quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Amália, a deusa que queimava fornalhas

 Por Ronaldo Faria

 


Ela era a passista mais linda da quadra e da avenida, da vida, desejada por todos e mais alguns que nem sequer a conheciam. Mulata (que me perdoem os puristas de agora com seus verbetes, mas sou do tempo que tal denominação era forma de idolatrar a beleza da pele negra/preta) que os poetas do samba glorificavam em rimas e glorificações, Amália era o brilho que as estrelas volta e meia não traziam aos céus porque tinham guardado todo o esplendor para ela. Seu corpo, seus trejeitos, seu remelexo, seu jeito de ser, tudo e algo mais eram muito além daquilo que coração pode imaginar. Sua boca, seus lábios, seus olhos, cabelo, ela como um todo, eram escultura que nem o maior do escultores suporia fazer ou supor. E o sorriso? Era desses que nem a mais solitária solidão ou a dor maior saberiam viver sem sucumbir. Michelangelo nunca diria “parla”. Ao contrário, teria se ajoelhado diante dela e teria dito: “O que eu devo falar?” Enfim, a mulher entre todas as mulheres. Alhures, seria a Eva de todos os Adões do planeta. A correr as areias da praia deserta e iluminada pela lua que, ademais, brilhava só para ela poder desfilar seu corpo solto. Amália era musa de qualquer bateria que quisesse dez na nota final. E os batuqueiros até poderiam atravessar o samba. Os olhos dos jurados estariam nela, a delirar. Com certeza qualquer deslize na harmonia seria esquecido.
Amália, amor da dália aberta, delírio do compositor, coisinha tão bonitinha do pai, porém, tinha um algo a se pensar e divagar. Amava José, vagabundo da pior espécie. Desses que a ficha corrida no passado fazia a bobina do fax acabar. Para ele o tal de 171 era coisa barata. Malandro que otário não sabia sequer e nem mesmo que ia engolir, ele se fazia de forte diante do aporte que Amália entregava. Como alguém, em sã consciência, se é que a ciência compreenderia tal deslize do amor, poderia resistir aos desejos da mulher que era a obra maior que Deus decidiu fazer num dia boladão? Mas José, retardado desde o nascimento quando faltou força para sua mãe colocá-lo para fora, apesar dos gritos da parteira, saberia ter sido sorteado na milhar ou na loteria federal? Qual... Para ele, dois e mais dois era o que fosse. Uma cheirada e outra eram a chamada real. Mesmo que assim, a todos mortais, Amália fosse o prêmio apenas sonhado. O bilhete nunca premiado. Mas José, como bom carioca, a saber-se idólatra, seguia na sua delirante oca. Era apenas um nome no CPC do crediário de ter o Éden sublime da cabrocha iluminada pelos holofotes da razão sem poder pagar. E assim, perto do fim, o escritor descreve, à verve, aquilo que as letras nem sabem mais descrever. Nos ouvidos os tamborins marcam a criação. Algum dia haveremos todos de morrer de solidão. E José? Esse que vá saber, talvez, o que é ser um cuzão sem colhão...

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Bel Padovani, de novo

Por Edmilson Siqueira


Já escrevi um artigo aqui sobre a excelente Izabel Padovani em 2022. Tratava-se do disco "Desassossego", de 2009, um excelente trabalho resultante do Prêmio Visa de MPB que ela ganhou, mui merecidamente, por sinal. Se quiser ler o link é esse: https://osmusicoolatras.blogspot.com/2022/03/desassossego-um-disco-perfeito-de-bel.html. 
Pois hoje volto a falar dessa artista campineira que ganhou o Brasil e parte do mundo sem claro, fazer aqui o sucesso que merece, mas tem deixado sua marca inconfundível em todas as interpretações que grava. E volto para comentar o disco "Mosaico", gravado entre agosto de setembro de 2008. 
Não sei se esse é o primeiro disco dela, mas se for, ela já mostrava impressionante maturidade nas interpretações. Acompanhada por um time de ótimos músicos - Anderson Alves (clarinete), Denni Pontes (percussão), Iara Ziggiatti (violoncelo), Luís Passos (guitarra e bandolim), Marcelo Valezi (flauta e sax), Paulo Freire (viola), Rafael dos Santos (piano) e Ronaldo Saggiorato (baixo, violão e programação eletrônica), Bel (como é mais conhecida) passeia por 11 faixas com desenvoltura, mostrando que o que estava ali começando, se é qu eestava começando, era algo que veio para ficar. 
Dezesseis anos depois, o disco soa atual, como se fosse gravado neste ano, pois ele não apela a modismos, com um repertório muito bem escolhido entre a produção nacional que, apesar das críticas que vemos por aí, continua produzindo muita música de alta qualidade. Basta pesquisar, já que os tesouros da MPB andam cada vez mais escondidos. 
O disco começa com "Alto Mar" (Dante Ozzetti e Luis Tatit), um choro moderno que não fica devendo nada aos grandes choros brasileiros. 
A segunda faixa é "Canção de Não Dormir" (Arthur Nestrovski e Eucanaã Ferraz), música densa onde se destaca, além de perfeita interpretação de Bel, o piano de Rafael dos Santos. 
A seguir temos "Tudo Teu" (Fred Martins e Marcelo Diniz), uma canção de entrega, onde a percussão dá um tom meio indiano e Bel se encarrega do resto. 
"Capital"  a quarta faixa é de ninguém menos que Guinga em parceria com Simone Guimarães. O talento criativo de Guinga nos traz uma melodia que parece extraída dos choros de Villa-Lobos e Bel dá conta do recado, principalmente na segunda parte onde a interpretação se torna mais difícil.  
A quinta faixa é "Mortal Loucura" (Zé Miguel Wisnik e Gregório de Matos, uma "parceria" que fala por si). Trata-se de um soneto do poeta que viveu entre musicado por Wisnik, que virou impressionante "oração" na voz e coro de Bel. 
"Bote" (Luiz Felipe Gama e Kiko Dinucci), a sexta faixa, é a música pop do disco, com excelente solo de guitarra de Luís Passos. 



