pena") hoje é quase um mantra que se espalhou por aí e deve ter produzido frutos muito bons.
Encerro com uma boa notícia: o disco pode ser ouvido - e assistido como um show particular! - na íntegra no YouTube:  https://www.youtube.com/watch?v=af1cJBh4pj0 e, claro, está à venda por aí nos bons sites do ramo.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Azáfama da playlist de cozinhar e cantar

 Por Ronaldo Faria


Azáfama da dificuldade de juntar dois. Horários, sacrários, metamorfoses, doses, entorses, fetos, netos, métricas vontades, os outros que fazem parte. Coisa estanque, feito tanque de roupa que nunca lavou um guardanapo de pano sequer. Coisa grandiloquente de décadas e comédias e tragédias. Idas e vindas, todas findas e infindas. Entre beijos, corpos entrelaçados, risos, lágrimas, fábulas, fastios e fátuas poesias. Coisa de Zeca Baleiro a cantar na noite que tem a boca de um dragão. Senão...
 
José seguia seu mundo até o fundo no mais profundo e macambúzio espaço do terreiro que juntava a janela do acertamento ao mundo. E percorria estradas, ria de alforjes vazios que passavam no seu caminho, transitava às ventanias de tantos lugares. Alhures delimitava a frágil união entre o início do nada e o fim de tudo. Com um cheiro de rosa vermelha, a falácia da felicidade se desfaz a cada momento no lamento diuturno do erro do passado.
Maria vivia seu passeio pela pele na essência da vida: sentença carcomida e falta de fotos, fatos, nomes, paisagens e quase nada. Toques do amor desejado, separações forjadas, tramas achadas, veleidades castradas, presságios em adágios vazios. Sentada no alpendre onde a lua se deixa translúcida para a vida renegar, cata o restante de histórias histriônicas, emoções catatônicas, frases afônicas e cheias de tonicidades e sonoridades quiçá icônicas.
Para José, um Tom Zé sem fãs ou canções, as luzes da noite e os botecos entre mil ticos e tecos, terços, troças, truques, no toque entre toques de graduações e ações, o momento era de cercanias do lamento. No ausente casamento, há muito inexistente, volatiliza a ferida aberta e nunca obstruída. E segue à margem da vida, a temer seus medos, beber seus degredos, glamorizar o que não tem porque seguir a estrada travada em mandrágoras.
Para Maria, tardia canção de um amanhecer sobremaneira fugidio, o caminho não tem volta, mesmo na revolta próspera da prosopopeia do cavalo a fugir pelo descampado que é o coração do amado. Em casa caída e deplorável e cada forjar o afável, sobe a ladeira a vencer volúpias e ventanias altaneiras. No seu mundo paralelo, o parabélum parece ser o translúcido alcaide da ópera sem tenor ou personagem principal. Na viela lateral, o cheiro mortal.
 
Ato 2
 
José está sentado no bar. Ainda tem todos os neurônios a funcionar. Ou, ao menos, parece ter. Vive de letras impressas e meras trovas, torvelinhas canções. Há também unções e amores, conquistas de todos os tipos, díspares e multiformes. Disformes à poesia. E fugidias formas de rolar em tantas camas mil, transitar e orbitar olhos, seios, pernas, corpos, vaginas. Um oceano múltiplo e tântrico. E línguas a sugar outras iguais, suores a respingar em tantos poros fatais, performances e quebrantos bêbados, afagos e fados escorrendo em quartos que se podem ser. Para José, o momento era tudo e rotundo na intrínseca busca do ter. Na fuga permanente da ausente e infausta solidão.
José, com seus santos e exus, a caminhar no altar e matas, cabelos negros da amada e chás que acharão seu porvir entre diarreias e alcateias, sobrevive e vive, bebe e bolina, olha a noite que se antecipa à madrugada tragada de ausências e anuências, luzes coloridas nos semáforos ou faróis, postes preocupados com motoristas primatas e atos que só a loucura maior da lucidez dá. Na mesa defronte, a fronte da mulher faz alternar beleza e quase mágica. Na trágica realidade das pessoas que passam na rua e perpassam o momento e a íris estrábica e as trazem para o sempre, o esmero do desespero mutante. Agora, José é apenas frágil e redundante mutante de si mesmo, a esmo.

