segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Seiscentos mil réis

 Por Ronaldo Faria


 
-- Zé Ruela, e aí? Tudo nos trinques?
-- Agora está, Valêncio. Hoje fui recebido com tapete vermelho no banco. Senta aí e vamos encher a cara!
-- Foi lá pra lavar o salão?
-- Que nada. Fui depositar seiscentos mil contos de réis que ganhei na milhar do leão.
-- Como assim? Ganhou na banca do Pirizonha?
-- Ganhei. Lembra que eu sonhei com a jararaca da minha sogra? Como leoa não tem, fui no macho em questão. Deu na cabeça a milhar!
-- E o banco?
-- Pois é. Lembra que o vigilante não deixava nem eu amarrar o sapato defronte?
-- Lembro. Ele logo te mandava circular...
-- Pois então. Cheguei na porta e ele veio logo querer bronquear, mas aí eu abri a sacola de feira e mandei ele se quisesse até contar. Precisava ver os olhos dele arregalados e esbugalhados. Não só abriu a porta como chamou o estafeta pra me servir um café passado na hora.
-- Porra, Zé Ruela, tratamento vip.
-- Daí veio um tal de consultor de investimentos e um gerente de beca passada com louvor e dependurada em cabide há tempos.
-- Caralho, tudo nos conformes desejados?
-- Mais do que isso. Mandaram comprar empada de camarão e até uma cervejinha gelada, enquanto contavam nota por nota dos seiscentos mil réis. E foi um tal de senhor pra lá, senhor pra cá, deseja algo mais. Eu fiquei até acabrunhado. E olha que eu sou malaco criado.
-- E aí, aplicou toda essa grana em quê?
-- Sei lá. O tal do consultor propôs até uma viagem à Nova Iorque pra eu conhecer a tal de bolsa dos gringos. Mas como eu mal sei falar português, disse que não. Melhor ficar aqui pela Lapa. E bolsa é coisa de mulher...
-- Fez bem. Confiar em gringo é coisa de otário. Mas, afinal, deu tudo no quê?
-- Deu que eu virei cliente de um pintor maluco da Holanda que cortou a própria orelha.
-- Cacete, cortou seco com navalha?
-- Sei lá. Pintura de tela é coisa que só vale se for daquelas gostosas peladas. Museu pra mim é coisa de passado. E eu quero é borboletar enquanto durar.
-- Mas e aí, então virou marajá?
-- Claro que não, mas agora virei cliente nota dez. O vigilante inclusive me convidou para ir jantar na casa dele, com direito a uma branquinha de alambique. Quer dizer, o dinheiro com certeza pode não trazer felicidade, mas faz algumas pessoas passarem a ver você e te darem atenção.
-- É mesmo, como arrastar o cu na brita!
-- Mas deixa pra lá. Seu José, desce mais umas duas Brahmas que hoje o milionário da milhar está com tudo pra pagar! E uma porção da boa antes de passar a garoa. Mal sei assinar, mas me deram um tal de talão de cheques  que não precisa sequer de checagem! E depois nós é que somos a tal de malandragem...
Sorrindo, o gajo do Alentejo e dono da birosca levou logo um engradado com direito a filé de gato temperado e bem passado no alho.
 
(Ao som de Moreira da Silva, ou Kid Morengueira)

