segunda-feira, 3 de novembro de 2025

No luar sem fogo

Por Ronaldo Faria


Há uma grande lua lá fora. A chamam de Lua de Sangue, mas é apenas dourada. Não há vermelhidão qualquer ao seu redor. Logo, não existe sangue a escorrer pelas suas bordas. Nas entranhas, saber-se-á. Talvez sim, talvez não. Talvez São Jorge tenha, ao menos hoje, esquecido de transpassar com a sua lança o inexistente dragão. Quem sabe algum poeta ou amante tenha pedido um momento de paz em meio à tristeza que permeia o lugar...
Assim estava Samuel, a sumir de si para viver o sonho de felicidade no meio de tanto concreto da cidade. Na sua idade, há muito depois de qualquer cabo onde ainda haja esperança, ele apenas segue, cego de ilusão, entre esquinas desconhecidas que parecem a cada dia se transformar num limbo sem par. Um ou outro poste sequer tem mais a luminária acesa. Escuridão e claridade aos poucos viram somente a semente de algo em tons que brilham sob a lua e seu clarão ultramar.
Insone, a ouvir um violoncelo que soa solitário na janela entreaberta, entorpecido de saudades mil, lembranças perdidas e desejos que irão com ele à última morada que nada mais é do que as chamas em brasa, Samuel relembra o sonho num bordel. Cercado de belas mulheres, todas lúdicas e loucas, como ele, a dançar boleros que alguém, numa ravina, dedicou a Ravel. Bêbado, (in)feliz na sua loucura, a beber goles de luxúria, era somente aquilo que tinha que ser. E nesse momento nem precisa de mais nada. O tempo, as células que por algum motivo decidem que é hora de morrer, tomam seu tempo.
-- Que o destino não me apronte mais essa. Lucrécia, não! Se ela se for, que razão mais haverá?
Entregue ao nada, extirpado das partes mais lúcidas que ainda o habitam na forma de aluguel em que se é despejado por falta de pagamento, ele apenas olha a lua que se ergue soberba para os amantes e lunáticos dos hospícios e pede, sem verve, que o destino rompa todo o seu desatino e preserve a amada de sofrer. Sem prosas e versos, arrependimentos e credos, ele é só um ser só a observar a lua que sobe cada vez mais para sumir no fim do céu. Ou, quiçá, acordar com a claridade do sol que a deixou de ninar e aninhar. Na rua, em alta velocidade, a cidade segue seu rumo e destino.
 
(Ao som de violoncelos)

sábado, 1 de novembro de 2025

No cardápio que pode incluir batráquio (a ouvir e descobrir Luca Argel)

Por Ronaldo Faria


-- Chinês. Tailandês ou Japonês?
A pergunta era fácil e difícil de responder.
-- O que você quiser comer. Pra mim, tanto faz.
Caio e Carol eram assim: mil opções a escolher sempre seguidas de um tanto faz. Um casal simples e ao mesmo tempo nunca loquaz. Cruzaram-se pela primeira vez na madrugada que a lua tragava sem dó. Na praça, onde tocaram as mãos que juntariam anos depois num altar, havia um ou dois bêbados (um deles a vomitar entre as rosas do pomar), luminárias de postes queimadas e a ronda da guarda noturna que, soturna, protegia os poucos que chegavam ou iam para a orgia. Casados há pouco, cansados de suas solidões, castrados de poder seguir seu mundo próprio desde então, iam a correr esquinas e sinas inapropriadas. Agora, até para decidir que cardápio pedir no IFood da vida era uma partilha de desejos e papo profundo.
-- Você sabe que um é mais apimentado e o outro mais quase vegano?
-- Sei.
-- Mesmo assim tanto faz?
-- Sim.
-- Então tá. Vamos de pizza meia calabresa e meia milho verde só parar variar.
O solilóquio estava decidido. O descuido ou o relaxo estavam enfim cravados.
-- Deu R$ 78,80. Débito ou crédito?
-- Tanto faz...
Casal que se casou quando a moda era separar, com o advento dos aplicativos de encontro mesmo para uma noite de amor, eram a mistura perfeita de água e óleo. Ou seja, não se misturavam. Às vezes, quando havia eclipse total do sol e da lua, redescobriam que a cama não é só para se babar o lençol. E brincavam de cabaninha, índios antropófagos a comerem o bispo Sardinha, misantropos que haviam abdicado dos brocados de se esconder do mundo. Nesses dias (raros dias no calendário provinciano), os vizinhos estranhavam. Não raro, chamavam a polícia para ver o que acontecia. “Eu juro, teve gemido pra lá de alto, seu delegado”, falava a Dona Jacira, viúva que há muito esquecera os verbos foder ou transar (amar para os mais pudicos).
Na verdade, Caio e Carol eram a síntese da antítese dos tempos atuais. Sangue não tinha no relacionamento. Se muito nos ciclos menstruais da Carol. Para Caio, talvez quando deixava cair no chão um gole de vinho chileno e enchia o chinelo de líquido louco. A semana, traquitana, passava no calendário dentro do armário fechado a sete ou oito chaves (pra garantir que não exigiria muito contato de olhos estrábicos). No fim, no repertório sem fim do samba enredo da vida, os dois saíam de passistas, compositores e autores da trilha que percorre o sambódromo da nascença ao derrear da sina.
-- Mar ou interior?
-- Quer saber, tanto faz ou os dois...
Para quem não esperava tal concluir, venderam o apertamento na Zona Norte, rasparam as poupanças parcas e se largaram nas danças em andanças tresloucadas e tantas, nunca poucas. Ao espocar do novo ano viram as Muralhas da China, nadaram e quase se afogaram nas praias da Tailândia, comeram barbatanas de tubarão em restaurante típico de Tóquio achando que era sopa de mexilhão. Mas quem, diante daquele cardápio ao contrário, acertaria a pedida. Por fim, deliciaram-se de comida de rua na Índia.
-- Engov ou Imosec?
-- Os dois. Ou melhor, tanto faz...