A sétima faixa e "Deixando o Pago" (Vitor Ramil e João da Cunha Vargas), é uma canção nordestina, que se destaca pela ótima melodia, em lamentos próprios dos cantos do povo daquelas paragens. 
"Primeiro Choro de Lucas" (André Mehmari), a oitava faixa, é uma canção sem letras, que Isabel acompanha em ótimo vocalize, com destaque para o baixo de seis cordas de Ronaldo Saggiorato.   
Não surpreende a presença de uma música de Arrigo Barnabé - "Sinhazinha em Chamas" - no disco. Izabel pesquisa nossos compositores e encontra pérolas como essa canção, interpretada corretamente como num sarau do século 19. 
A décima faixa é "Barriguda" (Zé Paulo Becker e Thiago Amud) e sua longa letra é uma sucessão de trava-língua que só alguém muito bem preparado pode cantar. E Bel passeia pela intrincada música como se cantasse uma ciranda.  
Encerrando a ótima sessão musical, Isabel nos traz "Do Compositor (Eduardo Klébis), um gostoso samba que versa sobre as artes de se compor, muito bem desenvolvido pelo autor.  
Trata-se, enfim, de um ótimo disco que, como disse, não se perde com o tempo. Daqui a muito tempo, ele estará sendo ouvido com o mesmo prazer que se tem hoje diante da ótima interpretação, do repertório sem concessões e o grande trabalho dos músicos, tudo isso tornando esse disco obrigatório para os amantes da boa MPB. 
O CD pode ser comprado no Mercado Livre ou em outros bons sites do ramo. E pode ser ouvido na íntegra no Spotfy: https://open.spotify.com/intl-pt/album/6E3woEEiIXXWGATLcy77YZ

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Na sopa fria do samba

 Por Ronaldo Faria


 

O prato de sopa termina. Na terrina sobrou sopro de fome e outro de dor. O barraco de zinco e madeira, como manda a poesia carola sob o manto azul da padroeira do Brasil, vê as gotas de chuva pingarem quietas e serenas. Uma ou outra, como amante sirena, cai sobre a cama e perfaz o drama. Molha o lençol ralo, o colchão de molas sem molejo e o travesseiro que cuida de uma cabeça vazia depois de umas tantas e várias doses. Edgar, dono do lugar, pega a cuíca e toma o rumo do ensaio do bloco. “Um dia a gente vira escola de samba. E aí ninguém segura mais. Grupo especial e título na Sapucaí. Pode ser daqui a dez anos, vinte, sei lá quanto tempo. Mas esse dia irá chegar”, pensava a delirar.
Sobe no trem e segue cada estação na retidão que a dona da ferrovia dá. Consegue um lugar sentado. Põe o instrumento no colo e segue a ver gente entrar e sair. Tem homem suado, cansado do trabalho, mulher igual e algumas com filhos e prole a voltar ou ir, vendedor de muamba, batedor de carteira e celular. Tem a gorda que reclama quando o velho com artrose pede para liberar lugar, maloqueiro que quer chegar o mais rápido possível para a encomenda vazar, sambista feito ele que quer apenas sambar. Espaço democrático e autocrático, o trem trilha nos trilhos as estações uma a uma. Assim, após póstumas saudades e vidas em descompasso, o trem para na estação desejada. Aí é subir a passarela, andar duas ruelas e chegar na roda que samba.
- Edgar, até que enfim você chegou. A bateria estava na falta!
- Essa bosta de trem sempre atrasa, mas estou aqui. Vamos fazer a bagunça rolar!
Na quadra improvisada a música começa a soar. Devagar, chegam as morenas, os passistas, o povo que samba. E a coisa vai enchendo, encorpando, incorporando desejos e ensejos, a trazer esperança e paixão. Edgar nem lembra que teria de enxugar o barraco e botar o colchão, se o sol no dia de manhã vier brilhar, para secar. Com os dedos a brincarem no couro da cuíca, é somente sonho. Bisonho e sacana, o sol diz a si mesmo que no próximo dia deixará de raiar. A solução de Edgar será encontrar outro empório de vidas para recolher a sina que a cuíca deixará vazia.

sábado, 28 de setembro de 2024

O enterro da Jacinta

 Por Ronaldo Faria


- Você só pode estar de sacanagem querendo que eu vá ao enterro da Jacinta. Sinto muito, mas eu é que não vou!
- Mas, Cristiano, é sua irmã!
- Você que está dizendo. Pra mim, não é. Está com dó, jogue rosas você no caixão!
A roda de samba rolava com terra levantando e limões regados de cachaça a descer. Hemeregildo queria convencer a todo o custo Cristiano a ir ao enterro da irmã. Tudo bem que a Terra não sentirá falta nenhuma da defunta fresca e seus feitos estarão restritos a um hiato que de nada servirão nem de orelha de livro na existência finda. No som rola Dona Ivone Lara, que descansa ao lado do pai e com o filho e o espírito santo a tocarem repenique e pandeiro. Os anjos fazem o backing vocal e os instrumentos necessários para ela. Já para Jacinta, nem Pedro, o Pedrão da Porta, compareceu para deixar entrar. “Tenho mais o que fazer”, disse ele a um assistente virginal. “Mande descer pro limbo e já está bom demais” – sentenciou.
- Mas Cristiano, isso é heresia!
- Nem sei que merda é essa, mas se for um vá com Deus, está bem dito. E saravá Omolu.
- Como faço pra te convencer?
- Não faz. Você viu que o Cacique de Ramos vai sair logo mais? Aliás, já estou atrasado para a concentração.
- Se a gente pegar o trem chega rápido no Caju. A gente desce na passarela da Avenida Brasil e estamos lá... depois vamos no desfile.
- Hemeregildo, vulgo Gil da Feira, você já foi tomar no meio do cu? Vá e veja se é bom!
A tarde caía do céu com raios fulgidos, fugidios e fugazes. Coisa de poesia pura ou samba enredo raiz. A resenha dos amigos, porém, era como discussão de terra plana ou redonda. Uma zona proverbial. Ninguém nunca chegaria num ponto final.
- Sabe que hoje pela manhã eu achei que estava enfartando? Tinha certeza de que ia apagar também. Ser recolhido no rabecão e ficar à espera de alguém para me enterrar? Pois é. Fiquei no meio do fio da faca, mas estou aqui. A beber, ouvir o samba rolar, na expectativa de virar o Centro com o Cacique. Quero mais do que isso? Não! Então, larga do meu pé!
- Tudo bem, parei. Só pensei na Dona Eulália, que gostaria de ver você no enterro da filha dela.
- Você lembra que a Dona Eulália, minha santa mãe, já morreu há quase quatro anos?
- Eu sei. É que tem o espírito a vagar...
- Não tem mais. Agora é estrela brilhando no céu. Aliás, estou atrasado para a ala dos compositores do Cacique. Fui! Everaldo, pendura mais essa! Pago no quinto dia útil do mês que vem, como sempre.
Cristiano, Cristo num ano qualquer, como quis seu pai, austero e católico crente, saiu e tomou rumo do Centro. Nele, viveria sua vida. Saberia que tudo aquilo que o passado trouxe em replay era mera mentira do amor, coisa efêmera. Agora só restava esperar uma nova fêmea, o batuque sincopado e a certeza de que viver é sempre esperar o dilúvio que a finitude trará. No céu, uma chuva fina trazia o fim do sufoco dos foliões. Na capela funerária, vazia, a irmã cheirava a vela queimada.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Dona de Castelo (sob a influência do som de Jards Macalé)