sábado, 27 de julho de 2024

Sentença da solidão com Renato Teixeira

 Por Ronaldo Faria


A casa de fazenda descansa muda e seca à vida que habita a secular sequência entre o tempo de entranhas marcadas a chibatadas e o recomeçar. Parece um quadro de pinceladas malfeitas a se esgueirar no tempo que a cada dia a Terra dá. Como a esquecer da dor, caminho entre os portos e a resistência daqueles que não foram mortos até o interior do lugar que lhes iria profanar. Na prosa que já não proseia, a teia da aranha apanha das intempéries a sobreviver.
-- Rosinha, você casa comigo? Te prometo cama da boa, de palha, e te encher de filhos e filhas pra alegrar a casa. E juro que vamos criar todos pra serem donos desse mundão que Deus, do alto, vê.
-- Sei não, Honório. Emprenhar um monte de vez, dar de mamar, desmamar e dar de mamar outra vez. E se a parteira um dia não puder vir? Quem vai vencer as léguas até a cidade para fazer a criar sair?
-- Vou ter uma charrete rápida, colocar uns quatro cavalos pra guiar. Nada de carro de boi, com canga pra segurar. Garanto que a gente chega rapidinho no médico que der pra pagar. Senão, a Dona Vitória vai ter que estar a esperar. Ela nunca falhou com as mulheres daqui.
-- Honório, você vai me desculpar, mas não dá pra arriscar. O bucho é meu.
-- Rosinha, então você casa e a gente só deita quando você souber que não vai dar cria. Mas eu queria ser pai de uns dez, no mínimo. Filho é a certeza de que a gente continua vivo mesmo depois de morrer.
-- Honório, deixa de pensar besteira. Eu é que vou ter de parir a vida inteira.
Desacorçoado, o rapaz monta no alazão e sai em disparada pela estrada. No céu, a lua cheia recheia de visão o caminho até o lugarejo onde já tem luz de eletricidade a pipocar. Ele para o cavalo cansado e suado diante de um cocho, amarra o bicho e entra na casa que a luz vermelha faz cenário à beira. Se Rosinha não o quer, uma outra mulher do mundo há de querê-lo. Afinal, para quem está só, qualquer quirela de amor deve servir.
-- Honório, você por aqui?
Telma, vinda da Capital, dona do bordel, cumprimenta o visitante raro como fosse alguém que está lá todos dias, noites e tempos.
-- Dona Telma, Amora está aí?
-- Está com cliente. Mas esse é rápido. Parece andorinha. Logo ela volta pra sala. Quer tomar uma canjebrina?
-- Pode descer uma e mais outra.
-- Jeremias, desce uma da boa pro Honório! E já manda duas.
Enquanto espera por Amora, ele vê os casais se encontrarem, se beijarem, entrarem nos quartos ou sair no galope, gritarem ou sussurrarem na noite que está a brilhar no luar. Da sua cabeça, porém, Rosinha não sai. Estava tudo bem para virar semente diante do padre e depois chegar o amém. Mas qual, ela prefere virar freira ou enjeitada a ter dez ou doze filhos pra botar na estrada.
Quando Amora deixou o homem que demorou nem tanto tempo, ele a pegou pelo braço, levou para o quarto e fez tudo o que podia até quando o sol resolveu dizer para a lua ir buscar seu quintal. Amou, desamou, beijou, xingou, esbravejou, fez súplicas de amor, promessas até de altar. A moça, como já estava acostumada às bravatas dos seus amantes delirantes e errantes, bêbados e largados, apenas dizia a tudo que sim. Quando o gozo findasse e a realidade retornasse a Honório, ela sabia que tudo seria um sono demente a suspirar. Quiçá, o roncar de um boiadeiro.
Quando a manhã raiou, não rara em demora nesses tempos de agora, onde tudo parece já ter acontecido outrora, Aurora acorda Honório. “Já está na hora de pegar estrada boiadeiro.” Com seu pensamento a sorver o que ainda resta de entranha, Honório se levanta, lava o rosto na pia que pinga e pega seu rumo. Malvado, o cavalo amigo, está lá, ainda selado, a lhe esperar. Ele pede desculpas ao animal e toca a espora para onde for o destino final. Numa curva da estrada de terra, contudo, o cavalo trupica e cai desalmado. Malvado depois consegue se levantar, mas Honório bate a cabeça numa pedra grande de danada. Sangra até morrer na última morada. É encontrado horas depois por vaqueiros e sua vaquejada. Enterrado no local, com uma cruz bonita, colorida de azul e bem cortada, não teve tempo sequer de saber que Rosinha decidiu se mudar pra Capital e virar professora de maternal.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Bebida pro santo e João Bosco

 Por Ronaldo Faria

 

-- Pai Bastião, eu acho que o homem está bebendo bem.  Não deu uma semana e já foi quase tudo.
-- É que a coisa deve estar feia, meu zifio. Pra limpar tudo que veio, vem e virá só com muita oferenda...
-- Tudo bem, não me nego. Nunca me neguei. Mas nos últimos tempos a coisa evapora rápido demais.
-- Talvez porque seja para impedir que os últimos tempos virem o último tempo, o derradeiro suspiro, o fim de tudo.
José aceitou a explicação e agradeceu a resposta. Com certeza, na presteza da realidade tardia e vadia, Pai Bastião, filho de Oxóssi com Iemanjá, está certo. Decerto, mesmo que o calor extremo possa ter ajudado, outra explicação mais lúcida terá razão. Assim, o que antes era até 15 ou 20 dias virou menos de uma semana. Na artimanha da manhã ainda por vir, a esperança de um novo porvir. E a espera do samba geral.
Constrito, nunca consternado, José se ajoelha diante do congá e agradece em prece todos os orixás, relembra a índia que amou primeiro na vida e lembra do batismo, da confirmação e dos santos que desciam para trazer Ogum e Preto Velho ao lugar. Assim, no enfim que os anos trazem em décadas vividas, novas esperanças tragam heranças para que o copo possa se encher de novos ares quando secar. Salve o novo, Oxalá!

