domingo, 9 de novembro de 2025

Monica Salmaso, uma das melhores do Brasil

Por Edmilson Siqueira


"Minha Casa", da gravadora Biscoito Fino, foi lançado neste ano, mais precisamente em setembro. Forte e delicado, como é toda obra de Monica Salmaso, o disco é um momento de rara beleza, tanto pelas interpretações do fino repertório, como pelos arranjos e músicos que a acompanham com grande qualidade.  
Gravado ao vivo em outubro do ano passado, o disco marca também o reencontro da cantora com seu público, depois do isolamento imposto pela pandemia de covid-19. Nessa época, seus fãs eram presenteados com o projeto "Ô de Casas", onde, usando a tecnologia disponível, ela fazia duplas remotas com grandes nomes da MPB. Do projeto, com mais de 170 encontros virtuais, resultaram inúmeros momentos de emoção que nos confortavam diante do mal que grassava pelo país, tanto na saúde quanto na política.  
Quanto ao disco, ele não foi um projeto estudado e ensaiado. Foi o show ao vivo, que começou em 2023, que o moldou, transformando o espetáculo na matriz gravada.  
Ao mesmo tempo, para Monica, o disco representa um momento de inflexão: pela primeira vez ela concebeu o show primeiro e depois o álbum, não seguindo o modelo habitual de álbum de estúdio seguido de turnê.  
Além da maturidade, artística, esse fato representa uma confiança no repertório e no formato, reafirmando a cantora como uma das grandes intérpretes da música brasileira contemporânea. 
Salmaso assina a direção musical junto com o saxofonista/flautista Teco Cardoso — que também integra a banda em cena. Banda, aliás, cheia de cobras. Além de TEco Cardosos, participaram da gravação: Tiago Costa (piano, arranjos), Neymar Dias (viola caipira e contrabaixo), Lulinha Alencar (acordeom), Ari Colares (percussão) e Ricardo Mosca (bateria). 
A primeira faixa e uma parceria rara entre Egberto Gismonti e Paulo César Pinheiro: "Saudações". Um samba que se inicia com Monica tocando tamborim e cantando. Um samba de chegada, muito próprio para iniciar um espetáculo. 
"Vou na Vida" (Swami Jr. e Virgínia Rosa) é a segunda faixa. Música de raiz mineira, se daria muito bem na voz de Milton Nascimento, com ritmo marcante. Destaque para o solo de flauta de Teco Cardoso. 
A terceira faixa é Noite Severina (Lula Queiroga e Pedro Luís), um xote nordestino típico, com letra filosófica e muito bem resolvida. O acordeom de Lulinha Alencar dá o clima gonzaguiano.  
E por falar no Rei do Baião, a faixa seguinte é Aparição de Gonzaga (Ian Faquini e Guinga). As melodias complicadas e sempre belas de Guinga, ganharam incrível letra de Faquini, à qual se junta trechos do poema "Aos Críticos" de Rogaciano Leite. Uma espécie de obra prima que ganha emoção ainda maior na interpretação de Monica. 


Num repertório tão bem selecionado e quase teatral em sua sequência, não poderia faltar a música de Tom Jobim com uma incrível letra de Chico Buarque. "A Violeira", quinta faixa, é um drama cheio de humor meio negro, sobre a saga de uma mulher que se aventura no mundo, saindo do Nordeste e indo parar em Ipanema.  
A sexta faixa traz uma parceria entre Dori Caymmi e Paulo Cesar Pinheiro; "Quebra-Mar". Trata-se de nada menos que mais uma obra prima da dupla. A emocionante interpretação de Monica faz jus à beleza da melodia e à sensibilidade da letra. Destaque para o contrabaixo tocado com arco de Neymar Dias.  
"Acalanto" (Teresa Cristina) vem a seguir. Canto de areia, samba do amor perdido nas águas e nos braços de Iemanjá. Clara Nunes teria gravado com certeza.  
"Teleco-Teco", samba da Marino Pinto e Murillo Caldas, traz, em seu bojo, a mesma ideia de "Com Açúcar e Com Afeto", de Chico Buarque. É a história do malandro que deixa a mulher em casa enquanto vai pra "orgia", como se dizia antigamente. E, depois, claro, a mulher perdoa.  
Chico Buarque, com Vinicius de Moraes, são os autores da faixa seguinte que, obviamente, dispensa qualquer comentário: trata-se de "Valsinha" que Monica interpreta com a mesma qualidade que dela se espera. O arranjo e a flauta de Teco Cardoso também de destacam na faixa. 
Guinga aparece sozinho como autor da décima faixa, "Paulistana Sabiá". Difícil enquadrar num estilo essa pequena joia que Guinga nos oferece, como tantas outras já oferecidas. E desta vez com uma letra erudita que nos leva a sonhar. 
A décima-primeira faixa traz um samba folclórico adaptado por Xangô da Mangueira e Zagaia, dois históricos compositores da escola de samba. É um samba de roda que remete à roça, como a periferia do Rio era chamada. O arranjo com sons típicos do campo deu ao samba o clima da região em que foi criado. 
Novamente Chico Buarque, presença constante na obra de Monica, comparece, desta vez com uma composição somente sua, "Assentamento" , que se encaixa mais na porção política das músicas do cantor e compositor. Mas, como em toda sua obra, tem beleza de sobra.  
"Morro Velho" (Milton Nascimento) é a décima-terceira faixa. A música já clássica de Milton é um dos pontos altos do show, pois melodia e letra se encaixam perfeitamente na voz de Monica.  
Outra parceria meio rara na MPB nos traz Baden Powell e Paulo César Pinheiro, com a desconhecida "Santa Voz". Desconhecida porque a música tem, obrigatoriamente, mais de 25 anos (Baden morreu em 2000) e não fez o sucesso de outras criações de Baden. Mas se trata de ótimo samba. A letra é uma homenagem aos cantores. 
A décima-quinta faixa "O Tempo Nunca Mais Firmou", de Chico Chico e Sal Pessoa é uma sucessão de prazeres sonoros: o acordeom de Lulinha Alencar na abertura é pungente, seguido da ótima viola caipira de Neymar Dias, também responsável pelo arranjo. A voz de Monica se casa perfeitamente aos dois únicos instrumentos da faixa. Um show. 
A seguir vem "Xote" (Gilberto Gil e Rodolfo Stroeter) versa sobre uma lenda nordestina que Gil tão bem conta na letra. O xote (é o ritmo e nome da música) foi gravado primeiramente no disco "O Sol de Oslo", um dos melhores da carreira da Gil. E Monica honra a qualidade da música e da letra. 
"Mortal Loucura", a faixa número 17 do disco trata-se de um poema de Gregório de Matos musicado por José Miguel Wisnik. O poema se baseia numa série de jogo de palavras, onde o final de uma palavra chama outra com sentido diferente. Esse jogo aliado ao talento do autor - um dos maiores poetas brasileiros - nos dá um poema vigoroso que a música de Wisnik soube incorporar muito bem.  
"Tá?" (Pedro Luis, Roberta Sá e Lula Queiroga) é um baião vestido de protesto ecológico, contra o homem depredador da natureza. Outra letra inteligente que suprime a última sílaba das palavras que encerram cada verso, sem, no entanto, ofuscar o significado.  
A décima-nona música - "Gírias do Norte", de Onildo Almeida e Jacinto Silva - é um côco (ritmo comum por lá) que junta várias gírias locais para contar uma história meio engraçada e que, ao mesmo tempo empresta rara sonoridade aos versos. Mais uma ótima interpretação de Monica que aproveita a penúltima música do CD (no show houve dois bis que não estão no disco) para apresentar a cozinha toda de seus ótimos músicos.  
Por fim, a vigésima faixa nos traz "Menina Amanhã De Manhã?" de Tom Zé e Perna. Uma música deliciosa com mais uma letra mais que esperta que encerra o disco em alto astral. 
O CD está à venda nos bons sites do ramo e quem quiser não só ouvir todo ele, mas também assistir ao show inteiro, inclusive com uma música a mais - "Violada" - é só acessar o YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=-G8mv070FPI&list=PLjMk_448Pd1Nd-XIp01eOGMJQFeqM6H1H . 