domingo, 24 de agosto de 2025

Diana Krall canta o Natal *

Por Edmilson Siqueira


Claro que o Natal ainda está longe, mas boa música, mesmo que os temas sejam natalinos, não tem tempo certo para ouvir.  
No Brasil não chega a ser uma tradição, mesmo porque há poucos (e boas, por sinal) músicas que versam sobre uma data específica. Duas se destacam por aqui, embora pudesse haver muito mais músicas sobre eles: são as músicas de Natal e das festa juninas. Se houvesse mais, talvez tivéssemos mais cantores se entusiasmado e gravado discos específicos com esses temas. 
Já nos Estados Unidos é uma tradição. Quase todos grandes intérpretes fazem, no meio ou no fim da carreira, um disco de Natal. De Sinatra a Bruce Springsteen, muitos não deixaram a tradição passar em branco. 
E um dos discos mais belos só com temas natalinos é da grande pianista e cantora  Diana Krall. Seu disco comemorativo tem o título tradicional, que muitos artistas usaram: "Christmas Songs". 
Lançado em 2005, o disco marca a primeira incursão de Diana Krall em um álbum inteiramente dedicado ao repertório natalino, pois ela já havia incluído canções de Natal em projetos anteriores, mas nunca havia se debruçado sobre um conjunto completo de standards festivos. Aqui, ela abraça o espírito natalino com a mesma atenção ao detalhe, sensibilidade e swing que caracterizam toda a sua discografia. 
E pra deixar a coisa melhor ainda, o álbum conta com o suporte da The Clayton/Hamilton Jazz Orchestra, um dos mais respeitados grupos de big band da cena contemporânea. A presença dessa formação confere ao disco um ar clássico, remetendo à tradição dos registros natalinos de cantores como Frank Sinatra, Ella Fitzgerald e Nat King Cole. Ao mesmo tempo, o trabalho mantém a assinatura pessoal de Krall, com arranjos refinados e interpretações que equilibram calor, sofisticação e um toque de intimidade. 
O repertório é composto por 12 faixas, todas retiradas do cancioneiro natalino norte-americano, com direito a momentos de puro swing, baladas românticas e passagens que evocam o espírito caloroso das festas. 
A produção do disco é assinada por Tommy LiPuma, colaborador frequente de Krall, que mantém o equilíbrio perfeito entre a grandiosidade do big band e a clareza da voz. A qualidade sonora é impecável, captando tanto o calor dos metais quanto as nuances mais sutis do piano e da interpretação vocal. Não há excessos: cada instrumento ocupa seu espaço, e a mixagem favorece a fluidez e a coesão do conjunto. 
Um elemento que torna Christmas Songs especial é a forma como ele une a tradição e a personalidade artística. Ao mesmo tempo em que respeita as versões consagradas das canções, Krall imprime sua marca: um fraseado levemente atrasado em relação à batida, a escolha de tempos mais relaxados e a sutileza interpretativa que a diferencia. Não é apenas um disco para embalar ceias e reuniões familiares; é também um trabalho de jazz sólido, que, com certeza, pode ser apreciado em qualquer época do ano. 
E essa união da atmosfera natalina com a qualidade musical de alto nível motivou muitas críticas positivas ao disco que, como era de se esperar, foi muito bem sucedido comercialmente, alcançando destaque nas paradas de jazz e vendendo bem durante vários anos consecutivos nas festas de fim de ano.  
"Jingle Bells" (James Pierpont), que abre o disco, ganha uma interpretação vibrante e cheia de swing. O arranjo de Mandel traz sopros bem definidos, um ritmo contagiante e a voz de Krall brincando com o tempo.  
"Let It Snow" (Jule Styne e Sammy Cahn), a segunda faixa, mantém a energia e o clima de festa. Diana Krall parece se divertir, usando pequenas pausas e variações rítmicas para dar frescor a um clássico tantas vezes regravado. 
"The Christmas Song" (Meo Tormé e Robert Wells) é o momento mais aconchegante do álbum. A interpretação é intimista, quase como um sussurro, lembrando as gravações de Nat King Cole (a quem ela já homenageou num disco sensacional), mas com um toque pessoal: um fraseado levemente atrasado e acordes no piano que aquecem a música. 
Na quarta faixa, "Winter Wonderland" (Felix Bernard e Richard B. Smith) Diana Krall acelera o passo, explorando o swing do big band. Os sopros brilham mais e há um diálogo divertido entre a voz e a seção rítmica. É uma faixa que mostra sua habilidade de se integrar à orquestra sem perder protagonismo. 
"I’ll Be Home for Christmas" (Kim Gannon, Walter Kent e Buck Ram) a quinta faixa, marca uma das interpretações mais emotivas do disco. O andamento lento e os arranjos minimalistas valorizam a melodia e a letra, evocando a saudade e o aconchego das festas passadas em família. 
"Christmas Time Is Here" (Vince Guarakdi e Lee Mendelson), a sexta faixa, é a canção imortalizada pelo especial de TV "A Charlie Brown Christmas" e aqui ganha um tratamento jazzístico refinado. Krall mantém o ar melancólico da melodia, mas acrescenta acordes ricos no piano, dando um sabor único à despedida. 



