Por Ronaldo Faria
Faz frio. O corpo tem arrepio
e não se ouve da coruja sequer um pio. Ela está entocada numa toca qualquer, a
tentar agasalhar seu pé. Na rua, casais se agarram e se juntam mais do que o normal,
como fosse junho o início de mais um Carnaval. Quem sabe a roçar pernas e braços,
com tantos alentos e enlaces, aconchegos e abraços, não se consiga fazer a
noite perpetrar o resto de sol e fazer o mundo esquentar? Mas qual, na Terra
não há mais lugar para anjos. Os demônios que passeiam nas esquinas e camas
fazem da lua seu réquiem e ruminam a estapafúrdia certeza de que não vale a
pena viver.
As janelas fechadas para as
fachadas cinzas e cheias de concreto armado parecem armas prontas para dispararem
no disparate que vem a cada gole de vinho tinto. A tintilar nalgum lugar perto,
moedas caem do bolso do avarento que deixou de pagar a conta de luz. Sem aquecedor,
vive a bater seus dentes e ranger ossos na plena dor. O odor em volta é de
restos de comida carcomida por vermes que aprovaram o fim do frio no
congelador. Deitado no sofá, soturno e alquebrado pelo tempo, Gumercindo é um
gourmet da tristeza, quase um comensal. Lá fora, afogada em formas e versos, vive
Beatriz.
Desejada por todos aqueles que
a conseguem ver ou enxergar, está a ler um livro de poesias, desses que se lê
junto com café quente num boulevard. Quase desnuda, sob as cobertas que chamam
de edredom, sente sua pele tocar o cetim que serve de lençol. Seus raros pelos
brincam de levantar numa estática e elétrica estética a quem gostaria de estar
ali, a servir de calor à falta de pudor. Beatriz, que Michelangelo teria
esculpido em tamanho real e desejo irreal, sabia que vive nos sonhos e
pesadelos de homens e mulheres mil. Mas, agora, na fria noite que se atira
gelada, é apenas um pedaço de sina.
“Cretina, por que me deixou?” O
grito de Evangelista sai de uma lista de impropérios etéreos que surgem da sua
garganta seca e perdida na derradeira mesa de um bar. Ébrio desde menino, famélico
e magrelo, se fosse visto de lado ninguém o enxergaria. Aliás, mesmo de frente,
bem defronte que seja, ninguém o vê. Mas ele não liga mais para isso. Submisso
às lembranças de infância, refém do amor de Maria, é outro Zé na fila do bonde
que há muito deixou os trilhos enferrujados. Penitente renitente de uma oração,
dessas que se recita nas procissões, apenas espera o garçom expulsá-lo do
lugar.
Mas na boate que funciona no
meretrício em tênue luz vermelha plena de devassidão, Joana gargalha ao último
freguês. “Esse albanês é uma besta de pinto pequeno!” Bento, segurança do
local, ri também. O turista, de nome Vasil (não vaselina), sequer entendia o
que os gentios falavam. Feliz pela noite tragada e entumecida, pagou em dólares
e partiu. Seu navio iria sair logo no amanhecer. Para Joana, a trama tinha
findado. Era hora de tomar mais um trago, por conta da casa, seguir para o
subúrbio e dormir. A névoa gelada ao derredor não sabe ver ou ler a sua dor. Daqui
a pouco, novo retomar do mundo louco.
Um dia Gumercindo encontrou Joana a trabalhar e logo descobriu que era nela e nas suas pernas que seria feliz. Catou cada vintém que tinha escondido debaixo dos tacos de madeira e entregou um a um à sua nova amada. Ela, estupefata com tal querer, adotou o homem e prometeu morar com ele, desde que esse pagasse a conta atrasada da Light. No dia seguinte, na fila do Serasa ele estava lá. Já Evangelista viu Beatriz numa livraria tosca na busca de nova leitura atávica. De lado, para que ela não o enxergasse e se assustasse, não acreditou na cena e demasiada beleza. De repente, ela lhe tocou o ombro: “Sabe onde eu encontro Baudelaire?” Foi amor à primeira pergunta e o esquecer eterno de Maria.
Hoje os quatro vivem os dias frios a trocar cobertores, chaves de aquece/esquenta no chuveiro e brincadeiras que surgem depois de garrafas de vinho, conhaque ou bourbon. No interior da metrópole que aos poucos vira acrópole, vão tocando seus dias entremeados de madrugadas onde cada respirar faz fumaça das gargantas brotar. E o tempo e os minutos passam no relógio, perpassam novos aniversários e a certeza de que a esteira da história não para de rodar. Lá de cima, bem acima do celeste luar, alguém ri de seus personagens e daquele que, quando o sol chegar, estará a descobrir como nova ressaca suprimir.
(Ao som de muitos músicos e canções)



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