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Dia azul e nada de brancura da nuvem

 Por Ronaldo Faria 


Entre um acorde e outro, às vezes lúcido e outras tantas louco, Malaquias – Quias para os íntimos – caminhava à beira-mar. A tarde ainda não entardecia num inverno que nenhuma nuvem queria pintar de branco ou solar nostalgia. O frio, nem gélido e nem longevo dos casacos cheirando a guardados, brincava de passear nas ondas rasas e poucas a cobrir de toucas as cabeças e moleiras das crianças que, deitadas nos carrinhos de bebê, bebem suas primeiras emoções de paz. Os corpos jovens de mulheres e rapazes correm no calçadão à espera de logo mais se juntarem desnudos aos acúmulos do amar. No Morro Dois Irmãos, a pedra milenar é o próprio chão.
Quias, suburbano de nascença e filho de Xangô, que brindou os santos e guias nos terreiros da vida, lembrava de Sandra Lúcia, mistura de índia e sorriso que se espalha e se espraia agora na praia que brinca de luzir o acordar e amanhecer no meio do dia. Na cândida cadência que se apropria do dia, poder estar vivo é a própria orgia. Nela, Quias redescobre os caminhos tardios a cruzar no Opala as estradas transversas de mãos a cobrirem a paixão que se desenrola debaixo da toalha. “Cacete, gozei! E agora?” Hoje, ele ri da cara da jararaca da quase sogra que no banco da frente não tinha visto a cena que o asfalto traduz.
-- Por onde andará a sanha das histórias que o poema não soube detalhar?
Nas sombras que as árvores dão, naquilo que antes fora apenas a chácara de um francês, Quias caminha até a subida da Niemayer. Logo ele chega ao mirante. Dele, vê-se a vista que sobreavisa que o mundo é para poucos. “Mas qual, isso sempre não foi assim? Uns matam o elefante, mas poucos podem usar seus dentes de marfim.” O início da tarde, porém, ainda está lindo e lúcido. Não deixa lugar a divagações sem noção. Talvez um chope, um pastel de carne, a foto de celular que vai minguar na pouca memória do aparelho. Quias prefere não pensar muito. É hora de retomar a estrada: caminhada, metrô, interligação, trem e novos passos sem dó. “Só queria mesmo ter dado o último beijo além daquele cheio de lágrimas dos dois.” Na descida, um moleque pede um troco para comer o que puder pagar. “Certo, mas não vai gastar com bala, sorvete ou manjar.” A vida, sabe Quias, não foi feita para se empanturrar de guloseimas. Na feira perto, o dono da barraca de peixes grita que a sardinha é fresca, “quase um destaque de escola de samba ou dos bailes de gala do Copa nos Anos 70”. Sem vontade de sorrir, Malaquias apenas relembra que gostaria viver e estar de novo nesses anos nos braços e lábios da amada a desfilar. Para ele, o subúrbio era o cadafalso e o paraíso num mesmo lugar.
 
(Ainda com Arthur Verocai)

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Tarde com Arthur Verocai

 Por Ronaldo Faria


 -- Blasfêmia!
“De algum modo o texto tinha que começar”, pensou Edgar. Afinal, a ideia inicial não surgia. Que venha ao menos uma palavra. Veio blasfêmia. E olha que lá estavam todos os ingredientes para delirar: vinho, música, solidão, tela branca e desejo de escrever. “Mas blasfêmia é o melhor modo de se começar um texto? Será que não há outro pretexto? Outro destrinchar de palavras, emoções e insolventes soluções?” Não tinha. Não teve. E se a coisa já tinha começado a rolar, que assim fosse o alarde daqui para frente.
A palavra inicial fora dita por Ana Rita ao ser indagada do atraso na chegada. Que mal havia em ser no ato quatro da madrugada? “Não posso ter ficado no ponto de ônibus a esperar o Circular?” Até podia, mas mesmo com o sistema complicado pela queima de veículos pelo tráfico, era meio difícil acreditar que entre as 18 horas e quatro da manhã não tenha passado nenhum ônibus. Ou um Uber sequer. “Pois é, Edgar, o Rio está uma bosta pra se morar! Vou dormir! Passar bem.”
-- Blasfêmia!
Bem que ele tinha pensado diversas vezes em se mudar para o Interior. Alguma cidade pequena, dessas em que todo mundo se conhece, fala mal uns dos outros, sabe-se de cada detalhe da vida alheia, se acorda com os galos e se dorme com as galinhas. Volta e meia, num ou noutro dia, a missa dominical, o almoço em família, quem sabe o enterro do velho que há muito vivia com um câncer que já tinha ganho até apelido – Amigão. “Certamente lá não tem guerra civil por domínio de território. Talvez, decerto, a família tradicional do lugar há muito já tenha matado os outros que pudessem lhes tomar o poder. Tudo findo com um famoso vão se foder.” Para Edgar, o importante era voltar a conquistar Ana Rita. E podia ser na Mongólia, Transilvânia ou Cochinchina. Até São Pedro do Mato Dentro, seja onde no mapa do planeta ela possa geograficamente estar, servia.
Na rua, que acordara com um tiroteio de balas traçantes, a radiopatrulha passa em velocidade com a sirene ligada. O batalhão sequer tinha dormido no baile de corpos alvejados, dilacerados ou caídos. Uns poucos heróis e heroínas que não podem sequer dizer ao patrão ou patroa que no bairro o bicho está pegando, sob a pena de não ter mais emprego, rezam aos santos para que nenhuma bala perdida consiga achá-los. O português da padaria, que baixa a porta para evitar saque, xinga o dia que pegou a barca para atravessar o Atlântico. “O puto do Cabral podia ter descoberto o Canadá. Agora eu estaria em Montreal, ô pá!” Mas, para Edgar, o importante é toda essa balburdia não acordar Ana Rita. Certamente, para o resto das horas que vem, um sono da amada é a melhor receita e solução.
-- Blasfêmia!
Aos poucos as horas sem ponteiros no relógio digital revoam no ar atemporal. E pombas voam e defecam, roupas nos varais empoeirados secam, repórteres de noticiários sanguinolentos tentam entrevistar quem resiste em morar na Faixa de Gaza nacional onde nem gaze dá conta de tantos feridos. Edgar agora vai na cozinha fazer o café para Ana Rita. Ela levanta recuperada e lívida, com seu corpo desnudo a rebrilhar na luz que entra pela janela do segundo andar. “Desculpa por antes. Eu estava estressada. Sabe lá o que é ficar horas num ponto de ônibus cheio de gente desesperada pra voltar?” Edgar sabia. “Seu café está pronto. Fiz do jeito que você gosta: forte.” Às onze da manhã o dia parece ter recuperado um pouco da sua etérea paz. Afinal, mesmo traficante, miliciano e PM têm que descansar. O bairro redescobre que pode sonhar e quem sabe até mudar de lugar. Virar Zona Sul e lumiar. Blasfêmia? Talvez. Ou essa também já não há. Edgar e Ana Rita enfim juntam as bocas, deitam na cama refeita de casal e descobrem que a vida é um mero segundo irreal. Entre pernas, afagos e louças na pia, são um final contundente e real a blasfemar.