A faixa número sete, "Santa Claus Is Coming to Town" (J. Fred Coots e Haven Gillespie) é um dos pontos altos em termos de energia. A bateria de Jeff Hamilton dá o impulso certo, enquanto os metais acentuam cada frase. Krall canta com malícia e humor, transformando a canção em um número de jazz cheio de personalidade. 
A seguir temos "Have Yourself a Merry Little Christmas" (Ralph Blane e Hugh Martin). É uma das interpretações mais tocantes do álbum. O fraseado é introspectivo, e o arranjo, sutil, deixando cada palavra respirar.  
A nona faixa é preenchida por uma música digamos, obrigatória em álbuns natalinos. Trata-se da clássica "White Christmas" (Irving Berlin) que  recebeu uma leitura límpida, com atenção ao texto e melodia. Krall opta por um clima de respeito, com timbres de sopros reminiscentes das big bands dos anos 40. 
"What Are You Doing New Year’s Eve?" (Frank Loesser), um tema que se refere à virada do ano e é celebrada em tom romântico e sonhador. Diana Krall mantém o ouvinte próximo, quase em confidência, enquanto o piano e a orquestra se entrelaçam em harmonia perfeita. 
"Sleigh Ride" (Leroy Anderson e Mitchel Parish) é uma música divertida e ritmada, evocando  imagens cinematográficas de passeios na neve. O arranjo permite que o piano de Krall apareça mais, com frases rápidas que lembram o ragtime. 
O disco se encerra com "Count Your Blessings Instead of Sheep" (Irving Berlin), que é uma balada delicada, que foge do óbvio repertório natalino e que Krall interpreta com sensibilidade, sustentada por arranjo suave e espaçado. 
Se algum fã de jazz torce o nariz quando ouve falar de disco com canções natalinas, esse álbum desmistifica esse comportamento. Trata-se de um grande disco, com produção impecável, repertório selecionado e que nada fica devendo a outros grandes discos de jazz.  
O CD está à venda nos bons sites do ramos e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=QcGW4aQNA9k&list=PL2bmVPQajM7bWYRz5a6NHq1ZxJbpn7_ij . 

*A pesquisa para este artigo teve o auxílio da IA do ChatGPT.

sábado, 23 de agosto de 2025

Dando o que tiver de sê-lo ou dá-lo

  Por Ronaldo Faria


-- Dar-te-á?
-- Dar-te-ei.
-- Deveras assim será?
-- Com a certeza do meu sim.
Ensandecidos, enlouquecidos pelo novo porvir, Benjamin e Consuelo trocam beijos e carícias sem fim. Encontraram-se há pouco mais de três dias, mas já trocavam juras e picardias. Nus, com suas peles a pelejarem descobertas em cada centímetro do quadrado corporal recém conquistado, emitiam palavras nas lavras que se espelhavam pelo quarto. No espelho de parede, quieto no seu canto, o encanto de anuviamento melancólico. Por sorte Consuelo não estava com cólicas. Eólicas, as emoções de ambos se espalham e se esvanecem nas preces de quem conhece a solidão.
-- Faremos tudo?
-- Como turbilhão?
-- Não, apenas como amantes.
-- Doravante, sim.
Suados, amassados feito lençol de cetim, cansados de tanto ir e voltar, descer e subir, penetrar e sair, Benjamin e Consuelo apenas se olham com juras de amor. Nas cortinas que descortinam a janela esquecida na praça da cidade que se desmancha em quirelas, o reflexo do sexo que se faz magia e procela. Escancarado no telhado, tendo de fundo um fado enfastiado, o resto de sol espera bater o cartão para o luar que deve ter se perdido no trânsito da constelação. No meio de tudo, taciturno, existe um imenso coração em solidão. Na amplitude de toda a atitude resta a tardia e decrépita ilusão.
 
(Ao som da Casa Ramil)

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Fogueira a arder

Por Ronaldo Faria

 

O chamego do casal no calor das chamas da fogueira intermedia algo que transpira amor e paixão. Traz novas lágrimas aos olhos translúcidos e aflitos que se entregam ao tempo frio. Atemporais, déspotas do mundo que os rodeia e os une nas pernas e braços como fossem animais, homem e mulher dão os braços na dança que serpenteia a saudade. Ao tempo que se esvai e vai sabe-se lá para que lugar, as labaredas ardem etéreas a cobrir a terra orvalhada do chão. Na dança a levantar pó e poeira que vagueiam sem eira e bem beira, um copo pinga a gota quente da mais leviana aguardente. No cérebro que espirra seu torpor gripal, falácias doidivanas e vãs tentam se achegar. Tiritante no vento que se refaz feminino na saia rendada da prenda, o casal viaja mil caminhos na metáfora de ser feliz. Bravo com tanto barulho, o pássaro aquietado no galho seco caga na cabeça do padre contrito a fingir que sabe rezar.