 Por Ronaldo Faria

 


- Parei! Nunca mais eu bebo. Chega!
- Mas o que é isso, Bonifácio? O que foi que deu em você?
- Deu! Imagina o que é você acordar mais despirocado do que já é. Nem na fé dá pra aguentar a veia dilatada, a dor de cabeça, a treta interior. Cansei!
- Mas cada dia é cada dia. Vem a tal ressaca, tardia. Tudo bem. Mas vem também a orgia que vale momentos, pesadelos, desmazelos e os unguentos que ensinam a nos recriar.
- Só se for pra você. Não dá mais! Vou me redimir.
Cercados de mesas, engradados e alguns loucos que decidem nos dados quem a conta vai pagar, Bonifácio e Souza fazem da prosa o botão de rosa que espera a água da esperança e da bonança para florir. Na mesa, o prato de rabada espera numa barriga dormir. Nas desmesuradas doses que já desceram, a loucura etílica se deixa curtir.
- Mas, sejamos verdadeiros, Bonifácio: estar aqui não é do caralho?
- Carlão, na rabada tá faltando alho! Resolveu economizar no tempero? Muda de profissão. Deixa de ser dono de bar!
- Me responde.
- Sei lá. Não estou preocupado com isso. Cada segundo vivido é cada segundo passado. É estar sendo carcomido e comido pelo tempo.
- Que merda, Bonifácio, já vi neguinho pra baixo, mas você está exagerando.
- Pra porra, cada um que sabe de si.
No silêncio da mente que se espalha e queima feito palha, o personagem principal desta história vira quase hiato. À busca do seu rumo ou porto, vive em Pangeia. A navegar em Pantalassa, espera ver surgir o grumete que grite “terra à vista”. Por enquanto, apenas Souza tanta tomar conta da bússola onde o timão irá migrar e virar.
- Quer a saideira? Está cedo. Acabou de dar meia-noite.
- Tudo bem. Vamos nessa. Se é pra morrer hoje, que seja em festa.
Por falar em festa, sem pressa de prosear à toa, a madrugada que prepara a chegada se torna o torniquete para as emoções que juntam dores e unções. Os dois riem de tudo, levantam os copos em brindes, veem o tempo se esconder dos relógios para não terminar. Amanhã? Quem, em sã consciência, sabe se existirá amanhã? Na manha, o sol não força a barra para sair.
- Quer saber: foda-se o imbróglio que vier! Você tem razão. Ergamos os copos que, reis, debelam toda solidão! Carlão, vê as saideiras que hoje é hora de remissão!
No poste que ilumina a rua, uma pomba acorda e caga no chão. A vida, sonora e real, não liga para a busca de solução. Para elas, a pomba e a vida, sequer existe ilusão.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Tosse macaleônica

Por Ronaldo Faria


A tosse sai afônica da boca. No som que permeia o lugar, Jards Macalé. No copo, a centelha dourada da cerveja que desce em gotas de suor o copo americano que descansa na mesa do bar. Nas mãos de Constâncio, parceiro de si mesmo nessa trilha que é nascer e viver, ele sobe e desce, enche e esvazia. Amanhã, talvez azia. Agora, apenas uma velha e rotineira lombalgia. Na cabeça, saudade da mulher que deve agora estar ajudando a cadela da filha parir. “Acho que não era mesmo pra ser. O tempo passou, ensejou, derreou, foi e voltou, ficou parado na linha e o trem, ao que parece, passou por cima. Agora, é tentar de novo na solidão reviver.”
Constâncio, ser inconstante na trajetória do universo, sabia, porém, que cada novo refrão se faz um novo verso. E cada letra escrita é o fim de sílabas mil a sibilarem nas cobras que fingem rastejar para viver. Na subida do morro, já contaram e até dizia o poeta antigo, bateram na mulher de alguém. Nas poucas árvores que ainda restam na viela, cotovia não canta ou gorjeia mais. E nem há tanto pau para um pica-pau picar. Pelo menos a barreira criada pelo dono do morro impede qualquer carro de subir. Foi bom porque o português tomou o pouco de rua para as mesas colocar. “Imagina a gente nem ter como sentar pra ver o resto de dia passar.”
A garganta arranha e a tosse volta. A tarde, tardia enquanto a chuva decide que não cairá, espera a imaginação constante fluir. Por certo, nalgum lugar haverá um belo porvir. Para Constâncio, o que estará por vir é a crença tresloucada de que ainda há porque viver e ser. Ao longe, um fogueteiro avisa que os alemães passaram defronte da biqueira. Mas não pararam. A contenção garantiu que hoje não era dia de visitar o IML por lado nenhum. “Pelo menos vamos ter um pouco de paz. Aqui ainda não tem briga diária de Israel e Hamas”, pensou.
O som rola no substrato que o trato de pensador deixa rolar. O samba se mistura à mágica que o multiverso macaleônico e camaleônico dá. Do alto, desce a nova sensação do morro. Se fosse na Zona Sul, novos Vinícius e Tons recriariam a garota eternizada na passada ao mar. E, pasmem, ela perguntou a Constâncio se poderia sentar. Qual o quê... Ele mal soube responder. Silêncio é aceite. “Seu José, traz uma linguiça no azeite!” E lá ficaram. Se bronzearam com o resto se sol, resenharam, cantaram, falaram, lembraram, beijaram, cansaram, cataram o rumo da casa e se amaram. Longe, num magazine em liquidação, todos viram a fila e andaram. Ao vivo, a dor tinha acabado.

