quarta-feira, 3 de julho de 2024

Saudade ao som de baião

 Por Ronaldo Faria


Saudade, essa maldade intrínseca e seca que devora a gente em cada pedaço de ser. Que não devolve a vida que nos faz falta, como se o destino fosse o segundo de um tiro de revólver a revolver o que o coração não deixa sumir no sumidouro que é cada dia sem o bem-querer.
Saudade, essa maldade malfadada peluda e pungente, que destrói a essência da gente. Que não nos deixa mais dormir em paz e se apraz por nada ser. E se transmuta muda a se rever em olhares negros e iguais de milhares de pixels que os olhos juntam mistérios e sofreguidão.
Saudade, palavra nossa, brasileira, rasteira, veemente e dormente, aos seres doentes à busca daquilo que se deixou perder. Iniqua e inócua no dicionário que nenhum vocabulário dá. Na margem da crença, a bênção da espera de juntar vidas e cinzas num único e efêmero amém.

terça-feira, 2 de julho de 2024

Pixinguinha, 100 Anos

Por Edmilson Siqueira 


Não, Pixinguinha não faria 100 anos neste ano. Já teria feito em 1997, ele que nasceu no fim do século 19, em 1897. O título desse artigo se refere a uma homenagem feita a ele, exatamente naquele ano, com o lançamento de um luxuoso álbum, com dois CD, um magnífico encarte e belas capas duras. Coisa de primeiro mundo, rara por aqui até hoje.
Talvez se conheça pouco da obra desse grande mestre da música brasileira. Você citaria, de cabeça, cinco músicas dele? Além de Carinhoso, Rosa e Lamentos, fica difícil, né? (aliás, se tivesse feito só essas três já teria sido genial). Mas Sérgio Cabral, o pai, jornalista, biógrafo e grande conhecedor da música popular brasileira, considera Pixinguinha um dos três maiores nomes da nossa música. 
Pois ele e Hermínio Belo de Carvalho são os autores dos textos que acompanham a luxuosa edição dedicada a Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha, compositor, arranjador, maestro, professor, flautista e saxofonista. E bom em tudo isso. 
"Ago Pixinguinha - 100 Anos" é o nome do álbum, um projeto artístico e uma produção de Herminio Belo de Carvalho que é nada menos que pesquisador, escritor, autor de letras memoráveis da nossa música (inclusive parcerias com Pixinguinha) e que dedicou toneladas de linhas ao mestre, sempre louvando sua genialidade.
As gravações das 20 faixas dos dois CDs, com exceção das gravadas ao vivo, foram realizadas nos estúdios da Som Livre e reuniram times fantásticos de músicos, arranjadores e cantores. O resultado foi um painel precioso da obra de Pixinguinha, passando tanto pelas músicas com letras antigas e com algumas atuais, bem como com as instrumentais, que revelam toda a qualidade e complexidade das composições de Pixinguinha.
Como se não bastasse todo esse material de primeira qualidade, o encarte que traz um lindo texto de Hermínio e uma apresentação deliciosa escrita por Sérgio Cabral, é ocupado, em sua maior parte, por uma enorme entrevista com Pixinguinha, onde ele conta tudo que se lembra de sua vida, inclusive o ano que passou tocando, com seu conjunto, na Europa, mais precisamente em Paris. Sim, os franceses apreciaram também a genialidade de um grupo de músicos brasileiros no início do século passado, de novembro de 1921 a abril de 1922. 
Como menciona o ótimo site "Brasilian Fotográfica" (https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?tag=shererazade-dancing): "Foi o primeiro conjunto brasileiro a apresentar na Europa a música urbana produzida no Rio de Janeiro na época. Tocaram durante os seis meses que ficaram em Paris, na época a capital cultural do mundo, choros, maxixes, polcas, tangos brasileiros, sambas, lundus, batuques, valsas, cateretês, emboladas, cocos e toadas sertanejas. Chegaram em 11 de fevereiro, no porto de Bordeaux, na França e foram recepcionados na Gare d´Orsay, em Paris, no dia seguinte, pelo Duque e pelo jornalista Floresta de Miranda, secretário particular de Guinle. Nos meses seguintes, como Les Batutas, seriam atração fixa numa badalada casa noturna de Paris, o dancing Shéhérazade, na Faubourg Montmartre, 16." 



A entrevista é, na realidade, uma síntese do depoimento que Pixinguinha deu ao Museu da Imagem e do Som do Rio em 6 de outubro de 1966 e 23 de abril de 1968, depoimentos esses que envolveram como entrevistadores, o próprio Hermínio, Cruz Cordeiro, Ilmar Carvalho, Ari Vasconcelos, Hélio Marins e Jacob Bittencourt (Jacó do Bandolim), e tiveram a direção de Cravo Albin, diretor do Museu. 
 O depoimento, para se ter uma ideia da abrangência, começa com Pixinguinha explicando seu apelido que, na verdade, era Pizinguim, que foi dado pelo sua avó, africana, (numa época de epidemia no Rio, ele contraiu a doença chamada "bexiga" e o apelido virou Bexiguinha, depois Pexinguinha que ele não sabe como virou Pixinguinha) e vai até seus sentimentos de completar 70 anos e ter esperança de viver mais "uns dez anos pelo menos", o que não ocorreria, pois ele morreria cinco anos depois do segundo depoimento, em 1973.  
Mas é um depoimento sensacional, não só pelo que diz o mestre, mas por pelo fato de seus entrevistadores serem todos grandes conhecedores da vida e da obra de Pixinguinha.
Os dois discos são de dar água na boca do apreciador da boa música brasileira. Com arranjos modernos, ótima gravação, as músicas contam com a fina flor da interpretação brasileira. Segue a lista (entre parênteses estão os parceiros de Pixinguinha, alguns dos quais colocaram as letras muito depois das músicas feitas ou mesmo depois que Pixinguinha já ter morrido):
 