(Ao som de Vitor Ramil)

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Carinho de dedo (como diz o Pedro Salomão)

 Por Ronaldo Faria


 
Eles acordam sempre na madrugada para se amarem e se amarrarem. Parecem mares nas marés que se jogam nas pedras de um cais qualquer e brincam de rolar conchas côncavas ou convexas à areia de minúsculas pedras que piscam na lua ou no sol.
Eles despertam doidivanas em chamas requentadas que não há bombeiro que apague e se atiram aos tiros da pólvora seca que sombreia a cotovia a gorjear no sarau. Sabem que pouco têm além de algum vintém, mas não ligam para nada além de si.
Eles apenas voam sem ter penas. Vagueiam nas dunas que as turmas das loucuras benfazejas constroem com seus próprios pés e voltam antes das portas das camas desforradas pelo amor se fecharem aos sonhos bisonhos que estão sempre sob o nariz.
Eles sonham sonhos tresloucados e tragados de dias repetitivos e restritivos à felicidade, mas não desistem de andar. Sobreviventes e viventes sabem nadar até o porvir. E da boleia de onde se vê a terra prometida apenas gritam que há bem-querer.
Eles transitam entre a loucura e a picardia. Valsam em salões inexistentes, são seres urgentes e prementes de si mesmos. Oram aos loucos e carentes de cafuné, apesar de não terem fé. Mas riem nas lamúrias urdidas que o tempo entrega e sempre traz.
Eles, malucos feito mamelucos que nem sabem o que são, transitam voláteis e frágeis pelos impropérios que o mundo dá. Como um só, solitários e donos de um palanque em que pregam a picardia de gostar, brincam de casal efêmero e contumaz.
Eles, que tanto caminharam em terras de sol e solstícios de muitos verões, se tocam e se trocam nos cantos da cama que o trocar de corpos traz. Sabem que nunca será a hora de parar. Da maternidade à sepultura muita sutura de coração far-se-á.
Eles, por fim, na performance que nem os mais profanos e performáticos artistas de um circo sem nome podem fazer ou criar, apenas querem ser. E assim, na imensidão etérea que a Terra dá e traz, ficam à espera de um dia as vidas, feito as cores de um camaleão, juntar.

domingo, 17 de agosto de 2025

Uma coletânea de Chet Baker*

Por Edmilson Siqueira


Coletâneas com um dos maiore trumpetistas de todos os tempos não são raridade. Ele gravou muita coisa e copilar seus grandes momentos, embora seja um trabalho difícil (quase tudo é muito bom), foi - e continua sendo - obra das várias gravadoras pelas quais ele passou.
Chet Baker, hoje um cult mais que admirado, não teve a vida fácil que o talento e a beleza da juventude podem sugerir. Viciado em drogas, praticamente moldou sua carreira em torno delas, talvez abreviando uma vida (ele morreu aos  59 anos de forma misteriosa) que ainad tinha muito para dar.
A coletânea em questão é "White Blues" e tem uma caractarística que a diferencia das outras. Lançada em 1997 pela gravadora Camden (selo BMG) como parte da série Camden Jazz Masters, ela reúne gravações instrumentais de destaque de Chet Baker, extraídas de duas fases distintas de sua carreira: as sessões italianas da RCA Bluebird, em 1962, e gravações para a Timeless Records, realizadas em 1983 e 1986 na Holanda. 
O melhor vem agora: são onze faixas clássicas do jazz, abrangendo desde standards consagrados até composições originais contemporâneas, com duração aproximada de 72 minutos. 
Como se trata de uma compilação de momentos distintos, a variedade de temas corre solta.
A primeira faixa traz "White Blues" (Michel Graillier) composição que dá título à coletânea, com cerca de 5 minutos de duração.  
A seguir vem o clássico "Round Midnight" (Thelonious Monk e Williams) – um dos mais profundos standards do jazz, onde Chet solta sua imaginação durante mais de 10 minutospara deleite de todos nós. 
O disco segue com criteriosa seleção em termos de qualidade.
A terceira faixa é "Blues in the Closet" (Pettiford), onde o swing de Chet, coisa rara em suas gravações, sobressai, com ótimo acompanhamento de piano, bateria e contrabaixo. 
"Swift Shifting" (Danko) é a quarta faixa, um pouco mais contida que a anterior, mas sempre agradável aos ouvidos.
Outro clássico não só do jazz, mas da própria música norteamericana, vem a seguir: "Somewhere Over the Rainbow (Arlen / Harburg). Chet passeia pelas longas notas da melodia. Curiosamente, com apenas 3 minutos e 28 segundos, é a menor faixa do disco. 
"Caravelle" (Jon Burr o baixista da faixa), sexta faixa, já retorna ao jazz tradicional do quarterto de trompete, piano, baixo e bateria. 


