Por Ronaldo Faria
segunda-feira, 3 de novembro de 2025
No luar sem fogo
sábado, 1 de novembro de 2025
No cardápio que pode incluir batráquio (a ouvir e descobrir Luca Argel)
Por Ronaldo Faria
A pergunta era fácil e difícil de responder.
-- O que você quiser comer. Pra mim, tanto faz.
Caio e Carol eram assim: mil opções a escolher sempre seguidas de um tanto faz. Um casal simples e ao mesmo tempo nunca loquaz. Cruzaram-se pela primeira vez na madrugada que a lua tragava sem dó. Na praça, onde tocaram as mãos que juntariam anos depois num altar, havia um ou dois bêbados (um deles a vomitar entre as rosas do pomar), luminárias de postes queimadas e a ronda da guarda noturna que, soturna, protegia os poucos que chegavam ou iam para a orgia. Casados há pouco, cansados de suas solidões, castrados de poder seguir seu mundo próprio desde então, iam a correr esquinas e sinas inapropriadas. Agora, até para decidir que cardápio pedir no IFood da vida era uma partilha de desejos e papo profundo.
-- Você sabe que um é mais apimentado e o outro mais quase vegano?
-- Sei.
-- Mesmo assim tanto faz?
-- Sim.
-- Então tá. Vamos de pizza meia calabresa e meia milho verde só parar variar.
O solilóquio estava decidido. O descuido ou o relaxo estavam enfim cravados.
-- Deu R$ 78,80. Débito ou crédito?
-- Tanto faz...
Casal que se casou quando a moda era separar, com o advento dos aplicativos de encontro mesmo para uma noite de amor, eram a mistura perfeita de água e óleo. Ou seja, não se misturavam. Às vezes, quando havia eclipse total do sol e da lua, redescobriam que a cama não é só para se babar o lençol. E brincavam de cabaninha, índios antropófagos a comerem o bispo Sardinha, misantropos que haviam abdicado dos brocados de se esconder do mundo. Nesses dias (raros dias no calendário provinciano), os vizinhos estranhavam. Não raro, chamavam a polícia para ver o que acontecia. “Eu juro, teve gemido pra lá de alto, seu delegado”, falava a Dona Jacira, viúva que há muito esquecera os verbos foder ou transar (amar para os mais pudicos).
Na verdade, Caio e Carol eram a síntese da antítese dos tempos atuais. Sangue não tinha no relacionamento. Se muito nos ciclos menstruais da Carol. Para Caio, talvez quando deixava cair no chão um gole de vinho chileno e enchia o chinelo de líquido louco. A semana, traquitana, passava no calendário dentro do armário fechado a sete ou oito chaves (pra garantir que não exigiria muito contato de olhos estrábicos). No fim, no repertório sem fim do samba enredo da vida, os dois saíam de passistas, compositores e autores da trilha que percorre o sambódromo da nascença ao derrear da sina.
-- Mar ou interior?
-- Quer saber, tanto faz ou os dois...
Para quem não esperava tal concluir, venderam o apertamento na Zona Norte, rasparam as poupanças parcas e se largaram nas danças em andanças tresloucadas e tantas, nunca poucas. Ao espocar do novo ano viram as Muralhas da China, nadaram e quase se afogaram nas praias da Tailândia, comeram barbatanas de tubarão em restaurante típico de Tóquio achando que era sopa de mexilhão. Mas quem, diante daquele cardápio ao contrário, acertaria a pedida. Por fim, deliciaram-se de comida de rua na Índia.
-- Engov ou Imosec?
-- Os dois. Ou melhor, tanto faz...
quinta-feira, 30 de outubro de 2025
Dia azul e nada de brancura da nuvem
Por Ronaldo Faria
terça-feira, 28 de outubro de 2025
Tarde com Arthur Verocai
Por Ronaldo Faria
“De algum modo o texto tinha que começar”, pensou Edgar. Afinal, a ideia inicial não surgia. Que venha ao menos uma palavra. Veio blasfêmia. E olha que lá estavam todos os ingredientes para delirar: vinho, música, solidão, tela branca e desejo de escrever. “Mas blasfêmia é o melhor modo de se começar um texto? Será que não há outro pretexto? Outro destrinchar de palavras, emoções e insolventes soluções?” Não tinha. Não teve. E se a coisa já tinha começado a rolar, que assim fosse o alarde daqui para frente.