domingo, 22 de setembro de 2024

Paulo Moura: bom de qualquer jeito

Por Edmilson Siqueira


O que é melhor de ouvir: Paulo Moura tocando em um quarteto com piano, baixo e bateria ou Paulo Moura tocando com um hepteto, com outros seis instrumentos, tocados ora por uns ora por outros músicos? A resposta é simples: os grupos são bons em qualquer formação e neles se destaca, claro, o sopro do sax alto de Paulo Moura, pontuando sempre com a mesma qualidade e inspiração. 
É o que se ouve por todas as 17 faixas de um CD que reuniu as músicas de dois LPs de Paulo Moura, o primeiro (o do hepteto) lançado em 1968 e o quarteto, lançado em 1969. 
O resultado é um excelente apanhado da obra desse que foi um dos maiores músicos que o Brasil já produziu. Aclamado pela crítica e respeitadíssimo no meio musical, Paulo Moura lançou cerca de 40 discos solos ou com um outro músico e teve participações em inúmeras coletâneas.  
Paulista, nasceu em São José do Rio Preto em 1932 e morreu em 2010 no Rio de Janeiro. Nesses quase 78 anos (morreu 3 dias antes do 78º aniversário), ele galgou os maiores postos que um instrumentista pode alcançar. Após sua morte, foi lançado, em 2012, o CD Paulo Moura & André Sachs - Fruto Maduro, pela gravadora Biscoito Fino, com dez músicas inéditas, um de seus últimos trabalhos autorais, resultado de uma parceria entre os dois músicos que começou em 2004 e duraria até os momentos finais do maestro. A última gravação registrada no disco foi feita em 25 de março de 2010, alguns meses antes do seu falecimento. No dia 21 de junho de 2012 foi inaugurado o Teatro Paulo Moura, um dos maiores e mais bem equipados teatros do interior de São Paulo, em São José do Rio Preto. Em 2013, o CD Fruto Maduro recebeu duas indicações para o 24º Prêmio da Música Brasileira como melhor álbum instrumental e melhor solista. 
O CD lançado em 2007 reúne dois timaços de instrumentistas. No quarteto, Paulo Moura com seu sax alto é acompanhado de ninguém menos que Wagner Tiso ao piano, Luiz Alvez no contrabaixo e Paschoal Meirelles na bateria.  
E pelas oito faixas que o quarteto produziu, nenhuma delas pode ser considerara apenas mais uma para completar o disco. São todas ótimas, não fossem clássicos da MPB, pois são magnificamente interpretadas pelos quatro bambas.  
Segue a lista para deixar qualquer amante da nossa música com água na boca: 
1 - Eu e a Brisa (Johnny Alf) 
2 - Aos Pés da Santa Cruz (Marino Pinto e Zé da Zilda) 
3 - Sá Marina (Antônio Adolfo e Tibério Gaspar 
4- Retrato de Beny Carter (Wagner Tiso) 
5 - Feitio de Oração (Noel Rosa e Vadico) 
6 - Aquarela do Brasil (Ari Barroso) 
7 - General da Banda (Satyro Tancredo Silva e José Alcides)   
8 - Samba de Orfeu (Luiz Bonfá e Antonio Maria) 



Como se vê, é coisa fina. E o mesmo podemos dizer do repertório do disco gravado com um hepteto. Embora nesse caso as músicas não sejam tão conhecidas popularmente (com exceção de 3 delas, também clássicos da MPB), seus autores não deixam dúvidas de que estamos diante de belas canções. 
9 - Filgueiras (Wagner Tiso e Luiz Carlos Alves) 
10 - Tema dos Deuses (Milton Nascimento) 
11 - Terra (Milton Nascimento e Fernando Brant) 
12 - Travessia (Milton Nascimento e Fernando Brant 
13 - Bonita (Antonio Carlos Jobim e Ray Gilbert) 
14 - No Brilho da Faca (Wagner Tiso, Novelli e Paulo Sergio Vale) 
15 - Homem do Meu Mundo (Marcos Valle e Paulo Sergio Valle) 
16 - Wave (Antonio Carlos Jobim) 
17 - Das Tardes Mais Sós (Milton Nascimento). 
O CD está à venda nos bons sites do ramo. Eu não encontrei no Youtube este CD com os dois discos, mas as músicas nele contidas estão espalhadas por lá.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Estar mil em bem pior, ou será Belchior?

 Por Ronaldo Faria


Açucena floresce apesar da mazela. Crença na infausta cena prolifera entre a vida real e a fera escondida pela vida maior. Nunca mais volta! Na revolta do destino, o desatino. O imbróglio de uma rua paralela onde o cavalo, livre, não vê mais a sela e o chicote. Talvez um bar noturno entregue às saudades insípidas que borbulham nas bolhas que sobem no copo de cerveja do bar. Um cowboy a retornar, a mulher a retomar o amor, trilha na perfídia do seguir.
No cheiro esmerado e guardado, rasgado e posto em queima num incenso qualquer, rola quem sabe Woodstock ou Janis Joplin. Senão, a simples e simplória paixão de uma filosofia. Se o fim de tudo é a morte, essa inconsequente e quente efeméride sem bolas de inflar e bolos de chocolate recheados de glacê, que chegue logo, em encanto. Num canto de apartamento qualquer, o corpo caído e flácido, temático, se tornará andador do novo andor.
No copo que faz demorar o demérito da bebida quente, o frigir de óvulos quando bate nos dentes da arcada debaixo. A reverenciar o passado, o escândalo da insurgente gente que nos recantos sem encantos se tornam tragédias, comédias e cantos. Talvez esmeris que troca poesia por sílabas e forja inodoras lembranças nas tranças da amada, ou nada. Menos de duas horas e já se fez história. E a despedida, catatônica, atônita cambaleante reverbera.
No campo tem uma flor que se chama gérbera. E sei lá se brota rápido ou se desconexa do sol da primavera. Pra mim, tanto faz ou tanto fez. No Canal de Suez, a morte briga para ter paz como tem a cana que morre no bagaço do engenho prenhe. Daqui, a limpar o teclado do fado que as gotas da embriaguez dão, vejo como a vida é foda. Entre a horda que busca a horta para curar a larica advinda, a cerveja voa para fora do copo. Insana e eólica tragédia.
No último beijo imperfeito, a mulher diz que é difícil voltar à realidade. Na cidade urbana e doidivanas, a trama de querer sobreviver amiúde. Embriagado, travado, cravado, gravado e postergado de si mesmo, o homem viaja nas loucuras que a brandura do anoitecer faz e fez. E volta às amargas saudades e lembranças. Em suas andanças febris e poéticas, lembra as amantes e infinitas pessoas. No fim, entoa a tragicomédia que a Cinédia não quis filmar.
 