A sétima faixa é outro clássico: "Dolphin Dance" (Herbie Hancock), uma das musicas do álbum do autor que provocou o reconhecimento dele como um grande compositor e pianista de jazz.
O disco se completa com as seguintes faixas: 
"Ellen and David" (Charlie Haden); "Star Eyes" (Raye / DePaul); "Well You Needn’t" (Monk) e 'These Foolish Things" (Maschwitz / Strachey). 
 Vale acrescentar que as gravações trazem músicos distintos conforme a origem das sessões. As sessões de 1962, da RCA, em Roma, tiveram Amadeo Thommasi (piano), Benoit Quersin (contrabaixo), "Daniel Humair" (bateria), René Thomas (guitarra) e Bobby Jaspar (sax tenor e flauta)
Já as sessões de 1983 e 1986, no Studio 44 na Holanda) tiveram Michael Graillier e Harold Danko piano), Riccardo Del Fra e John Burr (contrabaixo) e Ben Riley (bateria)
Para alguns críticos, essa coletânea serve como uma ponte entre momentos distintos de sua carreira: a década de 1960, marcada por um jazz mais introspectivo e sutil, e os anos 1980, período de renascimento criativo na Europa. Já para fãs e estudiosos, "White Blues" é um atestado da versatilidade de Baker — capaz de transitar entre introspecção e fluidez — e sua capacidade de manter a integridade musical mesmo em fases diferentes da vida.
Enfim, para ouvintes que buscam melodia, sensibilidade e história, esse disco é um ótimo convite.
O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser pouvido na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=Mcr1AtIhEgA&list=PLWvoWtBMKQZKgST69mozCnr4khF_NfMBw

*A pesquisa para este artigo fpoi feita com o auxílio da IA do ChatGPT.

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Papeando no papo

Por Ronaldo Faria

-- O copo está esvaziando cedo demais...
-- É essa secura do tempo. Não tem jeito.
-- Mas, a despeito disso, vale ao menos estar aqui.
-- Com certeza. Eu disse que, passado o drama, iríamos fazer a festa.
Eles eram um casal de mais de 40 anos de encontro casual, desses que surge de repente feito rompante ligeiro debaixo de qualquer escada. Juntos e separados num quadrilátero que imita ser uma esquina da Visconde de Pirajá, sorvem a vida estapafúrdia e etérea que se esparrama numa rama de papéis amarelados pelo tempo. E sorriem da vida, das tramas implícitas, das diuturnas leviandades a que se entregaram e com as quais dragaram horas e torras de cafés. Aos seus pés o destino desatinou de correr das ampulhetas que pensaram ter e se fez num tanto faz. No universo de qualquer verso, um brincar de se dar.
-- Por favor, mais dois.
-- E de bom, o que aconteceu?
-- Sei lá. Talvez saber que o tempo corre rápido mas deixa rejuntar.
Ao derredor, sem dor, um mundaréu de gente passa e perpassa a cena. Num galho a pomba se prepara para dormir. As crianças, porém, ainda brincam no jardim. Carros estacionam suas luzes e freiam nos meios de um fio pífio que há entre a calçada e a vida. No céu há uma lua rotunda e redonda que se espalha para o mundo abaixo espelhar de prata e luar. O primeiro bêbado deixa o lugar. Logo outro chegará. Na androginia que é a noite que se avizinha, corações acordam no acorde de apenas querer ser feliz. E almas despertam perto do cão que urina no poste, presto a buscar um pedaço de laje para dormir.
-- Tive saudade, sabe.
-- Muita?
-- Não. Imensa. Sem palavra na antropofagia.
Aos poucos, roucos, os loucos da madrugada vão se juntando num rumo débil e infértil que a madrugada antecipa no destino que dissipa o que tiver que se explicar. Na mesa, frente a frente nos corpos que se misturam e riem feito loucos aos trôpegos das outras vidas que cercam o limite limítrofe, um beijo rompe os dentes e une línguas e olhares. Alhures, um semideus desnudo que foi acordado pela emoção que se derrama dos dois senta no sofá do além para abençoar a junção que unge o casal e surge a volatizar. Olhos vermelhos e insones de quem cuida do futuro das paixões, aceita o drama de acalentar aqueles que ainda acreditam que um gemido vale mais do que a gorjeta que escorre na sarjeta do limiar. No cruzamento mais próximo, na esquina que se faz, um carro freia para a senhora cega passar.