domingo, 26 de outubro de 2025

Duke Ellington & John Coltrane: lirismo, sofisticação e puro jazz *

Por Edmilson Siqueira


Lançado em 1963 pelo selo Impulse!, o disco Duke Ellington & John Coltrane é um desses encontros que fascinam pela qualidade não só dos músicos envolvidos, mas pela maneira como dois mundos distintos do jazz se encontram e se harmonizam num diálogo inventivo e generoso.  
Colocar esses dois gigantes num estúdio não deve ter sido tarefa difícil. Ambos, em 1963, já eram ícones do jazz. Duque, símbolo da elegância orquestral e da tradição jazzística. Coltrane, o explorador inquieto e já referência da força transformadora do jazz. O resultado só podia ser uma obra que, mesmo mais de seis décadas depois, continua atual para os amantes do gênero.   
O lançamento se deu em 1963, mas o disco foi gravado um ano antes, em Nova York. E, claro, para fazer a "cozinha" desses dois gênios, foi escalado um time mais que de respeito: o contrabaixista Jimmy Garrison e o baterista Elvin Jones, do quarteto de Coltrane, e o contrabaixista  Aaron Bell e o baterista Sam Woodyard, da orquestra de Ellington. Sim, são dois baixistas e dois bateristas e eles se alternam nas faixas o que indica uma proposta do álbum: um verdadeiro encontro de linguagens. Ellington, com sua escola de swing refinado, de toques firmes ao piano e sensibilidade para compor.  Coltrane, com sua sonoridade densa, espiritual e ascendente. 
A faixa de abertura, "In a Sentimental Mood" (I. Mills, D. Ellington e M. Kurtz), é uma das mais famosas da carreira de ambos. Sua introdução é figurinha carimbada em centenas de programas de jazz pelo mundo. A canção, composta em 1935, ganha nova vida com o sax tenor de Coltrane. O piano dialoga com delicadeza, sustentando acordes que parecem respirar junto com o sopro de Coltrane. E, curioso, Ellington, que poderia soar meio antiquado frente à vanguarda do saxofonista, mostra-se absolutamente moderno.  


A segunda faixa, "Take the Coltrane" (Duke Ellington) foi composta especialmente para o disco. Nela, o piano é quem tem um papel mais ousado, deixando ao sax um movimento rítmico vibrante. A faixa é um dos momentos mais swingados do álbum, com Elvin Jones impulsionando o grupo em uma pulsação firme e orgânica. Coltrane responde com frases rápidas e cheias de energia, produzindo um diálogo como se os dois fossem velhos conhecidos. Coisas de gênios da música, claro.  
"Big Nick" (John Coltrane), a terceira faixa, diminui o frenesi da anterior com uma leveza surpreendente. Soa até meio infantil, pois trata-se de um tema simples que Ellington acolhe com humor e elegância. Aqui, o universo de ambos se entrelaça proporcionando um equilíbrio entre complexidade e simplicidade e provando o acerto do encontro. 
A quarta faixa, Steve (Duke Ellington) traz o maestro impondo seu piano suave e decidido, com notas econômicas, mas criando um universo em que Coltrane penetra com tranquilidade, aumentando o sentimento de plenitude que o conjunto sonoro nos oferece.  
"My Little Brown Book" (Billy Strayhorn) é uma balada de beleza serena, em que Coltrane exibe seu fraseado mais introspectivo, repleto de nuances. O piano de Ellington, com acordes espaçados, cria uma atmosfera de melancolia refinada. É um diálogo entre dois poetas do jazz, trazendo emoção em seus movimentos sonoros.  
Em "Angelica" (Dduke Ellington) retoma-se a veia rítmica característica do autor. O tema, originalmente intitulado "Purple Gazelle", exibe uma vitalidade dançante, conduzida por Aaron Bell no baixo e Sam Woodyard na bateria. Coltrane, por sua vez, não rompe com a estrutura, mas lhe dá uma espécie de luz.  
A última faixa do disco é "The Feeling of Jazz" (Duke Ellington, Boby Troup e George Simon) nos traz a alegria de tocar, o prazer da improvisação e o respeito mútuo, ou seja, tudo que o jazz exprime entre os músicos e que o deixa tão agradável aos ouvidos. É também a perfeita sincronia entre gerações que a música em geral e o jazz em particular costumam proporcionar.  
Como eu disse, sessenta e dois anos depois, o disco Duke Ellington & John Coltrane permanece um dos encontros mais nobres da história da música. Um diálogo entre o velho e o novo unidos pela qualidade e respeito à música.  
O disco pode ser encontrado nos bons sites do ramo (no Mercado Livre há vários com preços bem variados) e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=sCQfTNOC5aE&list=PLTIb4fKCEAeuaUYxKkDz7K7OvElI2s_Se . 

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Saudades saudosas e perdidas