A palavra inicial fora dita por Ana Rita ao ser indagada do atraso na chegada. Que mal havia em ser no ato quatro da madrugada? “Não posso ter ficado no ponto de ônibus a esperar o Circular?” Até podia, mas mesmo com o sistema complicado pela queima de veículos pelo tráfico, era meio difícil acreditar que entre as 18 horas e quatro da manhã não tenha passado nenhum ônibus. Ou um Uber sequer. “Pois é, Edgar, o Rio está uma bosta pra se morar! Vou dormir! Passar bem.”
-- Blasfêmia!
Bem que ele tinha pensado diversas vezes em se mudar para o Interior. Alguma cidade pequena, dessas em que todo mundo se conhece, fala mal uns dos outros, sabe-se de cada detalhe da vida alheia, se acorda com os galos e se dorme com as galinhas. Volta e meia, num ou noutro dia, a missa dominical, o almoço em família, quem sabe o enterro do velho que há muito vivia com um câncer que já tinha ganho até apelido – Amigão. “Certamente lá não tem guerra civil por domínio de território. Talvez, decerto, a família tradicional do lugar há muito já tenha matado os outros que pudessem lhes tomar o poder. Tudo findo com um famoso vão se foder.” Para Edgar, o importante era voltar a conquistar Ana Rita. E podia ser na Mongólia, Transilvânia ou Cochinchina. Até São Pedro do Mato Dentro, seja onde no mapa do planeta ela possa geograficamente estar, servia.
Na rua, que acordara com um tiroteio de balas traçantes, a radiopatrulha passa em velocidade com a sirene ligada. O batalhão sequer tinha dormido no baile de corpos alvejados, dilacerados ou caídos. Uns poucos heróis e heroínas que não podem sequer dizer ao patrão ou patroa que no bairro o bicho está pegando, sob a pena de não ter mais emprego, rezam aos santos para que nenhuma bala perdida consiga achá-los. O português da padaria, que baixa a porta para evitar saque, xinga o dia que pegou a barca para atravessar o Atlântico. “O puto do Cabral podia ter descoberto o Canadá. Agora eu estaria em Montreal, ô pá!” Mas, para Edgar, o importante é toda essa balburdia não acordar Ana Rita. Certamente, para o resto das horas que vem, um sono da amada é a melhor receita e solução.
-- Blasfêmia!
Aos poucos as horas sem ponteiros no relógio digital revoam no ar atemporal. E pombas voam e defecam, roupas nos varais empoeirados secam, repórteres de noticiários sanguinolentos tentam entrevistar quem resiste em morar na Faixa de Gaza nacional onde nem gaze dá conta de tantos feridos. Edgar agora vai na cozinha fazer o café para Ana Rita. Ela levanta recuperada e lívida, com seu corpo desnudo a rebrilhar na luz que entra pela janela do segundo andar. “Desculpa por antes. Eu estava estressada. Sabe lá o que é ficar horas num ponto de ônibus cheio de gente desesperada pra voltar?” Edgar sabia. “Seu café está pronto. Fiz do jeito que você gosta: forte.” Às onze da manhã o dia parece ter recuperado um pouco da sua etérea paz. Afinal, mesmo traficante, miliciano e PM têm que descansar. O bairro redescobre que pode sonhar e quem sabe até mudar de lugar. Virar Zona Sul e lumiar. Blasfêmia? Talvez. Ou essa também já não há. Edgar e Ana Rita enfim juntam as bocas, deitam na cama refeita de casal e descobrem que a vida é um mero segundo irreal. Entre pernas, afagos e louças na pia, são um final contundente e real a blasfemar.
domingo, 26 de outubro de 2025
Duke Ellington & John Coltrane: lirismo, sofisticação e puro jazz *
Colocar esses dois gigantes num estúdio não deve ter sido tarefa difícil. Ambos, em 1963, já eram ícones do jazz. Duque, símbolo da elegância orquestral e da tradição jazzística. Coltrane, o explorador inquieto e já referência da força transformadora do jazz. O resultado só podia ser uma obra que, mesmo mais de seis décadas depois, continua atual para os amantes do gênero.