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Saudando a saudade

Por Ronaldo Faria


Saudade santificada e apoteótica, aquela que nenhum olho nem na melhor ótica nenhum óculos irá encontrar. Porque ela está além das lentes que acolhem a vida. Saudade profética e estética, estática no tempo como se esse quisesse somente parar sem sair do lugar. Coisa de semente que não brota a lembrar e relembrar, se descascar feito laranja largada no pé, solitária à espera de um bico de pássaro para comê-la.
Saudade que a gente guarda em si e resguarda cada momento pleno de lembranças anchas num lumiar que escurece a cada dia. Coisa pequena e gigantesca, como os lábios ou as tetas (seios) da amada. Provérbio de verbos mil, tresloucados e resguardados, guardados em flores que cobrem os galhos secos da poesia nunca escrita. Inaudita, segue no retinto entre o coração, o peito vazio e a incerteza do próprio senão.
Saudade proscrita nos introitos tortos e performáticos que as frases ao léu levam além do fel que escorre das bocas sem os lábios outros a se esconderem na prosaica lucidez que já não há. Sanha de sobreviver com o corpo se tornando um nada banal na frieza frágil que se cristaliza além da estrada que termina no nunca e jamais. Acalanto à busca de um canto ou um cântico onde possa deitar no colo da saudade para reviver a canção.
 
II
 
-- E aí, você acha que estamos indo embora?
-- Acho. Mas, também, tanto faz. Onde toca samba toca jazz.
-- Ou seja, nada ficará?
-- Algo irá ficar. O tempo, porém, será ermo. Bem ao termo do sonhar.
 
III
 
A árvore defronte do morro que não existe, antes coberta de flores de cor grená, agora está que é só galho seco, sem uma folha sequer. Ela se rendeu à morte da beleza para sobreviver porque sabe que logo mais irá reflorescer. Encher-se-á de verde, virar pouso de andorinhas, pombas, bem-te-vis, pardais, graúnas e sabiás. Nos seus galhos fará dormir os pequenos corpos cansados de tanto voar desde os primeiros raios do sol. Irá balançar aos ventos de fim de ano e seguir seu destino sem desatino sequer. Porque para isso ela nasceu e foi feita: seguir. A árvore, bela e resistente num canteiro diminuto de cimento, há anos se transmuta e muda de acordo com as estações atabalhoadas dos anos. Esperemos ser iguais nesse pouco tempo que restar...
 
IV
 
-- E aí, Renato, vamos pro centro saravar?
-- Vou pensar. Mas até deu vontade de bater um atabaque.
-- Vamos lá. Quem sabe não é a hora de rever e ver o que nunca virá, mas que a gente teima em acreditar...
Amigos de tempo remotos e tortos, Renato e Humberto, desses que não se sabe se estão juntos por caminhos tortos ou certos, brindavam no boteco mais um dia passado. Frágeis, fortes, dicotômicos e atônitos por tudo que já passaram e viveram, agora estão entregues aos tragos que descem garganta a dentro. São apenas lembranças paradoxais de uma trança do cabelo de Maria ou das pernas de Zélia a subir no ônibus circular. Culpados por padecerem no mundo e parecerem normais em toda loucura viva, são dois num só em pálidos segundos doloridos que se transformam em urdidos acordares quando o mundo ainda respira o negror de ver o tempo passar.
-- Quer saber, vamos sim. É hora dos santos agradecer e reverenciar.
Pagam a conta, que remonta três dígitos, entram no Uber mais perto e descem diante do centro onde a umbanda é a banda do bem. Dão cinco estrelas para o motorista que ficou calado todo o percurso, seguem o curso da vida, sentam na plateia (porque bêbado não dá para na gira entrar), cantam aos santos, recebem os passes de Vovó Maria Conga, Pai Manoel e Nanã Buruquê. Saem refeitos e quase perfeitos do lugar sagrado e cheio de milagres.
-- Porra, estou me sentindo bem pra caralho! Vamos tomar a saideira?
Param no boteco que teimava em estar aberto na área de conflito entre duas facções e são baleados sem nada ter a ver com a briga da comunidade que habita a cidade distante e inaudita. Viram pé de página no jornal que registra a sina. Ao menos o baluarte da imprensa livre (mesmo no extrato dobrar e jorrar sangue) deixa claro que ambos eram ficha limpa.
 
V
 
Cândido e Candinho eram amigos desde os Anos de Chumbo. Lutaram juntos contra a ditadura, foram torturados, seguiram ao exílio e sonharam a hora de voltar. Foram recebidos no retorno aos gritos de “Anistia” e “O povo unido jamais será vencido”. O aeroporto era o porto que se abria mesmo longe do mar. Voltaram para ouvir, como diziam poetas, os cantos do sabiá. Seguiram juntos e unidos. Unha e carne. Na cantoria que existe entre o oceano e o sertão. Viajaram quilômetros em milhares de estradas da felicidade e da agonia na verborragia que lhes restava ainda. Pregaram a reconciliação, a ação que dá uma sobrevida à vida, mostraram que o perdão leva a algum lugar, seja esse qual for. Foram arauto e silêncio na querência que a sequência da história fez-se de sentença e glória. Meio sentença e outro tanto sinal. Pregaram, diriam os incautos e profanos, em vão. Morreram quase no mesmo dia, não lhes separasse meses de remissão. Enterrados em lápides diferentes, como toda a gente que lhes foi o súbito e maior altar, dizem que se encontram num céu desses que ninguém jura de pés e mãos juntos que há.
 
VI
 
O altar da pequena capela é a cena central. Cheia de cocô de morcegos que vivem no desassossego de trocar o dia pela noite a defecarem nas imagens dos santos restantes do lugar, como retirantes da fé, ela está ali: entregue ao tempo que gira sem parar. A fazenda, antigo engenho chamado Murta, é somente um espaço cheio de pedras e rezas, reses mil. Cheio de histórias, velhas de vestido preto e um telefone de pilha e manivela pra girar, são o restante de tempos nunca impávidos e sequer em colosso. Nele uma menina como que esquecida da mãe e do pai cresce a incandescência do sol que brilha claro cheio de lumiar. Entregue aos tempos antigos de juntar família e algo qualquer que se deseja ser no ar, dá-se ao homem único e escolhido. Em silêncio, com o pano onde irá derramar a virgindade arrancada, vê-se em véu branco como a festa da cantilena da sereia que sabe que não existe além-mar. Feito barca que corre um rio revolto a desaguar nas ondas que teimam em tentar dormir na areia que há, cumprirá seus sonhos insones e largar. Longe do lar conquistado, sem um fado sequer que valha qualquer foda tida, irá morrer numa cama asséptica e branca de um hospital de nome de tal e tal. Na areia clara e fina do rio que chamam de real, certamente o tempo que se esvaiu há tempos no coronel e lembrava o nome de Jesus lhe retorna ao lar...
 
VII
 
Um grupo pra reviver 45 anos de uma república? Casinha pequena e pétrea na parafernália da metrópole que se fez acrópole do passado, casuística e mística, quase música e certa pichação (com certeza hoje coberta de tinta) do poeta que chora a resposta posta para cravar a vida da amada numa esquina que não tem o grito do Ipiranga e muito menos as bênçãos de São João. Porém, se tudo na vida destino há, que venha tal encontro a que se destina...
 
VIII
 
Arrependimento não haverá. Não há. Afinal, o tempo não tem como voltar. Errou-se? “Erro” se perpetuará. O que ficou, ficará. No seu tempo proscrito na imensidão. Voltará claro e volátil de tempos em tempos, como se quisesse se refazer. Ao saber que não poderá, surtará. E irá bater nas efemérides e intempéries que sofrem na seca um pé de cajá.
 