(Ao som de Pedro Salomão)

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Com Bibi Ferreira à espera de parar

 Por Ronaldo Faria

 
-- Pra findar tem que ser Bibi Ferreira em francês?
A pergunta de Augusto, na sua angústia e pérfida existência, quase fica sem resposta na bosta que é o silêncio dos bêbados da vida infame que surge feito chama na flegma da analfabeta sentença que os tempos da inteligência artificial chamariam de reconhecimento do despreparo da língua pátria. Mas, apátrida de si mesmo no esmero fútil e findo de nada saber, como culpar o poeta que se arremessa ao descalabro de apenas tentar escrever?
-- Paris? Que vá à vida que a pariu, Paris! O Champs Elyssés que se escureça nas luzes eternas. Nos prostíbulos e vestíbulos que Piaf tenha pisado sejam o cadafalso abstrato que qualquer um de nós teima em seguir.
No boa noite que nada diz além do fim do dia infausto e incrédulo de um dia ter passado sem nada dizer, a certeza da parodia de ceux qui se mentent à eux-mêmes juste pour croire qu’ils peuvent être un être flottant. No som que ecoa ao tempo, palavras vão a sumir ao vento... Amanhã, quem saberá, um novo amor poderá florir na terra cansada de pouco cerzir estórias de amor e findar sempre em si.

terça-feira, 12 de agosto de 2025

O samba e o balanço de Miltinho

Por Edmilson Siqueira



Já citei esse disco aqui, mas precisamente em fevereiro de 2022. Mas era apenas uma citação com um link que encerrava outro artigo sobre o grande Miltinho, num disco que a Globo/Columbia gravou em homenagem ao intérprete, quando ele já estava com 71 anos. Essa idade, porém, não afetou sua voz e suas qualidades de cantor e o disco é excelente. 
Pois 9 anos depois, às vésperas de completar 80 anos, a Emi decide homenagear novamente Miltinho com uma edição comemorativa. E deu nome ao duplo CD de Miltinho Samba e Balanço, duas palavras que poderiam ser sinônimo do seu nome. 
Para preencher os dois CDs, a gravadora incumbiu o produtor Rodrigo Faour de fazer a compilação. E o trabalho foi dos mais completos, pois são 36 músicas que abrangem praticamente toda a carreira do cantor.  
Miltinho, que morreu em2014, aos 86 anos, creditava a Deus seu dom de ter tanto ritmo, pois não frequentou escola alguns de música, mas desde menino já tinha fixação no pandeiro. Ganhou uns dez de presente de Natal e aniversário do pai, pois ele só podeia isso nas datas. 
E como pandeirista em conjuntos, começou a cantar também (o que nenhum pandeirista fazia) e impressionou não só pela bela voz, mas por sua divisão rítmica muito particular, que ficaria famosa e o distinguiria por toda a vida.  
Sua carreira foi diversificada. Passou um tempo no México, depois que o conjunto do qual participava (Namorados da Lua) foi desfeito e ele entrou para o Anjos do Inferno. Depois de 5 anos por lá, inclusive participando de 10 filmes locais, voltou ao Brasil, nos anos 1950, entrou no grupo Quatro Ases e Um Coringa. Ao trabalho de pandeirista e cantor, ele juntou o de funcionário público. Passou num concurso do Ministério da Fazenda, onde trabalhou por 37 anos em meio expediente (das 11h às 17h) e chegou a se aposentar como servidor da Receita Federal, o que lhe garantiu uma velhice tranquila. 
Rodrigo Faour também assina o texto do folheto que acompanha os CDs. Nele assinala que "depois da fase de grupos vocais, Miltinho passou a ser crooner de boates chiques de Copacabana, como a Meia-Noite, do Copacabana Palace, e da célebre Vogue, do legendário barão Von Stuckart. Foi crooner também da Orquestra Tabajara, de Severino Araújo e do conjunto Milionários do Ritmo, do pianista e organista Djalma Ferreira que abriu a boate Drink, no Leme." 
Encerrando o texto de Faour, ele revela o que o próprio Miltinho dizia sobre suas qualidades: "Sou ritmista. A única particularidade é que canto dois tempos atrasados, a harmonia vai na frente. Como é que eu descobri isso? Não descobri coisa nenhuma. É que fica muito mais bonito. Você fica com dois tempos para errar. As pessoas não sabem que dois tempos em música é troço que não acaba mais, dá pra escrever uma carta pra casa", diverte-se.  