terça-feira, 23 de julho de 2024

Adeus 2023

 Por Ronaldo Faria


-- Vade retro, 2023. Vá para o limbo da eternidade da história e não volte nunca mais!
-- O que é isso, Demerval? Foi tão ruim assim pra você?
-- Cê tá louco? E pra você, foi bom?
-- Sei lá... acho que não cheirou e nem fedeu. Foi um ano a mais.
-- Então, parabéns. Enfim achei alguém que curtiu esses 365 excrementos diários.
Demerval tinha até do que reclamar. As chuvas famosas de início de ano haviam derrubado o barraco construído com tanto esforço de comprar material a prazo, surrupiar de outras obras, improvisar quando o cobrador vinha à sua moradia cobrar as prestações atrasadas. Mas não foi só. Maria, cansada de ser mulher de verdade, mesmo sem se chamar Amélia, resolveu em agosto, mês do desgosto, deixá-lo. Fernandão Pé de Mesa conquistou a morena com promessa cama, casa de alvenaria, comida e noites de gozo só.
Antes, porém, lá por março, como a falta de um cadarço, Demerval havia tropeçado no trabalho. Tinha faltado quatro dias seguidos. Deu por esquecido, tentou dizer que teve amnésia profunda advinda de uma queda soturna, mas o bafo de cachaça não convenceu o mestre de obras. Rua sem direito nenhum. Durante uns dias fez bico de segurança numa boate em Copacabana, vendeu capinha de celular na Rua do Ouvidor, sentiu dor no coração, mas curou no centro de umbanda que funcionava no Méier. Depois, como tudo que tem que piorar tem sempre um depois, depôs na 13ª DP sobre a agressão contra um turista boçal que tinha chamado ele de resto de Carnaval. “Seu delegado, mexeu com a minha Mangueira ou meu Flamengo, eu não tenho sustento na mente.” Para seu azar, o delegado era vascaíno e portelense e levou três meses no xadrez.
-- Você acredita que o pessoal da facção queria que eu fixasse um posto na comunidade. Eles diziam que eu tinha personalidade. Mas, pra quem já fodido, não vale a pena se foder e meio.
Quando saiu da cana, Demerval tentou vaga de flanelinha, apontador de bicho, pintor de parede. Acertou em alguns trampos, mas por pouco tempo. Chegou em novembro já meio mais pra lá do que pra cá. Para ele, sobrou um cartaz de “compra-se ouro e prata” no peito, em plena Avenida Suburbana, agora Dom Hélder Câmara. Dava para o trem e uma gelada na promoção. Vez ou outra vinha um extra como camelô cobrindo a falta de um parça. Ia se virando como dava. Mas Demerval sabia que o pior estava por vir. Dezembro era o seu mês de angústia. Neste, o Papai Noel filho da puta nunca tinha lhe dado nada em infância. Não seria agora, num 2023 tão morfético, que um velhinho iria lhe dar refresco.
-- O meu velho, dia após dia me enchia de porrada. Você acha que outro velho, que mora lá no Polo Norte, ia me trazer sorte?
-- Porra, Demerval, também não é assim. Eu conheci o Seu Vitalício e ele até que era bacana. Tirando bater na Dona Carola às vezes e chegar bêbado em casa sempre, tinha seus momentos de bom pai.
-- Cacete, tu tá aqui pra conversar ou pra me sacanear?
-- Desculpa, foi ruim.
Mas dezembro, quando vagas pululam no comércio e outros afins, Demerval acreditava que seria um mês melhor. Correu o comércio da Vila da Penha, Madureira, Honório Gurgel e Vicente de Carvalho. Ao fim das corridas, a mesma palavra: “caralho!” Ninguém tinha vaga pra nada. Nem bico aleatório. Por fim, conseguiu um trampo passageiro num crematório. “Fica aí que nesses fins de ano sempre aumenta a procura”, disse o gerente a lhe mostrar os macetes da fornalha. Agora, na folga, no boteco do Carlão, com as brejas descansando na mesa e o amigo do lado, um resto de porção de torresmo a servir de aeroporto das moscas em voos rasantes, Demerval só pensa no próximo Carnaval. Um companheiro de agruras já lhe prometeu vaga na Cidade do Samba para ajudar na montagem dos carros alegóricos da Verde e Rosa.
-- Em 2024 eu tenho a certeza de que as coisas vão mudar. Sabe que eu estou até de prosa com a Dora. De repente, ela aceita ir pro meu cafofo novo. É pequeno, de três cômodos, mas dá pra dois corpos. Se ela não se incomodar de morar meio longe e ter de ouvir o trem passar, dá rolo. Eu sei que no próximo ano a coisa vai virar. Como Exu Bará vai ser o regente, quem sabe não dá jogo. Vai ter que dar.
Na rua logo do lado duas Patamos passam chutadas e rápidas. Deve ter bala sobrando logo ali perto. Mas deixa pra lá. “Eles que são PMs, milicianos e traficantes que se enfrentem e se entendam.” Para Demerval, já quase na virada do ano, o importante é esquecer o que não foi e torcer para aquilo que deve vir ou virá. O Réveillon vai ser no Piscinão de Ramos, com direito a show no palco e fogos de artifício. Com Dora, claro. Afinal, a vida tem a mágica de transformar bosta em ouro. Basta crer que acreditar é ainda o maior tesouro.
-- Carlão, manda a saideira de 2023. Melhor, desce logo três pra rimar com este ano que vai arder no calor do inferno. Aliás, que calor do cacete que está nesse mundo.
Suando como camelo, Demerval espera logo mais não ser uma cifra a mais nas pesquisas dos ausentes.
 