IX
 
Caralho, os numerais em algarismo romano o tal de aprendiz de poeta ainda sabe... Revoltado e ao mesmo tempo a aceitar o que foi e vier, José é só um pingo de cinza na humanidade que a verdade transformou em algoritmos sistêmicos e isquêmicos. Agora, em Marte ou no quadrado esférico e retangular do luar lá fora e aqui dentro, no aforismo quântico tudo está igual. Saudoso desde já da vida que se esvai a cada dia naquilo que ainda virá, o mundo cumpre seu destino interrupto e modal. Afinal, há milênios mil faz tudo isso sempre igual. Loucos, poetas e profetas souberam vê-lo em pesadelos e embriaguez em enlevo e zelo. Já aqueles que nunca souberam tê-lo, as telas de pequenos buracos marcados de sangue recobrem de vida o lugar cheio de pernilongos a sugar o sangue da gente incauta na busca do prazer.
 
X
 
De verdade, me pergunto como os escritores e poetas antes do computador (filho de 1957 sou deles também, mas sobrevivi para ver a tecnologia chegar) conseguiam rever e revisar seus textos sem rasgar papéis ou laudas e dizer “caralho seria tão mais fácil se não precisasse colar ou reescrever tudo novamente!” E tanto reescrevi, rasguei, colei e xinguei. Nada como um dia depois do outro, como uma noite e madrugada no meio. Seja o que isso for...
 
XI
 
Bahia, minha terra etérea e verdadeira, com seu povo e sua linhagem, descoberta de amores (um que me livrou da morte no Ceará com a sobrinha-neta de Lampião), louvores, raízes, cheiros, odores, luzes, descobertas, paixões, unções, lembranças anchas, coisas que nunca deixarão o copo torpe e repleto de lembranças que a gente nem sabe, hoje, se realmente existiram. Bahia minha, saudade suada e calada, a gritar a cada dia numa imensa nostalgia, deixa dormir a amada que vive sua noite sem dois em dó apertado.
 
XII
 
Doze escritos como os mandamentos. Tormentos, lamentos, excrementos do viver. Candelabros e descalabros a brilharem na lua gigante e infante, arfante para muitos e tantos. E ainda bem que nessa Terra há amantes nus e sob as mantas jogadas no chão nesse Inverno que parece o inferno do calor seco e quente. Que os deuses da loucura e daquilo que tiver de ser saibam ser no desmedido do que for na seca flor. E se não acordarmos amanhã, nem aqui ou nos polos norte e sul, que a morte nos seja tão nobre como esse escrever.
 
(Com Caetano e tantos outros)

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Dedo mindinho miudinho

 Por Ronaldo Faria

    Ricardo costumava coçar a cabeça com o dedo mindinho da mão direita sempre que algo lhe parecia errado. Enfastiado com o enfadonho dia que tivera na repartição pública, que mais pudica não seria senão, esperava as horas passarem para bater o velho e amarelado cartão no ponto que ponteia o limite entre a loucura e a sanidade. Aguardara meses por suas férias, quase efêmeras nas feéricas loucuras que pensara para viver livre. “Vou-me ver livre de pensamentos e lamentos, ônibus lotados, fadados a foder o operário do erário.”
Na querência de um amor verdadeiro, desses que poetas escrevem como sendo fáceis de se encontrar, Ricardo vagava solitário entre organogramas, tarefas inverossímeis e prazos eternamente dilatados. “Vá no seu ritmo, Ricardo. Aqui é repartição pública. Sem pressa. Quem se apresa perde o melhor do funcionalismo estável: poder faturar no fim do mês o salário sem medo de se foder.” A voz do seu chefe, perto de se aposentar com todos direitos preservados, batucava na sua cabeça. “Foda-se o populacho. Afinal, tudo aqui é um escracho. Eu quero é curtir meus dias de férias merecidos por nunca faltar, chegar no horário adiantado e sair depois do relógio deixar.”
Ricardo, um asno para seus companheiros de repartição, nem acreditou quando bateu o ponto que determinava 30 dias de afastamento. “Meu Deus, agora somos só o Senhor e eu!” Fechou a gaveta com chave, deixou à mostra os processos que não concluíra a tempo (“Quando eu voltar decerto ainda estarão aqui”) e desceu no elevador com suas portas pantográficas enferrujadas. “Boa noite, Seu Luiz, até daqui a um mês.” O porteiro agradece o cumprimento e deseja bom descanso a Ricardo. Ele, feliz a curtir seu momento, segue rua abaixo a cantarolar um samba do Cartola.
As desejadas férias de Ricardo, deixo a cada um decidir:
1)      Acorda cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a bagagem e senta no assento, com direito a janela. Horas depois desce no destino. Vai até a pousada e curte seus merecidos dias em eterna orgia.
2)      Acorda cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a bagagem e senta no assento, com direito a janela. O avião, porém, pago em 12 vezes sem juros, estava um bagaço e cai 20 minutos após decolar. Todos, passageiros e tripulação, morrem instantaneamente. Irreconhecíveis, tiveram enterro coletivo.
3)       Acorda cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a bagagem e senta no assento, com direito a janela. O avião, porém, no bagaço, apresenta problema mecânico e faz um pouso forçado a milhares de quilômetros do destino. Lá, porém, Ricardo conhece Vitória, passageira também e sonhando com as férias. Com ela faz história, interage e fica, manda o emprego público à merda e vira empreendedor social. Hoje tem três filhos e descobriu que a vida é para se viver.
4)      Acorda cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a bagagem e senta no assento, com direito a janela. O avião, no bagaço, levanta voo e é obrigado a voltar ao destino. O piloto pede perdão aos passageiros e a companhia aérea promete ressarcir a todos com nova passagem, dentro de 30 dias, e um chaveirinho. Desolado, Ricardo passa as férias em casa, sem (como diria o poeta) mandinga de amor. Na volta ao trabalho é suspenso por ter dado um soco no rosto do porteiro que lhe desejou bom retorno.
5)      Acorda cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a bagagem e senta no assento, com direito a janela. Só então acorda, suado, do sonho no meio do expediente no dia quente (o ar-condicionado da repartição estava quebrado e não havia dinheiro para consertar). Por falta de funcionários concursados, suas férias foram suspensas, a bem do serviço público. Na mesa a pilha de processos se acumula. “Que se foda!” – brada colérico antes de mais um café tradicional.

(Ao som do delírio)

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Frank Sinatra Show: um registro histórico*

Por Edmilson Siqueira


Frank Sinatra (1915-1998), que pode ser considerado o maior cantor que os Estados Unidos já produziram, teve várias séries de televisão com seu nome em diferentes momentos de sua carreira. Uma das mais notáveis é a série de 1957 a 1958 da ABC, e os especiais para a NBC e ABC patrocinados pela Timex entre 1959 e 1960. A televisão era um novo e poderoso meio de comunicação, e artistas de rádio e cinema como Sinatra rapidamente viram o potencial de expandir sua influência para as telas pequenas. 
Os melhores momentos dessa série foram reunidos num DVD que leva o nome de Frank Sinatra Show, deixando de lado o nome original do programa, que era TV Variety Show Specials. O DVD que tenho é uma coletânea desse programa, reunindo, além de Frank, Dean Martin, Bing Crosby e Mitzi Gaynor.  
Trata-se, sem dúvida, de uma uma valiosa cápsula do tempo, resgatando, em preto e branco, as performances da turma em suas incursões televisivas das décadas há mais de 60 anos.  
Além do precioso registro musical e artístico - há cenas de danças e pequenos performances teatrais, a compilação oferece um vislumbre da chamada era de ouro da televisão americana, na qual o cantor exercia seu magnetismo e versatilidade em programas de variedades ao lado de outras lendas do entretenimento.  
A tecnologia mais atual (o DVD é de 2009) permitiu que a qualidade do som e das imagens originais fossem revitalizadas, permitindo que novas gerações apreciem o talento e o carisma de Sinatra em um formato mais acessível. 
Frank Sinatra conduz os números com a categoria de sempre - ele que também foi um grande ator - mas alguns números, na coletânea, são apenas de Dean Martin e Bing Crosby, às vezes com a participação também de Mitzi Gaynor. E esses números também primam pela qualidade dos artistas, todos já bem escolados no showbusiness para os quais a nova modalidade não apresentava qualquer problema. 
Esses momentos são uma verdadeira aula em entretenimento, com os artistas demonstrando uma camaradagem e sincronia que refletem a atmosfera dos programas de variedades da época. A informalidade e o talento genuíno criam uma experiência envolvente que pode ser assistida hoje tranquilamente, sem qualquer marca negativa do tempo. 