 Por Ronaldo Faria


Mel, melaço, cana moída sob a árvore frondosa que resistiu à seca do sertão. No meio do nada, onde nem estrada há, a fugaz sensação de que a felicidade tem lugar. Mas não nos perguntemos onde ele está. Pode estar longe, na lonjura que nem os olhos conseguem enxergar no mapa-múndi, ou colada logo ali no colo da amada que se embriaga de alcaloides. Afinal, no contexto sem texto que sequer sabemos antecipar o final, como descrever estampas de sabonete no funesto lembrar abissal? Foi, existiu ou apenas é um louco e sombrio lembrar? Morreremos sem saber o que falar...
Tobias corria as estradas cheias de secura e morte feito consorte da veleidade que nos foge a cada dia. Cravava as esporas no dorso do cavalo cansado para mais cedo chegar. O sangue do animal escorria na terra esturricada e se derramava junto com o suor que cobria os pelos molhados de dor. Sem dó, Tobias batia com o chicote feito de couro de um bicho que morreu para depois fazer sofrer o dorso de outro igual. A muitas léguas de uma saudade sem tréguas, dessa que não se mede nem com mil réguas, apenas queria chegar e se achegar nos braços de Maria. Ao animal espancado restaria quem sabe uma ou outra égua. Se esta no cio estiver.
Na fazenda, cantilena na cantoria irreal, o homem roda as madeiras que moem a cana cortada que logo será aguardente ou garapa. Envolvido em si mesmo, envolto na penumbra das folhas que sobreviveram à secura do tempo, o homem da fantasia é apenas o mote de alguma poesia de cordel que virá e se perderá ao léu do rentista do mundo que crê ser artista.
No alpendre o menino brinca com seus bois em sabugo de milho. No mundo findo aonde os olhos enxergam e é infindo na saudade do poeta cantador, Tobias ainda trilha suas mil trilhas que nunca terminarão. O animal que o carrega, trôpego e sôfrego, cai desfalecido e morto perto de duas cruzes onde abutres tentam comer os restos de anjinhos enterrados. Sem mais como ter de chegar ao colo e seios de Maria, Tobias senta no chão de poeira e chora. A aurora logo vingará no céu sem nuvens pra pingar. Se um boiadeiro passar na busca da burrega desgarrada, verá apenas um homem enlouquecido que achou que tinha encontrado o Senhor no paraíso do já descortinado luar. E como o destino é repentino, tal boiadeiro complacente se compadecerá com a cena.
-- Meu alforje está cheio de água. Quer um gole daquela que eu peguei sob uma gameleira?
A pensar em Maria, Tobias dá o último suspiro para a vida. Seu corpo, tosco como o do cavalo que tombou, é enterrado na estrada. Resta-lhe uma cruz de galho cortado num descampado perto. Na fazenda, Maria bebe o líquido que a cana cortada deixou escorrer quando era esmagada para algo ser.

(Com Elomar, Vital Farias, Geraldo Azevedo e Xangai)

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

João e Maria

 Por Ronaldo Faria

 

João e Maria, nomes de história da carochinha ou quem sabe amantes da mais eterna fidalguia. Na verdade, ninguém sabe de tal histriônica história ou pouco deles se dirá. Um ou outro conhecedor de ambos até rirá. “Fazer um texto dos dois? Está de sacanagem!” Mas, se tudo na vida vale, por que a dupla tem que ser descartada ao nada? Logo aqui que, às vezes, nada se leva além de uma reles mamada...
Conheceram-se ao acaso, nesse introito do destino em que cada caso é um caso. Seja este profícuo ou raso. Foi quase que momento irrisório, cercado de tragédia grega ou notório fado. Era noite, dessas que chega cercada de bêbados, amores desfeitos, peitos sugados por bocas e línguas ao descalabro. Numa esquina, onde a quina de concreto reto dos prédios serve de anteparo aos corpos que já não respondem aos instintos íntimos da preservação, se viram. Entre sussurros e respiros sôfregos, se falaram. Na verdade, não. Primeiro se tocaram, se trocaram de salivas e afagos e escreveram orgia própria na fugidia e tardia madrugada que logo de novo será dia. Depois, sim, proferiram seus nomes: João e Maria.
E tanto gostaram de tudo vivido que se fez o próximo minuto vilipêndio de um compêndio do desejo de até trocarem telefones. Cambaleantes, seguiram aos seus cantos entre cânticos de pássaros que logo cedo estão a buscar o manjar. Dormiram enquanto a cidade despertava atávica para reviver sua rotina cretina. Banharam-se de água quente e reviram o encontro, reviraram a solidão premente e inconsequente que viviam, agradeceram a dose a mais que os fez se entregarem, solenes, ao corpo desconhecido do desatino. Contemporizaram os riscos e medos que o novo amor traz. Decidiram que agora era a hora apenas de voltar a crer e acreditar que há navios que zarpam para longe e voltam do além-mar. Com seus marujos e histórias de sirenas lindas e portos habitados por marajás. Afinal, a vida não é um eterno reescrever e tentar? Logo, fodam-se os medos a singrar. Se despiram dos degredos e ensejos tardios, brindaram de gelo e copos suados ao novo dia e rumaram ao reencontro vadio.
-- João?
-- Maria?
Não tinha erro. Ambos eram como se tinham sonhado na madrugada tardia, entorpecida de lucidez e frenesi da etérea vida. Não deu outra: se refugiaram numa mesa de bar, dessas que escorre vida, e descobriram que não há loucura maior do que aquela desmedida. Hoje são apenas e tão somente João e Maria. Moram numa casa assobradada na periferia, têm quatro filhos e duas filhas. Seguem seu mundo como uma estrada já escrita e desenhada. Desdenhada de grandes sobressaltos. Onde não há restos de espectros do amor. Mas são felizes. No quintal criam até perdizes. Já a madrugada de antes, essa tem novos matizes. Nela, outros Joãos e tantas Marias ainda tentam ser felizes.
-- Eu não disse antes: “fazer um texto dos dois? Está de sacanagem!”
 
(Com Stan Getz e Luiz Bonfá)