Disco Sambando, Chorando
1) Carinhoso (com João de Barro) - Nana Caymmi
2) Mundo Melhor (com Vinicius de Moraes) - Alcione
3) Rosa - Caetano Veloso
4) Lamentos (com Vinicius de Moraes) - Chico Buarque e MPB4, na melhor gravação cantada dessa música
5) Fala Baixinho (com Hermínio Bello de Carvalho) - Maria Bethânia
6) Cochichando (com João de Barro e Alberto Ribeiro)- Zezé Gonzaga e Eduardo Dusek
7) Gavião Calçudo - Zeca Pagodinho
8) Um a zero (com Benedito Lacerda e Nelson Ângelo) - Arranco de Varsóvia
9) Vou Vivendo (com Benedito Lacerda e Hermínio Bello de Carvalho) - Cristina Buarque e Sérgio Ricardo
10) De Mal Pra Pior (com Hermínio Bello de Carvalho) - Paulinho da Viola
11) Página de Dor (com C. Nunes) - Ney Matogrosso
12 - Benguelê/Yaô (com Gastão Viana) - João Bosco
13) Ingênuo (com Benedito Lacerda e Paulo César Pinheiro) - Simone e Baden Powell
14) Patrão Prenda Seu Gado (com Donga e João da Bahiana) - Fundo de Quintal
 

Disco Tocando, Tocando
1) Carinhoso (com João de Barro) - Tom Jobim
2) Rosa - Hermeto Paschoal
3) Tapa Buraco - Radamés Gnatalli e Camerata Carioca
4) Um a Zero (com Benedito Lacerda) - Raphael Rabelo e Paulo Moura
5) Ingênuo (com Benedito Lacerda) - Radamés Gnatalli, Seu Sexteto e Edu
6) Naquele Tempo (com Benedito Lacerda) - Baden Powell
7) Marcelo Quer Água - Camerata Carioca
8) Pula Sapo - Pixinguinha
9) Urubatan (com Benedito Lacerda) - Pixinguinha
10) O Gato E O Canário (com Benedito Lacerda) - Água de Moringa
11) Samba do Urubu - Pixinguinha
12 Lamentos (com Vinicius de Moraes) - Jacob do Bandolim e Época de Ouro
13 Proezas de Sólon (com Benedito Lacerda) Jacob do Bandolim e Época de Ouro
 
O álbum está à venda nos bons sites do ramo com preços variados. E podem ser ouvido na íntegra em https://immub.org/album/ago-pixinguinha-100-anos.

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Presságio natalino

 Por Ronaldo Faria


O Natal corre brejeiro e cheio de cheiros, madrigal. Se esconde nas cercanias de casarios perdidos no tempo ao vento quente que voa e revoa entre as galinhas e porcos que fugiram do facão e das mesas adstringentes. As lamparinas acesas se sobressaem na escuridão em derredor. Há pouco lugar para a dor. No alforje do homem suado que volta de aboiar o gado reticente, o presente. Na igreja, beatas trocam orações e dedos a cruzarem as contas do terço que passam rápidas a pedir esperança e chuva tardia. Logo mais será dia 25. O dia que, dizem, nasceu um Jesus. Num lugar quase igual a esse do sertão: pobre, esquecido do mundo, largado à sua sina. Logo a solidão se dará à remissão de cada um, em nós.
Daqui a uma semana, pensava Florêncio, montado no cavalo que seguia arfando os últimos metros da labuta animal, o ano vira. E o mundo vira outro mundo. Ou, como já disse um poeta, Viramundo. E tudo promete renascer: esperanças, crenças, as tranças de Maria, acalantos, prantos, despojos, jogos de azar. Mas, infelizmente, na frente da realidade, as contas na venda do Seu Antonio, a falta de comida no prato, o afago demente, a mente submissa às suas agruras, as tardes de tristeza pungente de cada gente permanecerão, ou não. No alpendre, Maria sorri seu sorriso de branquear a lua mais luzidia. E abre os braços para abraços e tratos de corpos que fluirão em suores na sentença do amor maior.
Hoje, na insensata lucidez que a loucura dá, Florência sonha com as flores que, decerto, seus pais anteviam para ele ao lhes dar tal nome. Mas, como no sertão há florescer? De onde tirar a água que dará sobrevida aos caules carcomidos e finos que não dão nem comida pra formiga? Talvez agora essa seja a menor das indagações. As próximas ações são de entrega àquilo que a vida determinou como sandice ou louvor, porvir de si mesmo. O momento, no lamento da vaca a ver seu bezerro morrer, é rever Maria, fazer de segundos a mais a tresloucada e demorada orgia, acreditar que vale crer. Em algum lugar, no homem vestido de vermelho quente no calor das terras tropicais, os sinais se evaporam a mais.


Saudade ao som de baião

 Por Ronaldo Faria Saudade, essa maldade intrínseca e seca que devora a gente em cada pedaço de ser. Que não devolve a vida que nos faz fa...