Além de retratar uma era, o DVD é uma oportunidade para estudar a estética dos variety shows, a dinâmica entre as celebridades da época e o impacto de personalidades fortes como Sinatra no imaginário popular. 
Para os fãs de jazz e pop, a compilação oferece um olhar sobre a versatilidade de Sinatra, músicas já consagradas e algumas que iriam ainda se consagrar.  
Assim, The Frank Sinatra Show é um testemunho da longevidade do talento de Frank Sinatra. Ele prova que a qualidade de uma performance artística pode transcender a passagem do tempo e os formatos de mídia. Ao reunir esses momentos cruciais da história da televisão, o DVD oferece aos admiradores de longa data uma chance de reviver a magia de "The Voice" e apresenta a novos públicos a essência do que fez dele uma lenda.  
Os números, com os devidos artistas, são os seguintes: 
- "High Hopes" (S. Cahn e J. Van Heusen) com Frank Sinatra, Bing Crosby, Dean Martin e Mitzi Gaynor 
- "Day In Day Out" (R. Bloom e J. Mercer) com Frank Sinatra 
- "Together" (L. Brown, B, de Silva e R. Henderson) com Fank Sinatra, Dean Martin e Bing Brosby 
- "A Hurricane" (sem autor no DVD) com Mitzi Gaynor 
- "Talk to Me" (Kahan e Snider) com Feank Sinatra e Mitzi Gaynor 
- "Cheek to Cheek" (Irving Berlin) com Bing Crosby, Dean Martin e Mitzi Gaynor  
- "Wrap Your Troubles in Dream" (Saphiro e Bernstein) com Dean Martin 
- Meddley 1: com Franlk Sinatra, Dean Martin e Bing Crosby: 
- "The Good Old Songs" (Domínio público), "Down The Old Mill Stream" (Domínio público), "The Old Grey Mare" (Domínio público), "That Old Feeling" (Brown e Fain), "Down The Old Ox Road" (Coslow e Johnston), Ol' Rock Chair" (Carmichael), "That Old Devil Moon" (Hubling e Lane), "My Old Flame" (Coslow e Johnston), "Old Man River" (Hammerstein e Kern).  
- "High Hopes (S. Cahn e J. Van Heusen) com Frank Sinatra 
- "Just One Of Those Things" (Cole Porter) com Frank Sinatra 
- "Angel Eyes" (Brent e Dennis), com Frank Sinatra 
- "The Lady Is A Tramp" (Hart e Rodgers) com Frank Sinatra 
Meddley 2: com Frank Sinatra, Dean Martin e Bing Crosby: 
"Start Each Day With A Song" (J. Durante), "Inka Dinka Doo" (J. Durante), "Bill Bailey, Won't You Please Come Home" (J. Durante e J. Barnett).
O DVD pode ser encontrado à venda nos bons sites do ramo. No YouTube há alguns shows completos de Frank Sinatra na televisão e alguns números esparsos deste comentado aqui.

*A pesquisa para este artigo foi feita com a ajuda da IA do ChatGPT.

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

No luar sem fogo

Por Ronaldo Faria


Há uma grande lua lá fora. A chamam de Lua de Sangue, mas é apenas dourada. Não há vermelhidão qualquer ao seu redor. Logo, não existe sangue a escorrer pelas suas bordas. Nas entranhas, saber-se-á. Talvez sim, talvez não. Talvez São Jorge tenha, ao menos hoje, esquecido de transpassar com a sua lança o inexistente dragão. Quem sabe algum poeta ou amante tenha pedido um momento de paz em meio à tristeza que permeia o lugar...
Assim estava Samuel, a sumir de si para viver o sonho de felicidade no meio de tanto concreto da cidade. Na sua idade, há muito depois de qualquer cabo onde ainda haja esperança, ele apenas segue, cego de ilusão, entre esquinas desconhecidas que parecem a cada dia se transformar num limbo sem par. Um ou outro poste sequer tem mais a luminária acesa. Escuridão e claridade aos poucos viram somente a semente de algo em tons que brilham sob a lua e seu clarão ultramar.
Insone, a ouvir um violoncelo que soa solitário na janela entreaberta, entorpecido de saudades mil, lembranças perdidas e desejos que irão com ele à última morada que nada mais é do que as chamas em brasa, Samuel relembra o sonho num bordel. Cercado de belas mulheres, todas lúdicas e loucas, como ele, a dançar boleros que alguém, numa ravina, dedicou a Ravel. Bêbado, (in)feliz na sua loucura, a beber goles de luxúria, era somente aquilo que tinha que ser. E nesse momento nem precisa de mais nada. O tempo, as células que por algum motivo decidem que é hora de morrer, tomam seu tempo.
-- Que o destino não me apronte mais essa. Lucrécia, não! Se ela se for, que razão mais haverá?
Entregue ao nada, extirpado das partes mais lúcidas que ainda o habitam na forma de aluguel em que se é despejado por falta de pagamento, ele apenas olha a lua que se ergue soberba para os amantes e lunáticos dos hospícios e pede, sem verve, que o destino rompa todo o seu desatino e preserve a amada de sofrer. Sem prosas e versos, arrependimentos e credos, ele é só um ser só a observar a lua que sobe cada vez mais para sumir no fim do céu. Ou, quiçá, acordar com a claridade do sol que a deixou de ninar e aninhar. Na rua, em alta velocidade, a cidade segue seu rumo e destino.
 
(Ao som de violoncelos)

sábado, 1 de novembro de 2025

No cardápio que pode incluir batráquio (a ouvir e descobrir Luca Argel)

Por Ronaldo Faria


-- Chinês. Tailandês ou Japonês?
A pergunta era fácil e difícil de responder.
-- O que você quiser comer. Pra mim, tanto faz.
Caio e Carol eram assim: mil opções a escolher sempre seguidas de um tanto faz. Um casal simples e ao mesmo tempo nunca loquaz. Cruzaram-se pela primeira vez na madrugada que a lua tragava sem dó. Na praça, onde tocaram as mãos que juntariam anos depois num altar, havia um ou dois bêbados (um deles a vomitar entre as rosas do pomar), luminárias de postes queimadas e a ronda da guarda noturna que, soturna, protegia os poucos que chegavam ou iam para a orgia. Casados há pouco, cansados de suas solidões, castrados de poder seguir seu mundo próprio desde então, iam a correr esquinas e sinas inapropriadas. Agora, até para decidir que cardápio pedir no IFood da vida era uma partilha de desejos e papo profundo.
-- Você sabe que um é mais apimentado e o outro mais quase vegano?
-- Sei.
-- Mesmo assim tanto faz?
-- Sim.
-- Então tá. Vamos de pizza meia calabresa e meia milho verde só parar variar.
O solilóquio estava decidido. O descuido ou o relaxo estavam enfim cravados.
-- Deu R$ 78,80. Débito ou crédito?
-- Tanto faz...
Casal que se casou quando a moda era separar, com o advento dos aplicativos de encontro mesmo para uma noite de amor, eram a mistura perfeita de água e óleo. Ou seja, não se misturavam. Às vezes, quando havia eclipse total do sol e da lua, redescobriam que a cama não é só para se babar o lençol. E brincavam de cabaninha, índios antropófagos a comerem o bispo Sardinha, misantropos que haviam abdicado dos brocados de se esconder do mundo. Nesses dias (raros dias no calendário provinciano), os vizinhos estranhavam. Não raro, chamavam a polícia para ver o que acontecia. “Eu juro, teve gemido pra lá de alto, seu delegado”, falava a Dona Jacira, viúva que há muito esquecera os verbos foder ou transar (amar para os mais pudicos).
Na verdade, Caio e Carol eram a síntese da antítese dos tempos atuais. Sangue não tinha no relacionamento. Se muito nos ciclos menstruais da Carol. Para Caio, talvez quando deixava cair no chão um gole de vinho chileno e enchia o chinelo de líquido louco. A semana, traquitana, passava no calendário dentro do armário fechado a sete ou oito chaves (pra garantir que não exigiria muito contato de olhos estrábicos). No fim, no repertório sem fim do samba enredo da vida, os dois saíam de passistas, compositores e autores da trilha que percorre o sambódromo da nascença ao derrear da sina.
-- Mar ou interior?
-- Quer saber, tanto faz ou os dois...
Para quem não esperava tal concluir, venderam o apertamento na Zona Norte, rasparam as poupanças parcas e se largaram nas danças em andanças tresloucadas e tantas, nunca poucas. Ao espocar do novo ano viram as Muralhas da China, nadaram e quase se afogaram nas praias da Tailândia, comeram barbatanas de tubarão em restaurante típico de Tóquio achando que era sopa de mexilhão. Mas quem, diante daquele cardápio ao contrário, acertaria a pedida. Por fim, deliciaram-se de comida de rua na Índia.
-- Engov ou Imosec?
-- Os dois. Ou melhor, tanto faz...