O lançamento se deu em 1963, mas o disco foi gravado um ano antes, em Nova York. E, claro, para fazer a "cozinha" desses dois gênios, foi escalado um time mais que de respeito: o contrabaixista Jimmy Garrison e o baterista Elvin Jones, do quarteto de Coltrane, e o contrabaixista Aaron Bell e o baterista Sam Woodyard, da orquestra de Ellington. Sim, são dois baixistas e dois bateristas e eles se alternam nas faixas o que indica uma proposta do álbum: um verdadeiro encontro de linguagens. Ellington, com sua escola de swing refinado, de toques firmes ao piano e sensibilidade para compor. Coltrane, com sua sonoridade densa, espiritual e ascendente.
A faixa de abertura, "In a Sentimental Mood" (I. Mills, D. Ellington e M. Kurtz), é uma das mais famosas da carreira de ambos. Sua introdução é figurinha carimbada em centenas de programas de jazz pelo mundo. A canção, composta em 1935, ganha nova vida com o sax tenor de Coltrane. O piano dialoga com delicadeza, sustentando acordes que parecem respirar junto com o sopro de Coltrane. E, curioso, Ellington, que poderia soar meio antiquado frente à vanguarda do saxofonista, mostra-se absolutamente moderno.
"Big Nick" (John Coltrane), a terceira faixa, diminui o frenesi da anterior com uma leveza surpreendente. Soa até meio infantil, pois trata-se de um tema simples que Ellington acolhe com humor e elegância. Aqui, o universo de ambos se entrelaça proporcionando um equilíbrio entre complexidade e simplicidade e provando o acerto do encontro.
A quarta faixa, Steve (Duke Ellington) traz o maestro impondo seu piano suave e decidido, com notas econômicas, mas criando um universo em que Coltrane penetra com tranquilidade, aumentando o sentimento de plenitude que o conjunto sonoro nos oferece.
"My Little Brown Book" (Billy Strayhorn) é uma balada de beleza serena, em que Coltrane exibe seu fraseado mais introspectivo, repleto de nuances. O piano de Ellington, com acordes espaçados, cria uma atmosfera de melancolia refinada. É um diálogo entre dois poetas do jazz, trazendo emoção em seus movimentos sonoros.
Em "Angelica" (Dduke Ellington) retoma-se a veia rítmica característica do autor. O tema, originalmente intitulado "Purple Gazelle", exibe uma vitalidade dançante, conduzida por Aaron Bell no baixo e Sam Woodyard na bateria. Coltrane, por sua vez, não rompe com a estrutura, mas lhe dá uma espécie de luz.
A última faixa do disco é "The Feeling of Jazz" (Duke Ellington, Boby Troup e George Simon) nos traz a alegria de tocar, o prazer da improvisação e o respeito mútuo, ou seja, tudo que o jazz exprime entre os músicos e que o deixa tão agradável aos ouvidos. É também a perfeita sincronia entre gerações que a música em geral e o jazz em particular costumam proporcionar.
Como eu disse, sessenta e dois anos depois, o disco Duke Ellington & John Coltrane permanece um dos encontros mais nobres da história da música. Um diálogo entre o velho e o novo unidos pela qualidade e respeito à música.
O disco pode ser encontrado nos bons sites do ramo (no Mercado Livre há vários com preços bem variados) e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=sCQfTNOC5aE&list=PLTIb4fKCEAeuaUYxKkDz7K7OvElI2s_Se .
sexta-feira, 24 de outubro de 2025
Saudades saudosas e perdidas
quarta-feira, 22 de outubro de 2025
João e Maria
Por Ronaldo Faria
terça-feira, 21 de outubro de 2025
Adoniran, nosso poeta
Por Edmilson Siqueira
Evidentemente Noel é uma espécie de tesouro nacional do samba, mas Adoniran, tenho certeza, não fica devendo muito ao genial artista carioca. E vou parar por aqui essas tímidas comparações, acho os dois são geniais e vou partir para o que interessa: o disco "Adoniran, O Poeta do Bexiga", lançado em 1990 pela Som Livre, em meio às comemorações dos 80 anos que Adoniram faria neste ano, ele que nos deixou em 1982, aos 72 anos.