Possamos nos permitir ir e vir de nossas loucuras e, talvez, quem sabe, ressurgir no dia seguinte, mesmo com a ressaca precípua e dores loucas numa cabeça tresloucada, voz rouca, na noite pouca. O caminhar fará sua parte, no aporte de seguir uma linha que vamos sempre transgredir.


quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Anoitecer em Belchior

Por Ronaldo Faria

 

Entardecer em tardia realidade. Belchior rola no ar. Em algum lugar alguém está a amar. Certamente haverá lábios rasgados por dentes afoitos e foices da paixão. No meio de tudo, retidão de palavras, tesão de corpos, livramento de profícuas ilusões que o tardio anoitecer traz nas nuvens e raios de sol.
Sistemático, pragmático, atávico, Jerônimo, homônimo de si mesmo, a esmo nas ruas, seguia pelas esquinas sonhando não bater em paredes chapiscadas. “Quem inventou essa maldição aos loucos que transitam em si mesmos? Qual foi o arquiteto ou pedreiro que decidiu impedir um pouso decente aos bêbados que trocam pernas na calçada infame de nenhuma fama?”
Para Jerônimo, ser de si mesmo, parcimônia entre o tempo que se tem e aquele que resta, a reza diuturna é o beijo na cadela que descansa sobre o som que dá rimas e ruma ao fim desejado. Na falta de um afago, ele sobrevive e cria a rotina cretina de fugir a cada sono insone e trôpego.
No derredor, falência de emoções e unções, o escuro já é dono de tudo. Ciências que um dia far-se-ão mera história de um mundo inexistente. Falências de órgãos e tragicomédias inéditas a cada nascer e por de um sol que vem e some, a assistir planetas e gametas girarem sem noção à busca de cifrões e comoções. “Disso tudo, o que diria Camões?” – pensou Jerônimo na sua inerte existência.
Na sua excrecência no mundo interligado, ligado umbilicalmente a outro umbigo que apenas vê a si mesmo, ele segue a trajetória meteórica e histriônica, exótica, de romper montanhas e entranhas, estranhas em paleolíticas monções de tempos atrás. Segue sem ver direito os carros que rompem o asfalto como fossem em busca da velocidade do som, brinca de passear nas árvores, se arvora de ser um ser vivente. Demente, mente para si de que a felicidade estará logo ali. Antes, Ali Babá e seus 40 ladrões saquearam o fim do arco-íris.
Agora, nem a seta enorme de uma tela branca irrita mais. Jerônimo, antagônico ser que se desdobra para ainda sobreviver, busca o cheiro da madrugada, as mesas do bar repletas de outras vidas ínfimas, a lua que se descobre infinda a brincar de poucas horas de verão, talvez um banheiro minimamente pronto para receber dúvidas, urinas e tresloucados desejos que nem mesmo o amor de ensejo saiba desejar.
Ao fim de tudo, no obscuro final de todos nós, com uma luz a anteceder o derradeiro olhar ou apenas a escuridão absoluta e resoluta que brilha lá fora, Jerônimo bebe outro gole, se engolfa de letras e rimas, pede apenas, se sobreviver, que tenha lucidez para um torpe banho tomar no acordar. Senta no meio de um fio de pedra e vocifera para ninguém ouvir. No entremeio geral, a certeza de que a solidão não depende de cifras musicais e cifrões a se espalharem e se espelharem numa tela de celular. A tristeza está intrínseca na seca de emoções que a vida traz..

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Uma trilha sensacional

Por Edmilson Siqueira


O filme "Feitos um para o outro", com Meg Ryan e Billy Cristal nos papeis principais, fez muito sucesso, sendo apontado como uma das grandes comédias românticas de todos os tempos. A cena do orgasmo simulado por Meg no restaurante se tornou clássica. 
Em inglês o filme se chama "When Harry met Sally", mas o nome em português até que não ficou ruim. Todo o roteiro e os diálogos levaram algum tempo para ficar prontos e tiveram a participação efetiva tanto de Meg quanto de Billy, este como comediante, inclusive, pode contribuir bastante.
Ou seja, o filme saiu redondo, caiu no gosto do público, arrecadou multo mais do que gastou; A roteirista Nora Ephron recebeu um British Academy Film Award, uma nomeação ao Oscar e uma nomeação ao Writers Guild of America Award para seu roteiro. O filme está classificado em 23 na lista das melhores comédias norte-americanas segundo o American Film Institute e número 60 no Bravo em sua lista dos 100 filmes mais engraçados. No início de 2004, o filme foi adaptado para o palco em uma produção estrelada por Luke Perry e Alyson Hannigan. 
Mas, além de tudo isso, o filme tem uma extraordinária trilha sonora. E quando eu digo extraordinária, não é um elogio qualquer. Afinal, ela foi toda feita com clássicos do jazz na voz de um excelente cantor: Harry Connick, Jr., que também é pianista e comanda um trio de jazz.  
O produtor Rob Reiner chegou ao cantor por uma indicação de Bobby Colomby, o baterista do grupo Blood, Sweat & Tears. Colomby deu a Reiner uma fita do cantor. Reiner ficou impressionado e considerou que Harry soava como um jovem Frank Sinatra.
O disco com a trilha foi lançado pela Columbia Records em julho de 1989. A trilha sonora, como disse, é composta por standards do jazz, cantados por Harry Connick, Jr., com uma big band e orquestra de Marc Shaiman. Pelo trabalho, Connick ganhou seu primeiro Grammy para melhor performance vocal masculino de jazz.
Grandes sucessos de jazz ganharam nova roupagem com Connick, ora cantando com grande orquestra, ora com seu trio com Benjamin Jonah Wolfe no baixo e Jeff "Tain" Watts na bateria. Também aparecem no álbum o saxofonista tenor Frank Wess e guitarrista Joy Berliner. A trilha sonora ficou em primeiro lugar na revista Billboard no seu top de jazz tradicional e dentro do top 50 na Billboard 200. Connick também excursionou pela América do Norte em apoio a este álbum, ganhando inclusive um disco de platina.
A trilha abre com "It Had to Be You", uma canção muito popular, composta em 1924 por Isham Jones, com letra de Gus Kahn. Os grandes acordes iniciais dão um molho especial para a entrada discreta do cantor. 
A segunda faixa e "Love Is Here to Stay", outro grande sucesso desde 1937 quando foi escrita por George Gershwin, que a completou pouco antes de sua morte Ira Gershwin fez a letra. 
A terceira é "Stompin' at the Savoy", que teve inúmeras gravações desde 1933 quando foi composta por Edgar Sampson, em homenagem ao famoso nightclub do Harlem. No post anterior que publiquei aqui ela também aparece, nas vozes de Ella Fitzgerald e Louis Armstrong. Mas aqui é apenas tocada, numa ótima performance do trio de Harry Connick, Jr.