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Dia azul e nada de brancura da nuvem

 Por Ronaldo Faria 


Entre um acorde e outro, às vezes lúcido e outras tantas louco, Malaquias – Quias para os íntimos – caminhava à beira-mar. A tarde ainda não entardecia num inverno que nenhuma nuvem queria pintar de branco ou solar nostalgia. O frio, nem gélido e nem longevo dos casacos cheirando a guardados, brincava de passear nas ondas rasas e poucas a cobrir de toucas as cabeças e moleiras das crianças que, deitadas nos carrinhos de bebê, bebem suas primeiras emoções de paz. Os corpos jovens de mulheres e rapazes correm no calçadão à espera de logo mais se juntarem desnudos aos acúmulos do amar. No Morro Dois Irmãos, a pedra milenar é o próprio chão.
Quias, suburbano de nascença e filho de Xangô, que brindou os santos e guias nos terreiros da vida, lembrava de Sandra Lúcia, mistura de índia e sorriso que se espalha e se espraia agora na praia que brinca de luzir o acordar e amanhecer no meio do dia. Na cândida cadência que se apropria do dia, poder estar vivo é a própria orgia. Nela, Quias redescobre os caminhos tardios a cruzar no Opala as estradas transversas de mãos a cobrirem a paixão que se desenrola debaixo da toalha. “Cacete, gozei! E agora?” Hoje, ele ri da cara da jararaca da quase sogra que no banco da frente não tinha visto a cena que o asfalto traduz.
-- Por onde andará a sanha das histórias que o poema não soube detalhar?
Nas sombras que as árvores dão, naquilo que antes fora apenas a chácara de um francês, Quias caminha até a subida da Niemayer. Logo ele chega ao mirante. Dele, vê-se a vista que sobreavisa que o mundo é para poucos. “Mas qual, isso sempre não foi assim? Uns matam o elefante, mas poucos podem usar seus dentes de marfim.” O início da tarde, porém, ainda está lindo e lúcido. Não deixa lugar a divagações sem noção. Talvez um chope, um pastel de carne, a foto de celular que vai minguar na pouca memória do aparelho. Quias prefere não pensar muito. É hora de retomar a estrada: caminhada, metrô, interligação, trem e novos passos sem dó. “Só queria mesmo ter dado o último beijo além daquele cheio de lágrimas dos dois.” Na descida, um moleque pede um troco para comer o que puder pagar. “Certo, mas não vai gastar com bala, sorvete ou manjar.” A vida, sabe Quias, não foi feita para se empanturrar de guloseimas. Na feira perto, o dono da barraca de peixes grita que a sardinha é fresca, “quase um destaque de escola de samba ou dos bailes de gala do Copa nos Anos 70”. Sem vontade de sorrir, Malaquias apenas relembra que gostaria viver e estar de novo nesses anos nos braços e lábios da amada a desfilar. Para ele, o subúrbio era o cadafalso e o paraíso num mesmo lugar.
 
(Ainda com Arthur Verocai)

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Tarde com Arthur Verocai

 Por Ronaldo Faria


 -- Blasfêmia!
“De algum modo o texto tinha que começar”, pensou Edgar. Afinal, a ideia inicial não surgia. Que venha ao menos uma palavra. Veio blasfêmia. E olha que lá estavam todos os ingredientes para delirar: vinho, música, solidão, tela branca e desejo de escrever. “Mas blasfêmia é o melhor modo de se começar um texto? Será que não há outro pretexto? Outro destrinchar de palavras, emoções e insolventes soluções?” Não tinha. Não teve. E se a coisa já tinha começado a rolar, que assim fosse o alarde daqui para frente.
A palavra inicial fora dita por Ana Rita ao ser indagada do atraso na chegada. Que mal havia em ser no ato quatro da madrugada? “Não posso ter ficado no ponto de ônibus a esperar o Circular?” Até podia, mas mesmo com o sistema complicado pela queima de veículos pelo tráfico, era meio difícil acreditar que entre as 18 horas e quatro da manhã não tenha passado nenhum ônibus. Ou um Uber sequer. “Pois é, Edgar, o Rio está uma bosta pra se morar! Vou dormir! Passar bem.”
-- Blasfêmia!
Bem que ele tinha pensado diversas vezes em se mudar para o Interior. Alguma cidade pequena, dessas em que todo mundo se conhece, fala mal uns dos outros, sabe-se de cada detalhe da vida alheia, se acorda com os galos e se dorme com as galinhas. Volta e meia, num ou noutro dia, a missa dominical, o almoço em família, quem sabe o enterro do velho que há muito vivia com um câncer que já tinha ganho até apelido – Amigão. “Certamente lá não tem guerra civil por domínio de território. Talvez, decerto, a família tradicional do lugar há muito já tenha matado os outros que pudessem lhes tomar o poder. Tudo findo com um famoso vão se foder.” Para Edgar, o importante era voltar a conquistar Ana Rita. E podia ser na Mongólia, Transilvânia ou Cochinchina. Até São Pedro do Mato Dentro, seja onde no mapa do planeta ela possa geograficamente estar, servia.
Na rua, que acordara com um tiroteio de balas traçantes, a radiopatrulha passa em velocidade com a sirene ligada. O batalhão sequer tinha dormido no baile de corpos alvejados, dilacerados ou caídos. Uns poucos heróis e heroínas que não podem sequer dizer ao patrão ou patroa que no bairro o bicho está pegando, sob a pena de não ter mais emprego, rezam aos santos para que nenhuma bala perdida consiga achá-los. O português da padaria, que baixa a porta para evitar saque, xinga o dia que pegou a barca para atravessar o Atlântico. “O puto do Cabral podia ter descoberto o Canadá. Agora eu estaria em Montreal, ô pá!” Mas, para Edgar, o importante é toda essa balburdia não acordar Ana Rita. Certamente, para o resto das horas que vem, um sono da amada é a melhor receita e solução.
-- Blasfêmia!
Aos poucos as horas sem ponteiros no relógio digital revoam no ar atemporal. E pombas voam e defecam, roupas nos varais empoeirados secam, repórteres de noticiários sanguinolentos tentam entrevistar quem resiste em morar na Faixa de Gaza nacional onde nem gaze dá conta de tantos feridos. Edgar agora vai na cozinha fazer o café para Ana Rita. Ela levanta recuperada e lívida, com seu corpo desnudo a rebrilhar na luz que entra pela janela do segundo andar. “Desculpa por antes. Eu estava estressada. Sabe lá o que é ficar horas num ponto de ônibus cheio de gente desesperada pra voltar?” Edgar sabia. “Seu café está pronto. Fiz do jeito que você gosta: forte.” Às onze da manhã o dia parece ter recuperado um pouco da sua etérea paz. Afinal, mesmo traficante, miliciano e PM têm que descansar. O bairro redescobre que pode sonhar e quem sabe até mudar de lugar. Virar Zona Sul e lumiar. Blasfêmia? Talvez. Ou essa também já não há. Edgar e Ana Rita enfim juntam as bocas, deitam na cama refeita de casal e descobrem que a vida é um mero segundo irreal. Entre pernas, afagos e louças na pia, são um final contundente e real a blasfemar.