(Ao som de João Bosco)

sábado, 20 de julho de 2024

Olho de Prata

 Por Edmilson Siqueira

 

Há quase dois anos, Ronaldo Faria escreveu aqui sobre o Olho de Prata, show que foi apresentado no Centro de Convivência Cultural em 1979, com Zeza Amaral, Alfredinho Soares e Celinha. O show era composto das músicas que Zeza e Alfredinho vinham fazendo pelas madrugadas, muitas delas aprendidas e cantadas pela Celinha nos próprios botecos que a turma frequentava, principalmente a Adega Florence lá na Vila Nova.
Estou voltando ao assunto por alguns motivos: o primeiro é que fui um dos produtores do show (éramos uns quatro ou cinco, todos trabalhando na base da amizade) e, como tal, posso dar alguns detalhes a mais do que o Ronaldo. O segundo é que ouvi novamente o CD do show - um CD que é resultado de uma gravação em fita k7 que o Osny passou para a nova mídia - para ver se estava tudo bem com ele. Ouvi novamente não apenas por gostar das músicas, mas porque eu ofereci uma cópia ao Danilo Fernandes, da Rádio Educativa, para, quem sabe, ilustrar alguns do seu ótimo programa sobre os artistas musicais de Campinas e região. Além disso, minha amiga Bete Ribeiro, que hoje é companheira do Zeza, me providenciou, rapidinho, uma cópia do folheto (hoje chama folder, né?) do show, com os nomes de todas as músicas - eu lembrava máximo de três - para abastecer a discoteca do Danilo de modo completo.
Trata-se, como já devem ter percebido, de um disco que não existe no mercado.
Por esse trabalho todo, me veio a vontade de escrever alguma coisa sobre o já lendário show que lotou por duas noites o teatro do Centro de Convivência, com ingressos extras suficientes para que o corredor central fosse todo tomado por gente sentada no chão.
E foi grande mesmo. Acompanhei muitos ensaios e vi tudo sendo montado sob a batuta de um profissional em vários ramos, o artista plástico, jornalista, escritor, fotógrafo, cronista e boêmio Jota Toledo. Toledo foi o coordenador geral e distribuiu magnificamente as tarefas. Para iluminar o espetáculo, convidou Amadeu Tilli; para o cenário, Geraldo Jurgensen, para a direção musical, Maninho, para a direção de cena Marcos Ghillardi e botou na produção alguns amigos que ele sabia que tudo fariam para que o negócio andasse da melhor maneira possível, inclusive este escriba.
A ideia era botar o pessoal no palco - violões (Zeza e Alfredinho), flauta e sax (Maninho), cavaquinho (João Luiz), contrabaixo (Serginho) e percussão (Paizão) - e fazê-los cantar suas músicas e, às vezes, contar histórias que os inspiraram como se num bar estivessem. E a ideia funcionou.
A grande maioria das músicas apresentadas teve como autores Zeza e Alfredinho, juntos ou formando dupla na composição, mas a abertura do show foi com "Homem de Papel" um poema de Raimundo Oswaldo Barroso que Zeza musicou. É uma letra forte com visíveis críticas sociais à ditadura que ainda entristecia o Brasil à época.
Em seguida, a presença delicada e firme de Celinha, com sua voz que lembra muito a de Maria Bethânia, (muitos diziam que Celinha sempre foi melhor...) apresenta "Sereia da Noite" (Zeza Amaral), que cria o clima ideal do boteco na madrugada para o show prosseguir.
"Prego" de Alfredinho, que vem a seguir. A triste separação é aqui, mais uma vez, retratada com primor pelo poeta que fica sozinho cantando suas mágoas. Músicas típicas de inspirados boêmios, como éramos todos à época.



Essas três músicas deram o tom do espetáculo: musica forte com crítica social, samba canção romântico e o samba tradicional, onde prevalecem as dores de amores e a sadia malandragem.
No palco, cantava um, cantava outro, ou os dois juntos e, de repente, Celinha deslumbrava a plateia transformando a música dos parceiros em algo nobre, pra ser aplaudido de pé, como foi quando ela cantou à capela.
E com direito a grand finale: o sambão composto pela dupla, "Verei Raiar", que, além de encerrar o show com um clima mais do que elevado, presta a devida homenagem à Adega Florence, dos irmãos italianos, que ficava na esquina da Carolina Florence com Primeiro de Março, na Vila Nova, e que foi, durante vários anos, o quartel-general dessa turma (eu mesmo a frequentei por algum tempo) que amava a noite e suas musas.
O show, como já disse, teve duas apresentações com lotação com ingressos extras. Depois, devido ao sucesso inicial, foram conseguidas mais três datas, mas o sucesso não se repetiu e sobraram apenas as lembranças de quem viu e ouviu e de quem, como eu, conseguiu uma fita K7, que virou CD, e pode ainda ouvir pra matar as saudades de um tempo que não volta mais. 
Pra encerrar, Zeza e Celinha ainda estão por aí (Zeza prepara novidades musicais inclusive), mas Alfredinho, infelizmente, nos deixou em abril de 2018.