O nome do bairro, que fica na região da Bela Vista em São Paulo, tem sido grafado como "Bixiga". Porém, na capa do disco está "Bexiga", que é a grafia original da palavra.
A produção foi caprichada, afinal a Som Livre ainda detinha grandes poderes no meio fonográfico e podia trazer nomes famosos e bons para uma justa homenagem. Assim, CBS, BMG-Ariola, WEA, EMI-Odeon e RGE cederam artistas para o projeto. Lançado primeiramente como LP depois em CD, o disco deu liberdade para que os intérpretes colocassem sua marca em cada música. Das dez músicas, apenas em três delas Adoniran tem parceiros, que serão devidamente assinalados.
A primeira faixa é quase clássica. Um programa da TV Bandeirantes juntou ninguém menos que Elis Regina e Adoniram passeando pelo Bexiga. Entre as interpretações dos dois, essa foi realizada num boteco: trata-se de "Tiro ao Álvaro", uma parceira de Adoniran com Oswaldo Moisés. Impecável, com a dose certa de humor e lirismo que os versos do poeta tanto exalavam.
Logo a seguir, a interpretação mais que pessoal - e excelente, como era de se esperar - de João Bosco para "Saudosa Maloca". João inicia a música com versos de "Sampa" (Caetano Veloso), aquelas duas frases sobre a grana que São Paulo ergue e destrói coisas belas, referência mais que exata sobre a "maloca" dos amigos derrubada pelo "progresso".
A terceira faixa, "Samba do Arnesto" parece, em seu início, que será mais uma interpretação dos grandes "Demônios da Garoa". Só que, após a introdução, quem aparece cantando o famoso samba é ninguém menos que Rita Lee. E ela não deixa por menos, cantando muito bem e brincando com a parte falada da música.
segunda-feira, 20 de outubro de 2025
Com João Gilberto e Stan Getz
Por Ronaldo Faria
-- Sabe, hoje descobri meio abobalhado e a falar sozinho na rua que, se estamos vivos, foda-se o resto. No final, lá no finalzinho mesmo, quando um caixão apertado será a última morada e a derradeira namorada, o que sobrar vai soçobrar queira você ou não. Logo, que possamos viver e ver a beleza que cada renascer nos dá.
Uma pomba desavisada e desqualificada de teorias existenciais, resolve por fim aos devaneios de verão e se alivia desanuviada na cabeça do sonhador.
-- Puta que pariu, com tanto lugar pra cagar foi logo me escolher?
Dedução e revolta inoperantes diante do voo do pássaro que resolve agora repor o espaço no estômago vazio.
Mas no asfalto que segue paralelo ao mar ninguém quer saber de pombas, devaneios ou histórias que se perderão no próximo luar. O lugar é de apenas crer que ainda vale, por hora, cada respirar. Mães pungentes passeiam com seus bebês de colo, colírios se espalham nos olhos vermelhos de sono e ressaca dos boêmios, coliformes disputam com os peixes as redes dos pescadores da colônia do Posto 6. A babá, vestida no seu branco indefectível à espera da golfada do rebento da patroa, flerta com o vendedor de picolé. O novo prédio que sobe onde antes era uma residência mostra que a excrecência da vida está nas contas bancárias que separam os operários esquálidos dos futuros moradores refratários da beira-mar. Numa rua próxima a igreja gótica diz que é o momento propício do pecador se confessar. No estrupício sem senso ou lógica, o cliente num inglês abrasileirado pede outra dose de vodca, com gelo e limão. Afinal, de verdinha em verdinha se conquista a sofreguidão.
-- Ô Valdemar, manda outra caipirinha sem pinga pro gringo da mesa quatro que logo vai estar de quatro!