domingo, 26 de outubro de 2025

Duke Ellington & John Coltrane: lirismo, sofisticação e puro jazz *

Por Edmilson Siqueira


Lançado em 1963 pelo selo Impulse!, o disco Duke Ellington & John Coltrane é um desses encontros que fascinam pela qualidade não só dos músicos envolvidos, mas pela maneira como dois mundos distintos do jazz se encontram e se harmonizam num diálogo inventivo e generoso.  
Colocar esses dois gigantes num estúdio não deve ter sido tarefa difícil. Ambos, em 1963, já eram ícones do jazz. Duque, símbolo da elegância orquestral e da tradição jazzística. Coltrane, o explorador inquieto e já referência da força transformadora do jazz. O resultado só podia ser uma obra que, mesmo mais de seis décadas depois, continua atual para os amantes do gênero.   
O lançamento se deu em 1963, mas o disco foi gravado um ano antes, em Nova York. E, claro, para fazer a "cozinha" desses dois gênios, foi escalado um time mais que de respeito: o contrabaixista Jimmy Garrison e o baterista Elvin Jones, do quarteto de Coltrane, e o contrabaixista  Aaron Bell e o baterista Sam Woodyard, da orquestra de Ellington. Sim, são dois baixistas e dois bateristas e eles se alternam nas faixas o que indica uma proposta do álbum: um verdadeiro encontro de linguagens. Ellington, com sua escola de swing refinado, de toques firmes ao piano e sensibilidade para compor.  Coltrane, com sua sonoridade densa, espiritual e ascendente. 
A faixa de abertura, "In a Sentimental Mood" (I. Mills, D. Ellington e M. Kurtz), é uma das mais famosas da carreira de ambos. Sua introdução é figurinha carimbada em centenas de programas de jazz pelo mundo. A canção, composta em 1935, ganha nova vida com o sax tenor de Coltrane. O piano dialoga com delicadeza, sustentando acordes que parecem respirar junto com o sopro de Coltrane. E, curioso, Ellington, que poderia soar meio antiquado frente à vanguarda do saxofonista, mostra-se absolutamente moderno.  


A segunda faixa, "Take the Coltrane" (Duke Ellington) foi composta especialmente para o disco. Nela, o piano é quem tem um papel mais ousado, deixando ao sax um movimento rítmico vibrante. A faixa é um dos momentos mais swingados do álbum, com Elvin Jones impulsionando o grupo em uma pulsação firme e orgânica. Coltrane responde com frases rápidas e cheias de energia, produzindo um diálogo como se os dois fossem velhos conhecidos. Coisas de gênios da música, claro.  
"Big Nick" (John Coltrane), a terceira faixa, diminui o frenesi da anterior com uma leveza surpreendente. Soa até meio infantil, pois trata-se de um tema simples que Ellington acolhe com humor e elegância. Aqui, o universo de ambos se entrelaça proporcionando um equilíbrio entre complexidade e simplicidade e provando o acerto do encontro. 
A quarta faixa, Steve (Duke Ellington) traz o maestro impondo seu piano suave e decidido, com notas econômicas, mas criando um universo em que Coltrane penetra com tranquilidade, aumentando o sentimento de plenitude que o conjunto sonoro nos oferece.  
"My Little Brown Book" (Billy Strayhorn) é uma balada de beleza serena, em que Coltrane exibe seu fraseado mais introspectivo, repleto de nuances. O piano de Ellington, com acordes espaçados, cria uma atmosfera de melancolia refinada. É um diálogo entre dois poetas do jazz, trazendo emoção em seus movimentos sonoros.  
Em "Angelica" (Dduke Ellington) retoma-se a veia rítmica característica do autor. O tema, originalmente intitulado "Purple Gazelle", exibe uma vitalidade dançante, conduzida por Aaron Bell no baixo e Sam Woodyard na bateria. Coltrane, por sua vez, não rompe com a estrutura, mas lhe dá uma espécie de luz.  
A última faixa do disco é "The Feeling of Jazz" (Duke Ellington, Boby Troup e George Simon) nos traz a alegria de tocar, o prazer da improvisação e o respeito mútuo, ou seja, tudo que o jazz exprime entre os músicos e que o deixa tão agradável aos ouvidos. É também a perfeita sincronia entre gerações que a música em geral e o jazz em particular costumam proporcionar.  
Como eu disse, sessenta e dois anos depois, o disco Duke Ellington & John Coltrane permanece um dos encontros mais nobres da história da música. Um diálogo entre o velho e o novo unidos pela qualidade e respeito à música.  
O disco pode ser encontrado nos bons sites do ramo (no Mercado Livre há vários com preços bem variados) e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=sCQfTNOC5aE&list=PLTIb4fKCEAeuaUYxKkDz7K7OvElI2s_Se . 

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Saudades saudosas e perdidas

 Por Ronaldo Faria


Mel, melaço, cana moída sob a árvore frondosa que resistiu à seca do sertão. No meio do nada, onde nem estrada há, a fugaz sensação de que a felicidade tem lugar. Mas não nos perguntemos onde ele está. Pode estar longe, na lonjura que nem os olhos conseguem enxergar no mapa-múndi, ou colada logo ali no colo da amada que se embriaga de alcaloides. Afinal, no contexto sem texto que sequer sabemos antecipar o final, como descrever estampas de sabonete no funesto lembrar abissal? Foi, existiu ou apenas é um louco e sombrio lembrar? Morreremos sem saber o que falar...
Tobias corria as estradas cheias de secura e morte feito consorte da veleidade que nos foge a cada dia. Cravava as esporas no dorso do cavalo cansado para mais cedo chegar. O sangue do animal escorria na terra esturricada e se derramava junto com o suor que cobria os pelos molhados de dor. Sem dó, Tobias batia com o chicote feito de couro de um bicho que morreu para depois fazer sofrer o dorso de outro igual. A muitas léguas de uma saudade sem tréguas, dessa que não se mede nem com mil réguas, apenas queria chegar e se achegar nos braços de Maria. Ao animal espancado restaria quem sabe uma ou outra égua. Se esta no cio estiver.
Na fazenda, cantilena na cantoria irreal, o homem roda as madeiras que moem a cana cortada que logo será aguardente ou garapa. Envolvido em si mesmo, envolto na penumbra das folhas que sobreviveram à secura do tempo, o homem da fantasia é apenas o mote de alguma poesia de cordel que virá e se perderá ao léu do rentista do mundo que crê ser artista.
No alpendre o menino brinca com seus bois em sabugo de milho. No mundo findo aonde os olhos enxergam e é infindo na saudade do poeta cantador, Tobias ainda trilha suas mil trilhas que nunca terminarão. O animal que o carrega, trôpego e sôfrego, cai desfalecido e morto perto de duas cruzes onde abutres tentam comer os restos de anjinhos enterrados. Sem mais como ter de chegar ao colo e seios de Maria, Tobias senta no chão de poeira e chora. A aurora logo vingará no céu sem nuvens pra pingar. Se um boiadeiro passar na busca da burrega desgarrada, verá apenas um homem enlouquecido que achou que tinha encontrado o Senhor no paraíso do já descortinado luar. E como o destino é repentino, tal boiadeiro complacente se compadecerá com a cena.
-- Meu alforje está cheio de água. Quer um gole daquela que eu peguei sob uma gameleira?
A pensar em Maria, Tobias dá o último suspiro para a vida. Seu corpo, tosco como o do cavalo que tombou, é enterrado na estrada. Resta-lhe uma cruz de galho cortado num descampado perto. Na fazenda, Maria bebe o líquido que a cana cortada deixou escorrer quando era esmagada para algo ser.