sexta-feira, 19 de julho de 2024

A Mazinho Quevedo

 Por Ronaldo Faria

 

Marlúcio, mistura do desejo dos pais de se chamá-lo Mário ou Lúcio, viajava com a vaquejada no sertão que há muito não sabe o que é água ou remissão. É só brincadeira, sobremaneira ensimesmada de si mesma na fragrância da mulher que mostra seus peitos à vontade. No seu amanhã, logo cedo e de manhã, quando o sol resolve expulsar a lua e a negritude do céu, a certeza de que haverá um cateretê. Lúcido, translúcido, no imaginário de um aprendiz, segue inútil na estrada cheia de pó e poeira, onde a eterna história da eira e da beira não se faz história rasteira e verdadeira.
Marlúcio, que pensa em mudar para o “Sul” e se tornar peão numa obra qualquer, mesmo sem casa ou mulher, segue no seu jumento a prosear consigo mesmo. Brinca de se embriagar e fazer da inaudita sobrevivência o derradeiro chegar. Nele, crê, haverá a amada, a chaga curada, a porteira nunca fechada. Afinal, se nessa vida de perrengues e ventres nus não houver crer, de que vale continuar? Volátil em si mesmo, sabedor de seus breus e banidos queixumes a Deus, continua apesar do sol que mata o plantio sórdido e a montaria a seguir seu latifúndio nenhum.
Marlúcio, cadáver ambulante no destempero que o tempero do destino não sabe alternar, só diz que a hora é de orar. No amanhã, a amada a cobrar. No mato rasteiro, a cobra pica a perna do menino. A morte é certa abraçada nela. O chocalho da cascavel é como um samba e xote a rima ordenar. A ordem de hoje não quer saber, sequer, o que o amanhã será. Ser-se-á a pomba vadia qualquer ou o rei sabiá. Afinal, se a vida é apenas momento em tormento, que as tormentas do logo mais sejam como a garça branca, a voar. A alma, insone, há de desertar e despertar.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Floriano, que a flora te dê flores

 Por Ronaldo Faria


“Logo mais deve ser hora de parar”, pensa pândego Floriano. Puto pelo nome lhe dado, de um ditador militar do passado, diz a todos ser apenas Ano. Desse jeito serve para aqueles 365 dias que foram bons e mesmo para aqueles que queremos esquecer. Logo, ele sempre estará bem aos presságios e maldições de todos, a rodo. Quisera todos nós tivéssemos um nome assim, desses que não fedem e nem vão cheirar. Que passarão incólumes pela vida, quase despercebidos da eternidade, livres da maldade e da devassidão, da guilhotina da gramática e da sofreguidão. Anatólios, Ferdinandos, Maristelas, Berenices e outros tantos (me perdoe quem assim é, não foi por mal, foi só por rima) que tramas levarão para sempre? Serão diferentes, referências para o além. Ainda bem. Quem irá querer ser alguém a mais entre tantos milhões de alguéns?
“Logo mais é hora de voltar à realidade, a puberdade tardia, a bastarda terapia nunca feita, afeita a pedir perdão ao mundo singular.” Floriano, perdoem o erro, seu nome é Ano, está atônito com a verborragia que emerge de tão ignóbil ser. Mas, no derredor da dor, esse emaranhado que mistura tango e fado, casais casuais veneram o lábio colado, a devassidão do logo mais, a tristeza do após. Muitos estarão longe e longínquos quando a próxima meia noite vier. Certamente, abrigados nos seus cantos sem vozes, viverão seus descaminhos e artroses, camaleões de incertezas e veleidades, bastardos de si mesmos. Imaginários seres descompensados e cheios de mentiras, castas de uma religião que une nada ao passado. Assim, assoberbados de coisas nunca feitas ou a fazer, nadam em mares que se arrebentam nos corais do crivo sentimento.
“Que os ventos que eternizam fastios e fatalidades fátuas saibam quando parar.” Na fé que a fatalidade dá, Ano não deixa a dança acabar. Com certeza ela há de rodopiar noutro luar, colada com o amante que se acha o emir do Catar. A fé empertigada de perdigotos que vêm das bocas trançadas e traçadas no mesmo limiar, o lumiar da parcimônia que nem mesmo a maior amônia traz a sensação do amor a derrear. E tudo vira um universo particular, um espaço mínimo e fugaz. Espaço milimétrico entre a verdade explícita e aquilo que só o amor maior esconde dos olhos da inveja mordaz. Na canção que não existe em partitura, a particular vontade de amar e se derramar em prantos e travessias, travessuras de pegar nos seios quando isso era coisa de menino brejeiro.
“Hoje, sortilégios de Satanás, acho que estou nessa vertente de escrever talvez porque esteja perto de morrer. Também, de boa, um dia vamos todos nos foder, ou não. Talvez o fim não seja só esmaecer...” Ano, enfim, descobriu a essência de ser, ou sê-lo.