Descido da Ladeira dos Tabajaras, o menino empina a sua pipa em gestos de maestria sensorial. E o Rio, no seu balanço natural, segue à espera da vida.
sábado, 18 de outubro de 2025
Na bazófia, seja isso o que tiver de ser
Por Ronaldo Faria
quinta-feira, 16 de outubro de 2025
Papo etílico e líquido
terça-feira, 14 de outubro de 2025
Com o sempre Itamar Assumpção
Por Ronaldo Faria
-- Você será sempre meu?
-- E você será sempre minha?
As perguntas, como diria o poeta preto e negro, feito mel, laranja e manjericão, foram respondidas com urdidas transas trançadas de pernas, braços e mãos. Poemas escritos e proscritos, coisa de solicitude. A palavra era o que menos interessava, num quarto diminuto ou em Java. Havia mais emoções a viver.
-- Foi legal acordar do nada e trepar com você. Jogar a cama tresloucada no virar do quarto. Parar na chegada da sala.
-- Com certeza. Faço das suas palavras e lavras as minhas...
No aninho que o descaminho dá desde que Caminha escreveu a carta para o Rei de Portugal, ambos esquecem o que é falar e se calam nos augúrios telúricos que dois corpos sabem quando querem se entortar. Afinal, disse o poeta preto e negro, a natureza está morta e decora a noite torta.
-- Ficaremos pra sempre?
-- Com certeza. Até que o destino ou um Alzheimer nos dê o final de tudo.
Para eles, rima ou faça-se lá o que tiver de rever, a terna eternidade de nada ter, se bastou na lambuzada de nunca ser.
-- Quando poderemos reviver?
-- Que pergunta mais difícil que não sei responder...
Muitos e poucos metros abaixo e acima, vizinhas velhas e decrépitas, dessas que reclamam ao mais silencioso gozar, ligam no interfone para fazer tudo encerrar. O mundo, doentio e frígido, sem sofreguidão do amar, longe do mar, se transforma em simplório colocar de um frango, charuto e marafo no despacho da esquina mais próxima e próspera.
-- Mandamos todos tomarem no meio do cu agora ou depois?
-- Vamos esperar o sol chegar. Deixemos eles sofrerem com o tesão que não têm mais...
domingo, 12 de outubro de 2025
Paul Desmond & Gerry Mulligan: um delicado duelo de sax*
Por Edmilson Siqueira
Entre as diversas parcerias que o jazz gerou ao longo do século XX, poucas conseguiram unir sofisticação, lirismo e inventividade de maneira tão natural quanto a de Paul Desmond e Gerry Mulligan. O álbum "Two of a Mind", gravado em junho de 1962, em Nova York, é um exemplo raro de diálogo musical entre dois gigantes do cool jazz, que dispensam piano, recorrem a arranjos enxutos e fazem da interação o verdadeiro centro da obra.
Gerry Mulligan, por sua vez, havia construído uma reputação sólida com seu sax barítono e também como arranjador e líder de grupos que desafiavam convenções, inclusive no formato sem piano que consagrou no famoso quarteto com Chet Baker nos anos 50. E participou, entre 1968 e 1972, do Dave Brubeck Quartet.
O conceito de "Two of a Mind" partia justamente do espírito de conversação. Não há aqui disputas de ego ou demonstrações de virtuosismo em excesso. Ou seja, o "duelo" que cito no título é, claro, em sentido figurado, pois Mulligan e Desmond se encontram no meio do caminho: o sax baixo aveludado, mas cheio de corpo, e o alto cristalino, quase vocal, entrelaçam-se como dois contadores da mesma história, mas sob perspectivas diferentes. A ausência de piano abre espaço para que a textura dos sopros ganhe ainda mais destaque. As linhas se completam, criam contrapontos e se sustentam sobre bases de baixo e bateria discretas, mas essenciais.
A faixa-título, “Two of a Mind” (Paul Desmond) que fecha o lado A do LP e que, no CD é a terceira faixa, já deixa claro o espírito do álbum. O tema é simples, mas sua execução se desdobra em improvisos que parecem compassos de uma conversa espirituosa. Dá a sensação de estar diante de um diálogo íntimo.