(Com Elomar, Vital Farias, Geraldo Azevedo e Xangai)

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

João e Maria

 Por Ronaldo Faria

 

João e Maria, nomes de história da carochinha ou quem sabe amantes da mais eterna fidalguia. Na verdade, ninguém sabe de tal histriônica história ou pouco deles se dirá. Um ou outro conhecedor de ambos até rirá. “Fazer um texto dos dois? Está de sacanagem!” Mas, se tudo na vida vale, por que a dupla tem que ser descartada ao nada? Logo aqui que, às vezes, nada se leva além de uma reles mamada...
Conheceram-se ao acaso, nesse introito do destino em que cada caso é um caso. Seja este profícuo ou raso. Foi quase que momento irrisório, cercado de tragédia grega ou notório fado. Era noite, dessas que chega cercada de bêbados, amores desfeitos, peitos sugados por bocas e línguas ao descalabro. Numa esquina, onde a quina de concreto reto dos prédios serve de anteparo aos corpos que já não respondem aos instintos íntimos da preservação, se viram. Entre sussurros e respiros sôfregos, se falaram. Na verdade, não. Primeiro se tocaram, se trocaram de salivas e afagos e escreveram orgia própria na fugidia e tardia madrugada que logo de novo será dia. Depois, sim, proferiram seus nomes: João e Maria.
E tanto gostaram de tudo vivido que se fez o próximo minuto vilipêndio de um compêndio do desejo de até trocarem telefones. Cambaleantes, seguiram aos seus cantos entre cânticos de pássaros que logo cedo estão a buscar o manjar. Dormiram enquanto a cidade despertava atávica para reviver sua rotina cretina. Banharam-se de água quente e reviram o encontro, reviraram a solidão premente e inconsequente que viviam, agradeceram a dose a mais que os fez se entregarem, solenes, ao corpo desconhecido do desatino. Contemporizaram os riscos e medos que o novo amor traz. Decidiram que agora era a hora apenas de voltar a crer e acreditar que há navios que zarpam para longe e voltam do além-mar. Com seus marujos e histórias de sirenas lindas e portos habitados por marajás. Afinal, a vida não é um eterno reescrever e tentar? Logo, fodam-se os medos a singrar. Se despiram dos degredos e ensejos tardios, brindaram de gelo e copos suados ao novo dia e rumaram ao reencontro vadio.
-- João?
-- Maria?
Não tinha erro. Ambos eram como se tinham sonhado na madrugada tardia, entorpecida de lucidez e frenesi da etérea vida. Não deu outra: se refugiaram numa mesa de bar, dessas que escorre vida, e descobriram que não há loucura maior do que aquela desmedida. Hoje são apenas e tão somente João e Maria. Moram numa casa assobradada na periferia, têm quatro filhos e duas filhas. Seguem seu mundo como uma estrada já escrita e desenhada. Desdenhada de grandes sobressaltos. Onde não há restos de espectros do amor. Mas são felizes. No quintal criam até perdizes. Já a madrugada de antes, essa tem novos matizes. Nela, outros Joãos e tantas Marias ainda tentam ser felizes.
-- Eu não disse antes: “fazer um texto dos dois? Está de sacanagem!”
 
(Com Stan Getz e Luiz Bonfá)

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Adoniran, nosso poeta

Por Edmilson Siqueira




Se o Rio em seu Poeta de Vila, São Paulo tem o Poeta do Bexiga. Claro que não estou querendo comparar Noel Rosa a Adoniran Barbosa, mas que a qualidade de seus versos e sambas os une indelevelmente não resta qualquer dúvida. 
Evidentemente Noel é uma espécie de tesouro nacional do samba, mas Adoniran, tenho certeza, não fica devendo muito ao genial artista carioca. E vou parar por aqui essas tímidas comparações, acho os dois são geniais e vou partir para o que interessa: o disco "Adoniran, O Poeta do Bexiga", lançado em 1990 pela Som Livre, em meio às comemorações dos 80 anos que Adoniram faria neste ano, ele que nos deixou em 1982, aos 72 anos. 
O nome do bairro, que fica na região da Bela Vista em São Paulo, tem sido grafado como "Bixiga". Porém, na capa do disco está "Bexiga", que é a grafia original da palavra. 
A produção foi caprichada, afinal a Som Livre ainda detinha grandes poderes no meio fonográfico e podia trazer nomes famosos e bons para uma justa homenagem. Assim, CBS, BMG-Ariola, WEA, EMI-Odeon e RGE cederam artistas para o projeto. Lançado primeiramente como LP depois em CD, o disco deu liberdade para que os intérpretes colocassem sua marca em cada música. Das dez músicas, apenas em três delas Adoniran tem parceiros, que serão devidamente assinalados. 
A primeira faixa é quase clássica. Um programa da TV Bandeirantes juntou ninguém menos que Elis Regina e Adoniram passeando pelo Bexiga. Entre as interpretações dos dois, essa foi realizada num boteco: trata-se de "Tiro ao Álvaro", uma parceira de Adoniran com Oswaldo Moisés. Impecável, com a dose certa de humor e lirismo que os versos do poeta tanto exalavam. 
Logo a seguir, a interpretação mais que pessoal - e excelente, como era de se esperar - de João Bosco para "Saudosa Maloca". João inicia a música com versos de "Sampa" (Caetano Veloso), aquelas duas frases sobre a grana que São Paulo ergue e destrói coisas belas, referência mais que exata sobre a "maloca" dos amigos derrubada pelo "progresso". 
A terceira faixa, "Samba do Arnesto" parece, em seu início, que será mais uma interpretação dos grandes "Demônios da Garoa". Só que, após a introdução, quem aparece cantando o famoso samba é ninguém menos que Rita Lee. E ela não deixa por menos, cantando muito bem e brincando com a parte falada da música.


"Trem das Onze", talvez o maior sucesso de Adoniran, ganha ares melodramáticos na voz aguda de Tetê Espíndola e num acompanhamento de violões explorados ao máximo em suas sonoridades. Sim, a música perde todo aquele ar bucólico, mas fica interessante. 
A seguir, uma obra prima de Adoniran numa letra de Vinicius de Moraes. Os dois nunca se conheceram, diga-se. A letra foi feita por Vinicius na Europa e entregue a Aracy de Almeida, para que ela entregasse a quem quisesse. Pois ela deu para um improvável parceiro de Vinicius que surpreendeu a todos, colocando nos belos versos uma melodia maravilhosa. A faixa foi dada à cantora Luciana que teve um acompanhamento luxuoso ao piano de Hermeto Paschoal. (Aqui cabe um pequeno parêntese: Luciana é Luciana Souza, cantora brasileira que vive nos EUA e já foi nomeada ao Grammy Award seis vezes nas categorias de Melhor Álbum de Jazz Vocal (cinco vezes) e Melhor Álbum de Jazz Latino (uma vez) em 2003, 2004, 2006 e 2010 e duas vezes em 2013. E ganhou o prêmio Female Jazz Singer of the Year em 2005 e 2013 pelo Jazz Journalists Association dos Estados Unidos.) 
A faixa seguinte une o bom samba carioca do Fundo de Quintal com o samba paulistano de Adoniran na música "Aguenta a Mão, João", parceria com Hervé Clodovil. O Fundo de Quintal dá conta do recado com a mesma categoria de sempre. 
A grande Marlene não poderia ficar de fora. Mesmo sendo uma das maiores cantoras que o Brasil já produziu, sucesso inclusive na Europa (ficou quatro meses e meio em cartaz no Olympia de Paris a convite de Edith Piaf), Marlene nasceu na Bela Vista, em São Paulo, exatamente onde fica o Bexiga, cantado em prosa e verso por Adoniran. E ela se solta como filha de italianos - seu pai era romano e sua mãe calabresa - no samba "Acende o Candieiro". 
Macalé, um grande cantor sim senhor, foi incumbido de cantar a tragédia de Iracema. E ele traz todo seu talento dramático para a música, cantando lentamente, com a dose certa da tragédia da namorada atropelada pelo carro na Avenida São João. Um grande destaque é o sax soprano de Edgard Duvivier que, ao encerrar o arranjo inclui uma frase de Jobim/Vinicius ("o amor é coisa mais triste quando se desfaz...). Genial. 
O famoso "Samba Italiano", que fez muito sucesso na voz de um cantor italiano na Itália, foi gravado pela correta cantora Patrícia. Pra quem não conhece, Patrícia é cantora e compositora, que iniciou sua carreira muito jovem no grupo infantil Trem da Alegria nos anos 80. E dá conta do recado direitinho com o engaçado samba de Adoniran todo em italiano. 
Por fim, a décima e última faixa da homenagem - "Torresmo à Milanesa", parceria com Carlinhos Vergueiro - foi entregue à cantora Paula. Com arranjo de Rildo Hora e com coro e percussão, a singela obra da dupla acabou ganhando vestimenta nobre, com a correta interpretação de Paula. 
Como não há o sobrenome da cantora no pequeno encarte, não consegui desvendar quem é essa Paula. Mas ela canta bem e encerra de forma agradável essa bela homenagem ao grande Adoniran Barbosa, um paulistano de coração que nasceu em Valinhos quando a atual cidade era subdistrito de Campinas. 
O CD está à venda nos bons sites do ramos. Já o LP é meio raro e os preços estão mais salgados. E pode ser ouvido na íntegra no Youtube em https://www.youtube.com/watch?v=-w2vub0VYoE&list=PLos-v4VZHh4iA0HUqEFWMogGcigxHmkiI .