terça-feira, 16 de julho de 2024

O estranho e admirável Thelonious Monk

 Por Edmilson Siqueira


Há alguns anos, no mês de agosto, dei de presente a um amigo uma caixa com cinco discos de Thelonious Monk. Meu amigo, apreciador de jazz, não conhecia a obra do grande pianista. Eu conhecia um pouco e, por isso mesmo, comprei a caixa com os CDs certo de que estaria dando um bom presente. 
No dia seguinte meu amigo me manda uma mensagem agradecendo mais ainda o presente. Ele estava ouvindo e se deliciando com a música de Monk, superando qualquer expectativa. Perguntou se eu tinha os discos, eu disse que não e que seria difícil comprar de novo, já que o vendedor da Saraiva (lembram dela, lá no Iguatemi?) me disse que era o único. Então meu amigo me disse que iria copiar todos eles e me dar. E são esses cinco CDs "piratas" que tenho e que ouço sempre, um presente que acabou virando dois presentes.
E valeu a pena.
No início dos anos 1960, Monk ingressou na gravadora Columbia para trabalhar com Teo Macero, produtor de Miles Davis. Desta vez criou um quarteto, com o saxofonista Charlie Rouse, o baixista Larry Gales e o baterista Ben Riley. A caixa reúne gravações desse período: "Monk's Dream" (1962) - o álbum mais vendido de sua carreira, "Criss-Cross" (1962), "Solo Monk" (1965), "Straight, No Chaser" (1967) e "Underground" (1968). Todos idênticos aos originais, inclusive com os encartes.
Thelonious Sphere Monk, nascido em Rocky Mount, em 10 de outubro de 1917 , morreu em Weehawken, em 17 de fevereiro de 1982. Desde sempre foi considerado um pianista único, e, apesar de um estilo excêntrico, é considerado um dos mais importantes músicos do Jazz, pois tinha um estilo único de improvisar e tocar.
Diz sua pequena biografia inserida na Wikipédia: "Era famoso por seus improvisos de poucas e boas notas. Preciso, fazia com duas ou três notas o que outros pianistas faziam com nove ou dez. Cada nota entrava perfeitamente no contexto da música, numa mistura melódica e rítmica. Somente notas necessárias e muito bem trabalhadas. Sentado ao piano, tocava-o encurvado, com uma má postura, além de seu dedilhado ruim, com os dedos rígidos, que ficavam perfeitamente eretos e batiam nas teclas tal qual uma baqueta faria em um tambor. Excêntrico, Thelonious não era muito bem visto pela crítica da época, porém era unanimidade entre os jazzistas. Compunha melodias e criava ritmos nada usuais."
Só que os sons e ritmos "nada usuais" de Monk são agradabilíssimos aos ouvidos dos fãs de jazz, como pode ser constatado em qualquer dos cinco discos ou mesmo em outros de sua vasta discografia.
Mas a coletânea de CDs inserida nessa caixa dá um ótimo panorama da obra de Monk.  São quatro quartetos e um disco solo. E, ouvindo, ficará fácil perceber que, entre outras qualidades, a música de Monk é divertida e desde a primeira vez que se ouve percebe-se a abordagem única ao piano.
Não estranhe, mas logo se ouve acordes e notas que estão claramente fora do lugar, mas que em suas mãos parecem se encaixar perfeitamente. Um texto num dos encartes diz que "os músicos que o acompanham, John Ore no baixo e Charlie Dunlop na bateria, pegam as síncopes de Monk e dançam com eles usando um vocabulário musical incrível. John Ore e Frank Dunlop aparecem em três dos discos e Ben Riley (bateria), Larry Gales (baixo) no álbum Underground. Todos os quatro discos nos presenteiam com o grande saxofonista tenor Charlie Rouse, que se associou a Monk por uma década. Um dos discos - Underground - tem uma foto de capa tirada em seu apartamento cheio de objetos malucos e fora do lugar que aumentam sua mística - dizem que ele tinha uma vaca de estimação e a deixava correr livremente em seu apartamento." ... Thelonious Monk influenciou quase todos os músicos de jazz modernos com sua abordagem angular para solos e composições."
O álbum "Criss Cross" resume bem a fórmula de Monk: metades com composições bastante curtas mas muito densas, com uma estrutura rítmica e melódica por vezes confusa (a peça homónima e "Eronel"). E outra metade com um coquetel dinâmico de composições rítmicas e sólidas ("Think of One", "Pannonica") e baladas delicadas (o standard "Don't Blame Me" magnificamente interpretado por Monk, e "Crepuscule with Nellie", numa versão sublime de densidade e concisão.