Outro da dupla George e Ira Gershwin foi escolhida para ser a quarta faixa: "But Not for Me" também fez sucesso desde quando apareceu pela primeira vez, em 1930 no musical "Girl Crazy".
A quinta faixa é "Winter Wonderland" escrita em 1934 por Felix Bernard com letra de Richard Bernhard Smith. Ela é tocada até hoje em parte dos Estados Unidos como uma canção de Natal. 
"Don't Get Around Much Anymore" é a sexta faixa, mais um standart de jazz, composto por Duke Ellington em 1940, que primeiramente o chamou de "Never No Lament".  O título que a consagrou depois foi dado por Bob Russell, que escreveu a letra em 1942.
A seguir temos "Autumn in New York" composto por Vernon Duke, na cidade de Westport, em Connecticut no verão de 1934. Ela foi pura inspiração, sem nenhum outro objetivo, mas foi oferecida por Duke para o produtor Murray Anderson para o musical da Broadway "Thumbs Up!" 
A oitava faixa é "I Could Write a Book", essa escrita para um musical ("Pal Joey"), em 1940, por Richard Rodgers com letra de Lorenz Hart. No musical, ela é apresentada por ninguém menos que Gene Kelly e Leila Ernst. É um clássico, claro. 
Os irmãos George e Ira Gershwin est]ao novamente na trilha com a nona faixa,  "Let's Call the Whole Thing Off". Composta em 1937 para o filme Shall We Dance (teve um remake em 2004), no original ela é apresentada simplesmente por Fred Astaire and Ginger Rogers. 
A décima faixa é a versão instrumental, com o trio, da primeira - "It Had to Be You", - numa interpretação mais que correta e plena de suingue. 
A trilha se encerra com "Where or When" outra da dupla Rodgers e para o musical "Babes in Arms (no Brasil "Sangue de Artista"). Aqui, só Harry Connick, Jr. e seu piano dão à música uma singela e excelente interpretação. 
Para quem gostou do filme ou mesmo quem não assistiu, mas gosta de jazz, trata-se de um disco essencial. Ele está à venda por aí, nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=Cmg5scf0Ilw&list=PLBj--Mdk6WTlZmiKG9O3QerVOna1p52Vy .

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Zé dá o Tom final

 Por Ronaldo Faria


“Em quantos mililitros parar? Não enquanto existir espaço vago e vazio nalgum lugar e banheiro altaneiro em rota segura não naufragar?”

Genésio, esse ser que urge nos nossos pesadelos e desmazelos, demasiadamente íntegro e entregue a si mesmo, invade mares circunscritos em estações de metrô, caminha entre a Augusta e Angélica, Aclimação, senão, no sermão da Catedral da Sé. Já é noite. Dessas que trazem amores bem-vindos e certezas de que os temores da solidão far-se-ão.
Genésio, emérito e agraciado na Academia da Vida Profana e Infame, caminhava no Minhocão quase sem carros. Perto ele, um senhor levava seu velho cão para mijar sossegado. Abaixo deles, um sem-número de vidas inauditas sublimavam o fato de ter nascido enquanto outros tantos dos Jardins e adjacências comiam para depois, enfastiados, vomitar. 
Genésio, que a gênese da criação fez exemplo daquilo que existe em si, volatiliza cracolândia e infâmia do Palácio dos Bandeirantes. Nas marginais da vida, marginaliza-se. Na plêiade de cores e odores que evapora, escapa entre os homens. Surge tênue e pleno. Afinal, em todo o final, é sândalo e fedor ultimado. No mágico estertor da maior cidade brasileira, diria o poeta que a consciência vai, junto com os lençóis cheios de fuligem, pra lavanderia.

sábado, 14 de setembro de 2024

Vem Tom Zé

 Por Ronaldo Faria


Concreto que traz o feto e até tátil texto. Na textura da pele que sombreia o sol no meio de paralelepípedos e epítetos do poeta informal, o calor, infernal, não dá happy ou end. No urro que o sussurro traz, a loucura insípida dá sinais que inépcia de quem da filosofia dá tal resposta surge certa. Na posta do prato feito, rarefeito e morto, o peixe surge como mestre-sala diante das batatas que brigam entre si para serem porta-bandeira. Nenhuma delas sequer quer ser passista ou rainha de bateria. Profana gama de possibilidades, a felicidade vê na cidade sua concretude e ataúde num desabar sobre os homens. Nos balaústres trágicos que escondem vidas perdidas e urdidas, feito japoneses da Liberdade como kamikazes, o mundo vai abreviando o tanto que a chuva não trouxe em enchentes e mentes. Desavisado e catártico, o mendigo da Praça da Sé nem sabe o que é fé. Seu marco central é uma garrafa de pinga e aquilo que a vagina da louca do crack deixa ser. Nos bairros nobres, onde apenas as pernas dos barões do passado têm acesso, o poste aceso pranteia o fim. No asfalto infausto por onde passam milhões de faróis e vidas, a crueldade do dinheiro no bolso ou no cartão de plástico se impõe.