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Adoniran, nosso poeta

Por Edmilson Siqueira




Se o Rio em seu Poeta de Vila, São Paulo tem o Poeta do Bexiga. Claro que não estou querendo comparar Noel Rosa a Adoniran Barbosa, mas que a qualidade de seus versos e sambas os une indelevelmente não resta qualquer dúvida. 
Evidentemente Noel é uma espécie de tesouro nacional do samba, mas Adoniran, tenho certeza, não fica devendo muito ao genial artista carioca. E vou parar por aqui essas tímidas comparações, acho os dois são geniais e vou partir para o que interessa: o disco "Adoniran, O Poeta do Bexiga", lançado em 1990 pela Som Livre, em meio às comemorações dos 80 anos que Adoniram faria neste ano, ele que nos deixou em 1982, aos 72 anos. 
O nome do bairro, que fica na região da Bela Vista em São Paulo, tem sido grafado como "Bixiga". Porém, na capa do disco está "Bexiga", que é a grafia original da palavra. 
A produção foi caprichada, afinal a Som Livre ainda detinha grandes poderes no meio fonográfico e podia trazer nomes famosos e bons para uma justa homenagem. Assim, CBS, BMG-Ariola, WEA, EMI-Odeon e RGE cederam artistas para o projeto. Lançado primeiramente como LP depois em CD, o disco deu liberdade para que os intérpretes colocassem sua marca em cada música. Das dez músicas, apenas em três delas Adoniran tem parceiros, que serão devidamente assinalados. 
A primeira faixa é quase clássica. Um programa da TV Bandeirantes juntou ninguém menos que Elis Regina e Adoniram passeando pelo Bexiga. Entre as interpretações dos dois, essa foi realizada num boteco: trata-se de "Tiro ao Álvaro", uma parceira de Adoniran com Oswaldo Moisés. Impecável, com a dose certa de humor e lirismo que os versos do poeta tanto exalavam. 
Logo a seguir, a interpretação mais que pessoal - e excelente, como era de se esperar - de João Bosco para "Saudosa Maloca". João inicia a música com versos de "Sampa" (Caetano Veloso), aquelas duas frases sobre a grana que São Paulo ergue e destrói coisas belas, referência mais que exata sobre a "maloca" dos amigos derrubada pelo "progresso". 
A terceira faixa, "Samba do Arnesto" parece, em seu início, que será mais uma interpretação dos grandes "Demônios da Garoa". Só que, após a introdução, quem aparece cantando o famoso samba é ninguém menos que Rita Lee. E ela não deixa por menos, cantando muito bem e brincando com a parte falada da música.


"Trem das Onze", talvez o maior sucesso de Adoniran, ganha ares melodramáticos na voz aguda de Tetê Espíndola e num acompanhamento de violões explorados ao máximo em suas sonoridades. Sim, a música perde todo aquele ar bucólico, mas fica interessante. 
A seguir, uma obra prima de Adoniran numa letra de Vinicius de Moraes. Os dois nunca se conheceram, diga-se. A letra foi feita por Vinicius na Europa e entregue a Aracy de Almeida, para que ela entregasse a quem quisesse. Pois ela deu para um improvável parceiro de Vinicius que surpreendeu a todos, colocando nos belos versos uma melodia maravilhosa. A faixa foi dada à cantora Luciana que teve um acompanhamento luxuoso ao piano de Hermeto Paschoal. (Aqui cabe um pequeno parêntese: Luciana é Luciana Souza, cantora brasileira que vive nos EUA e já foi nomeada ao Grammy Award seis vezes nas categorias de Melhor Álbum de Jazz Vocal (cinco vezes) e Melhor Álbum de Jazz Latino (uma vez) em 2003, 2004, 2006 e 2010 e duas vezes em 2013. E ganhou o prêmio Female Jazz Singer of the Year em 2005 e 2013 pelo Jazz Journalists Association dos Estados Unidos.) 
A faixa seguinte une o bom samba carioca do Fundo de Quintal com o samba paulistano de Adoniran na música "Aguenta a Mão, João", parceria com Hervé Clodovil. O Fundo de Quintal dá conta do recado com a mesma categoria de sempre. 
A grande Marlene não poderia ficar de fora. Mesmo sendo uma das maiores cantoras que o Brasil já produziu, sucesso inclusive na Europa (ficou quatro meses e meio em cartaz no Olympia de Paris a convite de Edith Piaf), Marlene nasceu na Bela Vista, em São Paulo, exatamente onde fica o Bexiga, cantado em prosa e verso por Adoniran. E ela se solta como filha de italianos - seu pai era romano e sua mãe calabresa - no samba "Acende o Candieiro". 
Macalé, um grande cantor sim senhor, foi incumbido de cantar a tragédia de Iracema. E ele traz todo seu talento dramático para a música, cantando lentamente, com a dose certa da tragédia da namorada atropelada pelo carro na Avenida São João. Um grande destaque é o sax soprano de Edgard Duvivier que, ao encerrar o arranjo inclui uma frase de Jobim/Vinicius ("o amor é coisa mais triste quando se desfaz...). Genial. 
O famoso "Samba Italiano", que fez muito sucesso na voz de um cantor italiano na Itália, foi gravado pela correta cantora Patrícia. Pra quem não conhece, Patrícia é cantora e compositora, que iniciou sua carreira muito jovem no grupo infantil Trem da Alegria nos anos 80. E dá conta do recado direitinho com o engaçado samba de Adoniran todo em italiano. 
Por fim, a décima e última faixa da homenagem - "Torresmo à Milanesa", parceria com Carlinhos Vergueiro - foi entregue à cantora Paula. Com arranjo de Rildo Hora e com coro e percussão, a singela obra da dupla acabou ganhando vestimenta nobre, com a correta interpretação de Paula. 
Como não há o sobrenome da cantora no pequeno encarte, não consegui desvendar quem é essa Paula. Mas ela canta bem e encerra de forma agradável essa bela homenagem ao grande Adoniran Barbosa, um paulistano de coração que nasceu em Valinhos quando a atual cidade era subdistrito de Campinas. 
O CD está à venda nos bons sites do ramos. Já o LP é meio raro e os preços estão mais salgados. E pode ser ouvido na íntegra no Youtube em https://www.youtube.com/watch?v=-w2vub0VYoE&list=PLos-v4VZHh4iA0HUqEFWMogGcigxHmkiI .

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Com João Gilberto e Stan Getz

 Por Ronaldo Faria

 