O álbum "Straight No Chaser" contém peças mais longas, onde são especialmente os solistas que brilham pela sua inventividade e capacidade de resposta. Ouça com atenção, na peça homônima, revisitada para a ocasião, o acompanhamento de Monk por trás do solo de Rouse: ele pontua o fraseado do saxofone com notas de piano espaçadas e dissonantes (o que muitas vezes cria um efeito cômico marcante), então, finalmente, silencia, deixando Rouse com baixo e bateria. Da mesma forma, as estranhas harmonias de "Locomotive" e a forma como os solos da gravíssima "Japanese Folk Song" (incluindo a bateria) persistem em repetir a melodia de forma quase matemática, não deixam ninguém indiferente.
“Underground” segue o mesmo espírito. “Raise Four” desenvolve um tema inebriante repetido mecanicamente num ritmo não tão óbvio quanto parece (e com um belo baixo de Gales); "Boo Boo's Birthday", uma das composições mais divertidas e complexas do disco faz muito sucesso. E ainda há "Green Chimneys", uma peça emblemática  que mistura notas de piano e saxofone.
O álbum "Solo Monk" contém gravações de Monk sozinho ao piano. Aí encontramos clássicos interpretados com emoção ("Ruby My Dear", "Ask Me Know" e o seu final com notas ressonantes sempre surpreendentes), blues com batidas claras e precisas ("Monk's Point").Mas é sobretudo “I Should Care”, de 1min56, que domina o conjunto: música ao mesmo tempo complexa e clara na sua execução, surpreendendo sempre nas progressões de acordes e notas.
Tudo já seria fantástico se esta edição oferecesse apenas os álbuns originais. Mas eles foram generosos o suficiente para adicionar takes alternativos como faixa bônus. Podemos assim ouvir um primeiro rascunho de "Green Chimneys" gravado durante as sessões de "Straight, No Chaser", o primeiro take de "Bolivar Blues" onde ouvimos a construção da peça (Monk ainda não incorpora os seus trinados hipnotizantes), e muitas outras belas obras.
A caixa está à venda na Amazon por 249 reais e no Mercado Livre por 199,90.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Madrugada na tarde com Leny Andrade e Cesar Camargo Mariano

 Por Ronaldo Faria


 

A madrugada chegou mais cedo, sem métrica ou medos, em plena tarde quente, na quentura que deixa a gente demente e, quiçá, ausente. Que nos joga nas hélices de um ventilador que faz voar a dor que transita no quadrilátero do fim. Mas parece madrugada, dessas que padece de tempo para amanhecer e traz picardia, neons não vistos pela clarividência e a claridade, ausência de corpos a se delinearem.
A madrugada, tragada de blasfêmias e pecados, tratados e translúcidos recados, vocifera que logo chegará a aconchegar corpos, deitar em camas profanas e viajar num tempo que não é o seu, e muito menos de Orfeu. Quem, em sã consciência, dormirá às cinco da tarde? Logo agora em que transitam tantos pleonasmos, tantos sentimentos, tantas coisas que a gente não sabe de onde vem. Certamente, na mente abstrata que nada trata, o negror é a síntese da poesia e da dor, do amor.
A madrugada deixa a poesia mais volátil, tátil, com cheiro de fim e cor de algo a mais, mesmo que o mais seja assim, eu em mim. Afinal, no final tardio e urdido de lamúrias e alguém de Astúrias, vale a primazia que a aspirina de amanhã trará. Para os tantos acalantos e lamentos, astrofísicos e atrofiados desejos, o que vale é o ensejo que pode vir de si mesmo ou do primata Redentor. Agora, com a azia antecipada, constipada talvez, espero somente a minha vez de ser feliz.

sábado, 13 de julho de 2024

Ao som de Vinicius e Toquinho

 Por Ronaldo Faria

Vem, Vinicius de Moraes. Venham tardes de prazer, de fugas do mundo e viver. Vem amor que nunca se foi. Venham promessas cegas, carnavais passados, areias de pés molhados. Vem mulher da cidade, caipira ou do exterior. Venham medos e tragédias, alegrias e comédias, copos de beber saudades e prazer. Vem ilusão de ser feliz. Venham, depois e, pois, as noites mal dormidas, as anginas, as chuvas desgrenhadas.

Vem, poetinha. Venham letras e rimas, rumos e sinas, cataclismos e orgias. Vem pirotecnia do antes no fechar de cortinas do espetáculo. Venham universos de versos, versículos temerosos do pecado, incongruentes e ausentes na esquina finda. Vem corpo ereto, deitado ou tosco no tosquiar do amor. Venham conquistas ínfimas, vitórias ganhas no grito, derrotas no apito. Vem decágono que o coágulo do coração não deixa de habitar. Venham dez histórias, dez blasfêmias, dez fêmeas de nunca esquecer.

Vem, branco mais preto do Brasil na linha direta de Xangô. Venham goles a olhar os olhos da amada, risos de quem sabe tudo e nada, luares repletos de luzes na escuridão do céu. Vem mar em maresia plena. Venham Iemanjá, Marias, Anunciações e Carolinas. Vem próxima musa, reclusa nalgum lugar nunca visto e nem antes descoberto. Venham lençóis amarrotados, sóis alumiados, nuvens a voarem num universo largado. Vem o que tiver de vir, porque estarei, só pra variar, aqui. Venham toscas namoradas  sem muita espera, sem cair da esfera, sem acordar a fera que dorme dentro de mim.