II

Nas priscas eras, São Paulo, com um imperador comedor de suas vassalas mil, foi palco de uma liberdade eufórica, utópuca, dramática e quase antecipação do carnaval. Entre cavalos, burros e seguidores promíscuos, disse que o Brasil era livre para ser dominado por seu legado. No alvorecer de algum lugar, fez surgir um país em que a propina em tudo dá. É só plantar. E como se plantou em centenas de anos... Os alqueires que nem a mais remota Vila Valqueire carioca sabe expressar, logo se transformaram em milhares de fidalgos. Barões, condes, viscondes, puxa-sacos, coronéis, fiéis seres de revés, todo o tipo de gente virou agente perfumado e programático. Na maledicente história que a escória não sabe lembrar, a solícita solicitude que se faz somente pandeiro e violão. Na feira, o peixeiro grita que o seu produto acabou de sair da água. Só se for do Rio Tietê. Como tempero há mil e umas doenças a se pegar e florescer. Vamos, portanto, nos agregar. Mas é promoção! Esqueçam a futura emoção! A morte para todos é certeza de unção. Logo, sejamos seres inocentes e tementes, indecentes e proeminentes. Nos postes e luzes, argonautas do asfalto, infaustos seres concretos, nos transformemos em insanos poetas bêbados e vívidos nos lingotes de ouro que nunca chegarão nem perto de nossos cangotes. Frangotes, continuemos a brigar pelo creme dental, esse ser fatal para nossos dentes não despencarem podres na ponte da água estagnada e estaiada...

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

A pintura da beleza da rua

 Por Ronaldo Faria


Cruz no credo. Credo na cruz. Josualdo, desses que acredita e crê piamente que a vida irá um dia para o além, acabava de rezar o terço pela sexagésima vez, quando entra Pafúncia. Apesar do nome, desses que deveria virar denúncia criminal contra o pai e o cartório, era linda. Dessas que o mais incapaz pintor faria a Mona Lisa virar uma mina lisa na esquina sem ninguém reparar. Com ela a entrar sob o pórtico de madeira, a pomba que teimava em cagar na escada se assusta. “De onde terá vindo tal obra de arte desse que dizem ser o Criador?”
Josualdo, crente convicto, invicto nas tramas do amor, que nunca tinha tocado um lábio sequer, no passado quase um seminarista, não fosse semianalfabeto, parou aquilo que fazia. Achou que a mãe de Jesus, mulher de José e fecundada por uma pomba igual a que cagava, estava a entrar. Só de maldade, um raio de luz invadiu pelo vitral mais limpo o lugar. E bateu direto no rosto da mulher. “Meu bom Senhor, o amor será isso? Desejo, criatura e flor? Flor a nascer no louvor?” Simplório, temeu enfartar sem sequer sentir alguma dor.
À medida que Pafúncia andava sobre o mármore rosa encerado que a igreja mostrava aos pobres de espírito, Josualdo suava em cântaros e cantava loas de louvor. Mas via, no meio de sua calça, algo crescer e endurecer em clamor. “Senhor, aqui não! Tenha dó de quem sempre em ti se dedicou!” Mas a mulher, que nenhum homem com seu hímen deixaria de sonhar, se criava e surgia mais forte que o medo da morte no inferno chegar. Sem ágio de mercado, ela era o naufrágio de tantos anos perdidos. Era o lumiar e o vazio juntos e untados.
Enlouquecido, sem saber o que acontecia consigo e seu corpo, até então oco, Josualdo correu para a rua. Desnorteado, sem norte ou sul, correu para longe da egrégia igreja. Queria apenas ter respostas que a hóstias já não lhe davam. E tanto mais correu e caiu, levantou, correu. Queria ficar o mais longe possível do pecado. Era isso. Aquela mulher de seios fartos e coxas que dançavam ao vento fátuo era o demônio a lhe cobrar crença. Exausto da vida, no cadafalso que todos nós um dia subimos, não vê que um ônibus chega rápido. Mal tem tempo de dar o último suspiro. Na igreja, Pafúncia recebe a ligação de mais um cliente.

(A Anavitória)

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Trânsito a transitar

 Por Ronaldo Faria

 

-- Tá pensando que o vento é fresco, malandragem? O vento é foda!
Clemêncio, demente e clemente da realidade, transitava entre os tantos e tântricos carros no trânsito da cidade que fervilhava e afunilava no túnel que juntava zonas e lugares a chegar. Ser só, solidário na sua dor, apropriado para estudos psiquiátricos, ia na fuga de camisas de força e flores mortas graças a fungicidas. Era um ser a mais, desses que a gente esbarra na orla ou nas comunidades do dia. Nem melhor ou pior. Apenas um a mais na mais premente sangria.
Clemêncio, inclemente profeta do mundo, proxeneta de sua solidão, há muito morava numa ou noutra marquise, dessas que ao menos escondem os corpos da chuva que teima chegar. Mas tinha suas vantagens: nada de imposto de inexistente renda, celular a consumir horas de vida, obrigações que surgem com um CPF qualquer. Ele era apenas ele. Sem pena de ninguém sequer precisava entrar em igrejas para orar em alto amém. Deus dele nem sabia crer.
Clemêncio, desses seres que cruzamos encruados no universo onde poesia e verso não têm vez, era somente número social. “O próximo prefeito deles irá lembrar”, dizia Carolina, carola e filha de Maria. Assim, no escuro obscuro que meia dúzia de postes traz, ele desaparecia. Sua azia diária e bêbada sequer tinha sal de fruta. Na estrada de quem se atrasa do mundo, ele somente acreditava, em mente, que seu futuro soturno um dia seria sem luto.
 
(Ainda ao novo frescor da MPB)