Devagar, quase a parar, o Oldsmobile trafega na Avenida Atlântica. Na areia logo do lado, a mulher de biquíni de duas peças deixa o seu corpo a brilhar nas ondas do mar. No bar perto um garçom deixa o gim com tônica para a turista atônita diante de tanta beleza tropical. Já a madame de várias décadas de Copacabana, desde a época em que ambas eram meninas, passeia com seu pequinês quase cego e idoso. Uma lotação percorre nas fumaças em negror o Túnel Velho que separa o paraíso da vida real. O desavisado senhor quase é atropelado pela Vespa que um playboy qualquer conduz de forma tresloucada e o músico, que deixou sua poesia harmônica na boate que acabou de fechar, decide fazer uma pausa no calçadão para ver a manhã se espalhar e espelhar entre pernas, bocas e olhares à mansidão de se crer. Na imensidão da vida, qualquer coisa no fundo é bem vinda.
-- Sabe, hoje descobri meio abobalhado e a falar sozinho na rua que, se estamos vivos, foda-se o resto. No final, lá no finalzinho mesmo, quando um caixão apertado será a última morada e a derradeira namorada, o que sobrar vai soçobrar queira você ou não. Logo, que possamos viver e ver a beleza que cada renascer nos dá.
Uma pomba desavisada e desqualificada de teorias existenciais, resolve por fim aos devaneios de verão e se alivia desanuviada na cabeça do sonhador.
-- Puta que pariu, com tanto lugar pra cagar foi logo me escolher?
Dedução e revolta inoperantes diante do voo do pássaro que resolve agora repor o espaço no estômago vazio.
Mas no asfalto que segue paralelo ao mar ninguém quer saber de pombas, devaneios ou histórias que se perderão no próximo luar. O lugar é de apenas crer que ainda vale, por hora, cada respirar. Mães pungentes passeiam com seus bebês de colo, colírios se espalham nos olhos vermelhos de sono e ressaca dos boêmios, coliformes disputam com os peixes as redes dos pescadores da colônia do Posto 6. A babá, vestida no seu branco indefectível à espera da golfada do rebento da patroa, flerta com o vendedor de picolé. O novo prédio que sobe onde antes era uma residência mostra que a excrecência da vida está nas contas bancárias que separam os operários esquálidos dos futuros moradores refratários da beira-mar. Numa rua próxima a igreja gótica diz que é o momento propício do pecador se confessar. No estrupício sem senso ou lógica, o cliente num inglês abrasileirado pede outra dose de vodca, com gelo e limão. Afinal, de verdinha em verdinha se conquista a sofreguidão.
-- Ô Valdemar, manda outra caipirinha sem pinga pro gringo da mesa quatro que logo vai estar de quatro!
Descido da Ladeira dos Tabajaras, o menino empina a sua pipa em gestos de maestria sensorial. E o Rio, no seu balanço natural, segue à espera da vida.

sábado, 18 de outubro de 2025

Na bazófia, seja isso o que tiver de ser

Por Ronaldo Faria


Lavar os restos prestos de caminhos retos e banhados de assombrações e sujeira na pia entre louças e poucas certezas e tantas incertezas? Mário, o telúrico, na lucidez inexistente e premente de destrinchar o poema da vida e a vida da solidão, estava numa trincheira da bazófia, seja lá o que isso tiver de ser. Saravá agora e pra onde tiver de ter. Os santos tântricos que se guardem no aguardo.
Nas paulistanas e inconstantes noites e madrugadas (já que traulitantes parece não existir no dicionário) os corpos e copos encorpados nos corredores de sangue e volúpias se dilaceram e se esmeram de cinzas e fumaças mil. No calor do inverno que a quirógrafa escreveu, eu, ateu, até tento crer em Deus.
Catatônico, harmônico, afônico e atônito, a puxar o último grau, o perdulário de emoções se faz maestro nos vórtices que a vida dá. E caminha entre rios poluídos, ouvidos doidos e doídos, avenidas cambaleantes de agora até ontem. Às feridas geridas em cada dor transversa e expressa na falta de pressa que a madrugada traz, há um pouco e tanto, entretanto, de silêncio e solidão. Assim, escancaremos dois  à cara limpa que a vida finge resguardar. No lugar em que a tragédia e a comédia se misturam cresce um pé de antúrios. Nas Astúrias um conde qualquer tenta beijar a nova mulher. No albergue social o morador das ruas tenta sobreviver a comer o que lhe dão com a plástica colher. O que irá colher no seu quintal ínfimo já é outra leitura vespertina. Resposta não há.
-- Ainda é esse o sabor de veneno? Que coisa mais cretina. Preferia estar diante de uma cafetina ou de um copo de cafeína.
Nas caixas acústicas e lúdicas surge uma frase: “Olha o breque, Biafra...”
 
(Num boa noite com Arrigo Barnabé)

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Papo etílico e líquido

 Por Ronaldo Faria

 

-- Você já foi atrás da cerveja errada, comprou e vira essa que se se esquece na geladeira e só dá ressaca?
-- Infelizmente, sim...
-- E o que fazemos? Jogamos fora?
-- Nem fodendo. Um dia far-se-á néctar da embriaguez.
José e Ronaldo, dois seres diferentes, divergentes e carentes de decilitros, mililitros ou algo que não cheire a perfume, ao menos numa coisa concordavam: lúpulo e cevada têm que casar feito Deus e Satanás. Têm que ser arroz e feijão, ovo e omelete, onda e mar. Se tiverem algo que os separe, saibam que nem nas cercanias do inferno da mente irão se encontrar. Serão coisa modorrenta e nada mais. Afinal, beber não é só se embriagar...
-- Cerveja é que nem barbeiro? Cola num até ele morrer?
-- Com toda a certeza.
-- Cabelo e cerveja são coisas unidas?
-- Mais ou menos. Talvez como o escrever e o verso. Os dois são dor, crescem e dão sorte e azar, ou são somente novo amanhecer.
Viventes prementes e ausentes do que pode ser aqui ou sei lá, do lado daqui e de acolá, certamente os dois não cantarão a essência do sonhar no blues que virá.
-- E aí, vale viver e seguir coisas perpetradas no bem-será?
-- Se não valer e seguir, aí fodeu geral...
No mundo externo e terno que se abarca lá fora, copos se levantam e se postam nas mesas, beijos e fodas se abrem em pernas e bocas, loucos e loucas se fundem e se entregam nas falsas tréguas que a insensatez dá. Aqui ou no Afeganistão alguém estará a frigir os ovos e óvulos com tesão.
-- Há explicação para se viver aqui ou em Berlim?
-- Sei lá. Nalgum lugar haverá uma colombina na busca de um arlequim. E vice-versa. Quer dizer, é tudo uma mesma merda. Só muda o palavreado e o fim.
 