Esse clima também está presente em “All the Things You Are” (Jerome Kern e Oscar Hammerstein II) que é a música que abre o disco e é um dos standards mais revisitados da tradição jazzística. Mulligan e Desmond exploram a harmonia conhecida de forma criativa, reinventando o tema sem jamais perder a leveza.
A segunda música é o clássico "Stardust" (Hoagy Carmichael e Motchel Parish) que, com seus 8 minutos e 20 segundos, é a faixa mais longa do disco. Nela, o diálogo entre os dois saxofonistas se estende maneira harmoniosa, com os papéis de solista passeando entre os dois, acompanhados de uma bateria discreta e um contrabaixo esperto, carregado de ritmo e harmonia.
Outro destaque é “Blight of the Fumble Bee” (Gerry Mulligan), a quarta faixa. É uma peça espirituosa, cheia de humor, em que a destreza técnica aparece sempre a serviço da musicalidade, nunca como exibição gratuita.
Já em “The Way You Look Tonight” (Dorothy Fields e Jerome Ker), a quinta faixa, os dois saxofonistas exploram a melodia de Jerome Kern com elegância, valorizando o lirismo do tema e permitindo que o ouvinte perceba a profunda sintonia que compartilhavam.
As sessões que originaram Two of a Mind foram feitas com formações variadas, incluindo músicos como Jim Hall na guitarra, John Beal e Joe Benjamin no contrabaixo, além de bateristas como Connie Kay e Mel Lewis. Cada combinação trouxe uma nuance diferente ao som do disco, mas a identidade central permaneceu: o encontro entre o saxofone alto e o barítono, dois instrumentos contrastantes que aqui se mostram complementares.
Vale lembrar também que "Two of a Mind", o disco, também é herdeiro direto do cool jazz, movimento que teve Mulligan como um de seus principais arquitetos desde os anos 50. A estética da suavidade, do balanço contido e da clareza melódica encontram em Desmond um intérprete natural e se harmoniza harmoniza-se com a capacidade de Mulligan de explorar contrapontos e improvisos.
Lançado originalmente pela RCA Victor, o álbum recebeu elogios da crítica e tornou-se um clássico cultuado por apreciadores do jazz mais contemplativo e sofisticado.
O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=LDjTc8GzstQ&list=PLvxWibFr0wiJmG_PfoH_rWJrssctL7MOL .
sexta-feira, 10 de outubro de 2025
No corte da epistemologia da noite noir
Por Ronaldo Faria
quarta-feira, 8 de outubro de 2025
Com Paulinho Pedra Azul
A tarde, que tantos alguéns já juntou e deles se desfez, dá um até logo ao bêbado da esquina, ao prólogo do amor, ao surgir que urge cheio de esperança no primeiro beijo. Diz aos descrentes dementes da ilusão dessa tal felicidade que voltará renovada quando o bem-te-vi retornar às flores e as abelhas perderem o medo de morrer. Simplória, faz história de si mesma.
À tarde cantam os poetas que pouco a viram, aqueles que se chamam Porfírio, os estetas das cores do quase anoitecer, estafetas da fé. Choram amantes errantes, as crianças sem parque, o baque de mais um dia se perder. Proseiam os velhos nos bancos de praças, gorjeiam os que sabem gorjear e esquentam seus futuros jantares os solitários de noites sem promiscuidades.
À tarde também se entregam sem tréguas a nova amante que se atira na noite chegada com as chagas nunca fechadas, as fachadas que agora se iluminarão de neons, os casais causais que se miram nos pontos de ônibus e nas mesas de bares. Na quase blasfêmia daquilo que se fez, o poeta emerge de si e se afoga na saudade do dia em que teve qualquer mero e simples prazer.
Mas a tarde, a vociferar angústia às feras que acordarão aprisionadas ao nada que a esbórnia da madrugada traz, não quer nem saber. Fez-se, veio, viu, desfez, refez e findou. Agora, como o sorvete de amora que cai no chão, apenas escorre no esgoto do tempo. Ausente de vento, morta em lamento e unguento, apenas ressonará as próximas horas a achar que viveu até demais.
Na viagem
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