domingo, 8 de setembro de 2024

Ella e Louis

 Por Edmilson Siqueira



"Ella e Louis. Sobrenomes não são necessários e nenhuma explicação é necessária para saber que esse era um encontro musical feito no paraíso do jazz."   
Assim começa um pequeno texto de apresentação do disco "Ella And Louis Again". E pelo "again" do título, já se deduz que esse não foi o primeiro encontro dos dois geniais intérpretes. Esse foi gravado em 1957, um ano depois do primeiro e já então clássico "Ella & Louis" e, diz o texto, "é uma triunfante reunião - o nível de arte altíssimo, uma portentosa mágica". Como se tudo isso não bastasse, eles são acompanhados por nada menos que o trio de Oscar Peterson. 
São três discos (o segundo é duplo) essenciais para quem aprecia jazz tanto vocal quanto instrumental, afinal os dois artistas marcaram o século passado como os melhores em suas artes, deixando um legado insuperável de emoção e beleza.  
Ambos os CDs, da Verve, a maior gravadora de jazz dos Estados Unidos, são totalmente fiéis aos discos de vinil originais, com encartes substituindo os longos textos das contracapas dos LPs, onde havia espaço de sobra.  
Um dos textos, de Norman Granz, já começa dizendo que "não há muito que alguém possa dizer sobre um álbum cujo título é 'Ella and Louis Again'. (...) Eu duvido que haja alguém hoje que ame música, e que não conheça Ella Fitzgerald e Louis Armstrong". Sobre o que pode assinalado, eu suponho, é que nós temos novamente alguns dos melhores produtos dos melhores compositores da nossa época." 
Outro trecho do famoso crítico musical: "Eu não quero recomendar nenhuma das faixas para você, porque cada música, do seu jeito, é tão boa quanto as outras; mas há uma que eu gosto de comentar." E ele explica que na faixa sete do disco  2, "Stompin' at the Savoy", Ella e Louis deixam, a partir de um determinado momento, a letra oficial de lado e passam a improvisar, deixando transparecer que estavam realmente se divertindo ao inventar versos sobre o famoso tema.  Sobre essa música, a Wikipedia informa que, embora ela seja creditada a Benny Goodman, Edgard Sampson, Chic Web e And Razaf (como está no CD, aliás), ela foi escrita e arranjada por Sampson e a letra foi colocada depois por Razaf. 
O primeiro disco de Ella e Louis se tornou antológico em pouco tempo. Além do conteúdo musical, está nele uma foto, hoje icônica, dos dois artistas sentados em cadeiras, talvez descansando entre uma sessão e outra ou esperando o estúdio abrir, que revela a simplicidades dos gêniios. É uma das fotos que acompanha esse post.  
Todas as músicas já eram mais ou menos conhecidas quando foram gravadas por Ella e Louis. Depois da gravação, então, alcançaram a marca definitiva.   
A trilha sonora se abre com os dois cantando "Can't We Be Friends?" (Kay Swift e Paul James), primeiro Ella e depois Louis. A qualidade da faixa, acompanhada por um piano mais que seguro, um baixo bem ritmado e uma bateria discreta, tem ainda o trompete de Louis enfeitando o arranjo. 
O show continua com "Isn't This a Lovely Day? (Irving Berlin), uma lenta canção que exige de Louis uma interpretação pensada, ele que está acostumado a canções mais movimentadas. Já Ella dá à música qualidade que poucos sabiam que ali havia.  



A mais que clássica "Moonlight In Vermont" (Kart Suessdorf e John Blackburn) é a faixa seguinte e a qualidade de interpretação se repete. À época, os críticos não encontravam palavras suficientes para elogiar o resultado da união dos dois geniais artistas. E fica difícil mesmo. Não há faixa "mais ou menos". 
Por isso, vou apenas nominá-las aqui, já que todo e qualquer elogio é mais que merecido e temo ficar repetitivo a cada faixa. 
O disco segue com "They Can't Take That Way From Me" (George e Ira Gershwin); "Under a Banket of Blue" (Jerry Livingston, Al J. Neiburg e Marty Symes); Tenderly (Walter Gross e Jack Lawrence); "A Foggy Day" (George e Ira Gershwin); "Star Fell on Alabama" (Frank Perkins e Mitchel Parish); "Cheek to Cheek" (Irving Berlin); "The Nearness of You" (Hoagy Carmichael e Ned Washington) e "April in Paris" (Vermon Duke e E. Y. Harburg).  
O segundo disco foi duplo, aquele "Ella And Louis Agains" do início do artigo, sem necessidade do sobrenome para reconhecer de quem se trata. A única diferença é que agora o quarteto do de Oscar Peterson, além de Herb Ellis no violão e Ray Brown no baixo, tinha Louie Bellson na bateria. No primeiro disco, o baterista foi Buddy Rich. E, claro, Louis Armstrong em quase todas as faixas com seu divino trompete. 
E para não cair no lugar-comum dos elogios de sempre, vou logo listando as músicas para que, quem não ouviu ainda e conhece um pouco de jazz, imagine o que temos de maravilhas musicais e corra log a um site de vendas de CDs e compre os dois - o simples e o duplo - de uma vez só.  
As faixas do primeiro CD do segundo disco: 
- Don't Be That Way (Benny Goodman, Edgar Sampson e Mitchel Parish) 
- Makin' Whoopie (Walter Donaldson e Gus Khan) 
- They All Laughed (George e Ira Gershwin) 
- Comes Love (Sam Stept, Lew Brown e Charles Tobias) 
- Autumn in New York (Veron Duke) 
- Let's Do It [Let's Fall in Love] (Cole Poter) 
- Stompin' at the Savoy (Benny Goodman, Edgar Sampson, Chic Webb e Andy Razaf) 
- I Won't Dance (Jerome Kern, Dorothy Fields, Oscar Hammerstein II - Otto Harbach e Jimmy McHugh) 
- Geme, Baby, Ain't I Good to You? (Don Redman e Andy Razaf) 



 Segundo CD: 
- Let's Call the Whole Thing Off (George e Ira Gershwin) 
- These Foolish Things [Remind Me of You] (Harry Link, Jack Strachey e Hilt Narvell) 
- I've Got My Love to Keep Me Warm (Irving Berlin) 
- Willow Weep for Me (Ann Ronell) 
- I'm Putting All My Eggs in One Basket ((Irving Berlin) 
- A Fine Romance (Jerome Kern e Dorothy Fields) 
- Ill Wind (Harold Arlen e Ted Koehler) 
- Love Is Here to Stay (George e Ira Gershwin) 
- I Get a Kick Out of You (Cole Porter) 
- Learnin' the Blues (Dolores Silvers) 
Os dois discos, o simples e o duplo, estão à venda nos bons sites do ramo.
O primeiro disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=Vh7oIP-QSHs&list=PLL-NbN8uTOijqTJxQ9BMFcDe7UiWDMVwc
O YouTube também disponibiliza o segundo: https://www.youtube.com/watch?v=dtLerPwneMw&list=PLC-4c-dTv6N2o_QYwb9yVPWh2qHxNdsYm

Emile Zola ou Cláudio Zoli?

 Por Ronaldo Faria   A noite rolava meio emblemática e meio trágica na sua atávica forma de ser e sobreviver. Casais se lambiam, se falava...