(Com Itamar Assumpção)

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Com o sempre Itamar Assumpção

 Por Ronaldo Faria


Cláudio e Cláudia, duas canduras de pessoas, amantes desde a primeira hora que se viram, se beijavam em mais uma inúmera vez das tantas milhares e vezes atrás. E trançavam salivas, altaneiras e ativas, molhadas e ardidas da pimenta da paixão. Se tocavam de forma feérica, se lambuzavam de suores deixados à madrugada de amassos e desgarradas orgias, se faziam piqueniques que nunca comeriam ou veriam sequer as formigas. Mas, qual, de que vale mesmo a vida?
-- Você será sempre meu?
-- E você será sempre minha?
As perguntas, como diria o poeta preto e negro, feito mel, laranja e manjericão, foram respondidas com urdidas transas trançadas de pernas, braços e mãos. Poemas escritos e proscritos, coisa de solicitude. A palavra era o que menos interessava, num quarto diminuto ou em Java. Havia mais emoções a viver.
-- Foi legal acordar do nada e trepar com você. Jogar a cama tresloucada no virar do quarto. Parar na chegada da sala.
-- Com certeza. Faço das suas palavras e lavras as minhas...
No aninho que o descaminho dá desde que Caminha escreveu a carta para o Rei de Portugal, ambos esquecem o que é falar e se calam nos augúrios telúricos que dois corpos sabem quando querem se entortar. Afinal, disse o poeta preto e negro, a natureza está morta e decora a noite torta.
-- Ficaremos pra sempre?
-- Com certeza. Até que o destino ou um Alzheimer nos dê o final de tudo.
Para eles, rima ou faça-se lá o que tiver de rever, a terna eternidade de nada ter, se bastou na lambuzada de nunca ser.
-- Quando poderemos reviver?
-- Que pergunta mais difícil que não sei responder...
Muitos e poucos  metros abaixo e acima, vizinhas velhas e decrépitas, dessas que reclamam ao mais silencioso gozar, ligam no interfone para fazer tudo encerrar. O mundo, doentio e frígido, sem sofreguidão do amar, longe do mar, se transforma em simplório colocar de um frango, charuto e marafo no despacho da esquina mais próxima e próspera.
-- Mandamos todos tomarem no meio do cu agora ou depois?
-- Vamos esperar o sol chegar. Deixemos eles sofrerem com o tesão que não têm mais...

domingo, 12 de outubro de 2025

Paul Desmond & Gerry Mulligan: um delicado duelo de sax*

Por Edmilson Siqueira



Entre as diversas parcerias que o jazz gerou ao longo do século XX, poucas conseguiram unir sofisticação, lirismo e inventividade de maneira tão natural quanto a de Paul Desmond e Gerry Mulligan. O álbum "Two of a Mind", gravado em junho de 1962, em Nova York, é um exemplo raro de diálogo musical entre dois gigantes do cool jazz, que dispensam piano, recorrem a arranjos enxutos e fazem da interação o verdadeiro centro da obra. 

Paul Desmond, que nos deixou em 1977, aos 53 anos, quando gravou esse disco com Gerry Mulligan, já tinha gravado, três anos antes, nada menos que o disco "Time Out", com o grupo de Dave Brubeck, onde uma composição sua, "Take Five, faria sucesso mundialmente, tornando-se um clássico absoluto. Sua sonoridade suave, quase etérea, era marcada por uma fluidez que parecia escapar de qualquer esforço técnico.  
Gerry Mulligan, por sua vez, havia construído uma reputação sólida com seu sax barítono e também como arranjador e líder de grupos que desafiavam convenções, inclusive no formato sem piano que consagrou no famoso quarteto com Chet Baker nos anos 50. E participou, entre 1968 e 1972, do Dave Brubeck Quartet. 
O conceito de "Two of a Mind" partia justamente do espírito de conversação. Não há aqui disputas de ego ou demonstrações de virtuosismo em excesso. Ou seja, o "duelo" que cito no título é, claro, em sentido figurado, pois Mulligan e Desmond se encontram no meio do caminho: o sax baixo aveludado, mas cheio de corpo, e o alto cristalino, quase vocal, entrelaçam-se como dois contadores da mesma história, mas sob perspectivas diferentes. A ausência de piano abre espaço para que a textura dos sopros ganhe ainda mais destaque. As linhas se completam, criam contrapontos e se sustentam sobre bases de baixo e bateria discretas, mas essenciais. 
A faixa-título, “Two of a Mind” (Paul Desmond) que fecha o lado A do LP e que, no CD é a terceira faixa, já deixa claro o espírito do álbum. O tema é simples, mas sua execução se desdobra em improvisos que parecem compassos de uma conversa espirituosa. Dá a sensação de estar diante de um diálogo íntimo.  
Esse clima também está presente em “All the Things You Are” (Jerome Kern e Oscar Hammerstein II) que é a música que abre o disco e é um dos standards mais revisitados da tradição jazzística. Mulligan e Desmond exploram a harmonia conhecida de forma criativa, reinventando o tema sem jamais perder a leveza. 
A segunda música é o clássico "Stardust" (Hoagy Carmichael e Motchel Parish) que, com seus 8 minutos e 20 segundos, é a faixa mais longa do disco. Nela, o diálogo entre os dois saxofonistas se estende maneira harmoniosa, com os papéis de solista passeando entre os dois, acompanhados de uma bateria discreta e um contrabaixo esperto, carregado de ritmo e harmonia. 
Outro destaque é “Blight of the Fumble Bee” (Gerry Mulligan), a quarta faixa. É uma peça espirituosa, cheia de humor, em que a destreza técnica aparece sempre a serviço da musicalidade, nunca como exibição gratuita.  


Já em “The Way You Look Tonight” (Dorothy Fields e Jerome Ker), a quinta faixa, os dois saxofonistas exploram a melodia de Jerome Kern com elegância, valorizando o lirismo do tema e permitindo que o ouvinte perceba a profunda sintonia que compartilhavam. 

Por fim, "Out of Nowhere" (Eddie Heyman e Johnny Green), encerra o álbum de forma positiva, "pra cima", já que se trata de música onde bateria e contrabaixo formam base sólida e contínua para que os dois solistas mostrem toda a capacidade de sonoridade e improviso.  
As sessões que originaram Two of a Mind foram feitas com formações variadas, incluindo músicos como Jim Hall na guitarra, John Beal e Joe Benjamin no contrabaixo, além de bateristas como Connie Kay e Mel Lewis. Cada combinação trouxe uma nuance diferente ao som do disco, mas a identidade central permaneceu: o encontro entre o saxofone alto e o barítono, dois instrumentos contrastantes que aqui se mostram complementares. 
Vale lembrar também que "Two of a Mind", o disco, também é herdeiro direto do cool jazz, movimento que teve Mulligan como um de seus principais arquitetos desde os anos 50. A estética da suavidade, do balanço contido e da clareza melódica encontram em Desmond um intérprete natural e se harmoniza harmoniza-se com a capacidade de Mulligan de explorar contrapontos e improvisos.  
Lançado originalmente pela RCA Victor, o álbum recebeu elogios da crítica e tornou-se um clássico cultuado por apreciadores do jazz mais contemplativo e sofisticado. 
O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=LDjTc8GzstQ&list=PLvxWibFr0wiJmG_PfoH_rWJrssctL7MOL . 
*A pesquisa para este artigo teve o auxílio da IA do ChatGPT.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