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Com João Gilberto e Stan Getz

 Por Ronaldo Faria

 

Devagar, quase a parar, o Oldsmobile trafega na Avenida Atlântica. Na areia logo do lado, a mulher de biquíni de duas peças deixa o seu corpo a brilhar nas ondas do mar. No bar perto um garçom deixa o gim com tônica para a turista atônita diante de tanta beleza tropical. Já a madame de várias décadas de Copacabana, desde a época em que ambas eram meninas, passeia com seu pequinês quase cego e idoso. Uma lotação percorre nas fumaças em negror o Túnel Velho que separa o paraíso da vida real. O desavisado senhor quase é atropelado pela Vespa que um playboy qualquer conduz de forma tresloucada e o músico, que deixou sua poesia harmônica na boate que acabou de fechar, decide fazer uma pausa no calçadão para ver a manhã se espalhar e espelhar entre pernas, bocas e olhares à mansidão de se crer. Na imensidão da vida, qualquer coisa no fundo é bem vinda.
-- Sabe, hoje descobri meio abobalhado e a falar sozinho na rua que, se estamos vivos, foda-se o resto. No final, lá no finalzinho mesmo, quando um caixão apertado será a última morada e a derradeira namorada, o que sobrar vai soçobrar queira você ou não. Logo, que possamos viver e ver a beleza que cada renascer nos dá.
Uma pomba desavisada e desqualificada de teorias existenciais, resolve por fim aos devaneios de verão e se alivia desanuviada na cabeça do sonhador.
-- Puta que pariu, com tanto lugar pra cagar foi logo me escolher?
Dedução e revolta inoperantes diante do voo do pássaro que resolve agora repor o espaço no estômago vazio.
Mas no asfalto que segue paralelo ao mar ninguém quer saber de pombas, devaneios ou histórias que se perderão no próximo luar. O lugar é de apenas crer que ainda vale, por hora, cada respirar. Mães pungentes passeiam com seus bebês de colo, colírios se espalham nos olhos vermelhos de sono e ressaca dos boêmios, coliformes disputam com os peixes as redes dos pescadores da colônia do Posto 6. A babá, vestida no seu branco indefectível à espera da golfada do rebento da patroa, flerta com o vendedor de picolé. O novo prédio que sobe onde antes era uma residência mostra que a excrecência da vida está nas contas bancárias que separam os operários esquálidos dos futuros moradores refratários da beira-mar. Numa rua próxima a igreja gótica diz que é o momento propício do pecador se confessar. No estrupício sem senso ou lógica, o cliente num inglês abrasileirado pede outra dose de vodca, com gelo e limão. Afinal, de verdinha em verdinha se conquista a sofreguidão.
-- Ô Valdemar, manda outra caipirinha sem pinga pro gringo da mesa quatro que logo vai estar de quatro!
Descido da Ladeira dos Tabajaras, o menino empina a sua pipa em gestos de maestria sensorial. E o Rio, no seu balanço natural, segue à espera da vida.

sábado, 18 de outubro de 2025

Na bazófia, seja isso o que tiver de ser

Por Ronaldo Faria


Lavar os restos prestos de caminhos retos e banhados de assombrações e sujeira na pia entre louças e poucas certezas e tantas incertezas? Mário, o telúrico, na lucidez inexistente e premente de destrinchar o poema da vida e a vida da solidão, estava numa trincheira da bazófia, seja lá o que isso tiver de ser. Saravá agora e pra onde tiver de ter. Os santos tântricos que se guardem no aguardo.
Nas paulistanas e inconstantes noites e madrugadas (já que traulitantes parece não existir no dicionário) os corpos e copos encorpados nos corredores de sangue e volúpias se dilaceram e se esmeram de cinzas e fumaças mil. No calor do inverno que a quirógrafa escreveu, eu, ateu, até tento crer em Deus.
Catatônico, harmônico, afônico e atônito, a puxar o último grau, o perdulário de emoções se faz maestro nos vórtices que a vida dá. E caminha entre rios poluídos, ouvidos doidos e doídos, avenidas cambaleantes de agora até ontem. Às feridas geridas em cada dor transversa e expressa na falta de pressa que a madrugada traz, há um pouco e tanto, entretanto, de silêncio e solidão. Assim, escancaremos dois  à cara limpa que a vida finge resguardar. No lugar em que a tragédia e a comédia se misturam cresce um pé de antúrios. Nas Astúrias um conde qualquer tenta beijar a nova mulher. No albergue social o morador das ruas tenta sobreviver a comer o que lhe dão com a plástica colher. O que irá colher no seu quintal ínfimo já é outra leitura vespertina. Resposta não há.
-- Ainda é esse o sabor de veneno? Que coisa mais cretina. Preferia estar diante de uma cafetina ou de um copo de cafeína.
Nas caixas acústicas e lúdicas surge uma frase: “Olha o breque, Biafra...”
 
(Num boa noite com Arrigo Barnabé)

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Papo etílico e líquido

 Por Ronaldo Faria

 

-- Você já foi atrás da cerveja errada, comprou e vira essa que se se esquece na geladeira e só dá ressaca?
-- Infelizmente, sim...
-- E o que fazemos? Jogamos fora?
-- Nem fodendo. Um dia far-se-á néctar da embriaguez.
José e Ronaldo, dois seres diferentes, divergentes e carentes de decilitros, mililitros ou algo que não cheire a perfume, ao menos numa coisa concordavam: lúpulo e cevada têm que casar feito Deus e Satanás. Têm que ser arroz e feijão, ovo e omelete, onda e mar. Se tiverem algo que os separe, saibam que nem nas cercanias do inferno da mente irão se encontrar. Serão coisa modorrenta e nada mais. Afinal, beber não é só se embriagar...
-- Cerveja é que nem barbeiro? Cola num até ele morrer?
-- Com toda a certeza.
-- Cabelo e cerveja são coisas unidas?
-- Mais ou menos. Talvez como o escrever e o verso. Os dois são dor, crescem e dão sorte e azar, ou são somente novo amanhecer.
Viventes prementes e ausentes do que pode ser aqui ou sei lá, do lado daqui e de acolá, certamente os dois não cantarão a essência do sonhar no blues que virá.
-- E aí, vale viver e seguir coisas perpetradas no bem-será?
-- Se não valer e seguir, aí fodeu geral...
No mundo externo e terno que se abarca lá fora, copos se levantam e se postam nas mesas, beijos e fodas se abrem em pernas e bocas, loucos e loucas se fundem e se entregam nas falsas tréguas que a insensatez dá. Aqui ou no Afeganistão alguém estará a frigir os ovos e óvulos com tesão.
-- Há explicação para se viver aqui ou em Berlim?
-- Sei lá. Nalgum lugar haverá uma colombina na busca de um arlequim. E vice-versa. Quer dizer, é tudo uma mesma merda. Só muda o palavreado e o fim.
 
(Com Itamar Assumpção)

Na viagem

Por Ronaldo Faria Viajante de suas loucuras diuturnas, quase equidistante entre a vida e a morte, Januário persegue qualquer polis que vire ...