Vem, Vinicius amoral e fatalista, fatal. Venham lamúrias que nos encontram no após do depois, fúrias da separação e da canção, unção famélica da tristeza e da melancolia. Vem morena que caminha a enlouquecer os marmanjos em seus meandros. Venham medos desprovidos de certeza, cuidados mil na rosa que há muito despetalou, visões plúmbeas de um horizonte que parece simples. Vem estrada já seguida e evitada. Venham visões polares que a íris começa a embranquecer, delírios do garoto de colchas de retalhos, alhos e bugalhos.

Vem, poetinha. Venham loucuras que o álcool dá, dádivas que a certeza da morte dão no ouvir de outro Ronaldo que era freguês de sebo como eu. Vem aquilo que tiver de ter sido. Venham corpos amorfos, cinzas esperadas, vermes que possam ter subtraído a vida e da sorte. Vem barco que ainda espera o porto de chegar. Venham mulheres cheias de saudade a esperar o marinheiro fagueiro, os presentes do Oriente, falácias que se conta quando não há nada a contar. Vem universo reverso e sagaz. Venham garimpeiros de músicas, catadores de emoções, buscadores de torvelinhas paixões astrais. 

O mundo nos espera. Ele vos espera. Em terra.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Praguejo em samba-funk

 Por Ronaldo Faria

 

Um Cavalo de Tróia se meteu na tramoia. No colo da mulher, a joia. Pra rimar, a selva tem a jiboia e no mar o menino segura sua boia.
“Alô, rapaziada, cadê aquela apaixonada tarada? Pelo visto, vamos ter mais uma noite a virar prato vazio sem mandioca! Seca na horta.”
No som alguém diz que temos de voltar à pilantragem. Mesmo se estiver à margem, com saudade ou na periferia pueril da cidade.
Nas frases desconexas, um samba zen, um imbróglio que se tem, o carro a correr mais de 200 para driblar o inoperante e errante radar.
No mar, decerto e com certeza, se a tese da travessia sob a chuva não rimar, ondas e sereias se misturam aos troços que flutuam no soprar.
No asfalto quente que queima as patas e os pés de andarilhos, ninguém teme passar pelos trilhos para sua amada do subúrbio beijar.
Na mesa do passado, cubra libre e gim com tônica estão atônitos com o casal afônico que troca línguas, olhares e toques sentimentais.
Quem rogou a praga ou mandinga o fez tão bem que nem a boa da lata consegue fazer dela um interregno em vidas proscritas e desertas.
A musa louca estrangeira de casamentos mil deve estar agora abotoada numa camisa de força ou desbotada nas madrugadas molhadas?
Afinal, raio em X acerta na mosca ou a mosca pousa resoluta, como uma filha da puta, justamente no lugar que determinará a sentença final?
Em uma semana chega 2024. Quem não conseguir segurar a onda que pelo menos se preste a cair de quatro e resistir. Algo, saibam, irá florir.
As contas que chegam e despencam feito tempero do feijão tropeiro no bolso acham que são eternas. E, voluptuosas, carnudas, são mesmo.
“E aí, rapeize, agora vai? Há décadas que diz que vai e, de repente, feito repente, não vai a lugar nenhum. O poeta errou de maternidade.”
Carioca sem oca a ferver os ovos no asfalto, uma ova! Do ovário da baiana surge a trama que parece nunca virar rap, funk e nem sequer reggae.
No batuque do atabaque, o baque da arritmia, a inóspita e sombria trilha de uma cascatinha que chega do morro e vira torno para a vida tornear.
Na sala de aula, a opulência da morena vinda de outros mares, alhures lugares e olhares. Na lousa, Karl Marx vira cupido de prenúncios do Núncio.
Derrubar o morro ou não? A estrada vai chegar? De que adianta com o “progresso” querer prosear? “Senhores motoristas, vamos nos engarrafar.”
O vento que venta no ventilador daqui não é o mesmo que joga o bafo quente do ventilador daí. Logo, nos ventilemos para não ventilarmos mecanicamente.
Fernanda Abreu é como uma biografia que a abreugrafia daria se tivéssemos seguido os maços e descompassos que nos brandiam vitoriosos nas orgias.
“E aí, galera, em 2024 vamos cruzar a esfera?” O vendedor de pacotes turísticos tenta descarregar a mais rasteira quimera. Acho que irá se foder...
“Diz pra nós, sangue bom: você preferia que voltasse o grapette, o crush, o mineirinho ou apenas o velho, gelado, achocolatado e bom chicabon?”
Tempo bom em que o pipoqueiro que estourava milho defronte da escola podia vender o Zorro, geleia colorida e amendoim sem cocaína e afins.
Agora fodeu: gastei o dinheiro do barbeiro em doce. Pra quem jogo a culpa? Na inflação que chegou no golpe de 64 ou no dono comunista da quitanda?
 
(Frases dedicadas à vascaína Fernandinha Abreu)


Zé dá o Tom final

 Por Ronaldo Faria “Em quantos mililitros parar? Não enquanto existir espaço vago e vazio nalgum lugar e banheiro altaneiro em rota segura n...