No corte da epistemologia da noite noir

 Por Ronaldo Faria


Sobremaneira, a noite traz consigo cheiros e esmeros mil. Versos também traz e apraz. E brinca de correr nos neurônios que se tornam antônimos de si mesmos, a esmo. Muitos deles irão morrer para nunca mais voltar. Mas, alcoolizados, poetas e filhos de um santo qualquer, serão felizes por fim como finda sua missão na Terra. E brindarão ser aprendizes. Na verdade, alguns deles, sobreviventes nas poucas sinapses, irão rir das tantas mulheres que já amou. Outros irão penar nas penas que nunca tiveram para voar e terá também até aqueles que, na encolha, escolherão somente dormir. No porvir, daquilo que ainda há por vir, a antecipação do próximo verão.
-- E aí, Antenor, como vai a dor?
-- Igual, como sempre. Na verdade, estou ausente.
-- Como assim?
-- Todo o dia acordo como estivesse de ressaca, mesmo sem beber.
-- Que foda. E isso não te incomoda?
-- Já mais não. A repetição um dia se torna rotina regada à morfina.
Os dois amigos, transeuntes de alegrias e choros, fortuitos ausentes da imensidão de um mar revolto ou de paz, apenas bebem e enxergam nas pernas das mulheres que passam a sonora poesia de mais um dia qualquer. Sonham com seus dentes inteiros, línguas invasivas e fortuitas, furtivas. Pedem que a morte lhes seja boa ao menos no fim. Sem dor demais, sem choros  e lembranças desprovidos de emoção, sem novos amigos tardios e amantes efêmeras, fêmeas de um tempo jamais. Para eles, partícipes de um tempo obscuro e escuro, tragédias de cantos e sambas que nenhum enredo soube escrever, o momento é de lamento e sorrir. Na loucura resoluta que a luta de todo o dia traz, são apenas dois pingos nos is.
-- E a vida?
-- Está aí, por um triz.
-- E isso te faz infeliz?
-- Não. Estou igual a uma meretriz a buscar seu amor. Ou um homem famélico dessa mesma mulher que se dá sem querer se entregar.
Na esquina da cidade onde a sina assimila a alegria e o sofrer, muitos passam na faixa pintada no asfalto rumo a um lugar envolto em fábulas e solidão. Sinais ao carioca e semáforos para os paulistas se pintam de cores e pedem para os carros pararem para dar passagem àqueles que caminham sem afinco para o fim. Um ou outro apartamento pisca num ligar e desligar de luzes que acendem e apagam para o cheiro da noite. Como açoite, no sertão distante um homem guarda a foice que esfolou a terra para que a roça nasça. Dela virá a fava que trará nos pratos nunca fartos a sofreguidão da esperança ancha.
-- E aí, vai mais uma ou para por aqui?
-- Acho que já deu. Vamos parar. Talvez a nossa amizade tenha, igual a tudo no mundo, um prazo de validade. Coisa de idade, leviandade, tramas que tenham se escrito sem respostas do além. Mas valeu enquanto existiu.
A madrugada, tardia e milimétrica, nunca tétrica, diz que a hora é chegada. Tragada, vadia e vazia em si, sabe que a vida é um intermeio de medos e perdas sem fim. Mãe de todos e tantos lamentos, senhora das feridas e unguentos, logo irá receitar goles e letras para tudo amenizar. Escondido nas cortinas do teatro do tempo incólume e real, o sol ainda sem sequer escovar os dentes reverencia mais uma apresentação da vida. Na plateia, meia dúzia de gente, feito alcateia, aplaude o alaúde que toca feito música ser.
 
(Ainda com Paulinho Pedra Azul)

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Com Paulinho Pedra Azul

 Por Ronaldo Faria


 
A tarde tardeia ao longe a solidão da vida, como uma coisa que escorrega pelo riacho rumo ao nada. E passa por galhos mortos, corpos desnudos, olhares perdidos e ouvidos surdos. Vai brincando de serpentear nuvens, fazer dormir pássaros e sumir o sol. Este, já no fim da quentura diária, quer apenas fechar tal claridade e sorrir ao ver a nuvem em prata passar.
A tarde, que tantos alguéns já juntou e deles se desfez, dá um até logo ao bêbado da esquina, ao prólogo do amor, ao surgir que urge cheio de esperança no primeiro beijo. Diz aos descrentes dementes da ilusão dessa tal felicidade que voltará renovada quando o bem-te-vi retornar às flores e as abelhas perderem o medo de morrer. Simplória, faz história de si mesma.
À tarde cantam os poetas que pouco a viram, aqueles que se chamam Porfírio, os estetas das cores do quase anoitecer, estafetas da fé. Choram amantes errantes, as crianças sem parque, o baque de mais um dia se perder. Proseiam os velhos nos bancos de praças, gorjeiam os que sabem gorjear e esquentam seus futuros jantares os solitários de noites sem promiscuidades.
À tarde também se entregam sem tréguas a nova amante que se atira na noite chegada com as chagas nunca fechadas, as fachadas que agora se iluminarão de neons, os casais causais que se miram nos pontos de ônibus e nas mesas de bares. Na quase blasfêmia daquilo que se fez, o poeta emerge de si e se afoga na saudade do dia em que teve qualquer mero e simples prazer.
Mas a tarde, a vociferar angústia às feras que acordarão aprisionadas ao nada que a esbórnia da madrugada traz, não quer nem saber. Fez-se, veio, viu, desfez, refez e findou. Agora, como o sorvete de amora que cai no chão, apenas escorre no esgoto do tempo. Ausente de vento, morta em lamento e unguento, apenas ressonará as próximas horas a achar que viveu até demais.

Na viagem

Por Ronaldo Faria Viajante de suas loucuras diuturnas, quase equidistante entre a vida e a morte, Januário persegue qualquer polis que vire ...