O disco comemorativo dos 80 anos de Miltinho, como já dito, tem uma excelente seleção. Segue o repertório: 
CD 1 
1 - Samba no Leblon ( uiz Reis) 
2 - Helena, Helena (Antônio Almeida / Constantino Silva) 
3 - Samba Maroto (Luiz Reis) 
4 - Descansa (Candeias / Jota Jr.) 
5 - Alô, Alô (André Filho) - Pelo Telefone (Donga / Mauro de Almeida) Com Elza Soares 
6 - Lampião Vadio (Luiz Reis / Luiz Antônio) 
7 - O Lindo de Você (Carlito / J. Santos) 
8 - Quero-te Assim (Tito Madi) 
9 - Nossos Momentos (Luiz Reis / Haroldo Barbosa) - Tudo É Magnífico (Haroldo Barbosa / Luiz Reis) 
10 Moeda Quebrada (Luiz Reis / Haroldo Barbosa) - Leilão (Haroldo Barbosa / Luiz Reis) 
11 - Mas Que Doidice (Antônio Carlos Pinto / Jocafi) - Até Eu (Baden Powell / Paulo César Pinheiro) com Dóris Monteiro 
12 - Samba da Rosa (Jorge Costa / Celso Martins)  
13 Voltei (Celso Castro / Oswaldo Nunes) 
14 - Louca (Gracia / Wilson Medeiros) 
 
CD 2 
15 - Made In Mangueira (João Roberto Kelly) 
16 - Telefone no Morro (João Roberto Kelly) 
17 - Na Base do Pinguim (João Leal Brito / Fernando César) - Velho Gagá (Fernando César) 
18 - Recordar É Viver (Aldacir Louro / Aloysio Martins) - Gilda (Mário Lago / Erasmo Silva) - Tome Continha de Você (Dolores Duran / Edson Borges) com Dóris Monteiro 
19 - Isaura (Herivelto Martins / Roberto Roberti) 
20 - Garota ZN (Osmar Navarro / Umberto Silva) 
21 - Cem Vezes (Lúcio Alves) 
22 - Anamaria (Jair Amorim / Evaldo Gouveia) / Garota Moderna (Jair Amorim / Evaldo Gouveia) 
23 - Você Já Foi À Bahia? (Dorival Caymmi) / Vestido de Bolero (Dorival Caymmi) 
24 - Amuleto (Herivelto Martins / Klécius Caldas) 
25 - Amor de Brincadeira (Belizário / Di Ferraz) 
26 - Gamação Por Mercedes (Julinho de Castro) 
27 - Botões de Laranjeira (Pedro Caetano) 
28 - Laranja Madura (Ataulfo Alves) 
 
O disco pode ser comprado no Mercado Livre e em outros bons aplicativos do ramo. Há várias faixas dele no Youtube, embora eu não tenha econtrado os dois discos completos.

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Outra vez, a mercês, com a Cambada Mineira

Por Ronaldo Faria



Na brincadeira de festa junina, dessa que se gesta no coração à espera de alguém para dividir, José e Maria, ou será Maria e José, pulam a fogueira metafísica que separa corpos e paixões. Une frágeis vidas e velhices que chegam e se aconchegam nos anos que ficaram para trás. No olhar para o lado, a descoberta de que cabem mais duas garrafas de cerveja. A descoberta da matemática espacial de quem é de Humanas. Mas, agora, algoritmo de lembranças do tempo em que as donzelas eram muito mais do que meninas, voltam cheiros, sons, sabores, amores, gestuais de toques nas partes mais íntimas que se entregavam nos luares gerais.
Na inútil loucura que um dia irá parar em luzes ou lembranças diuturnas que de algo tenham valido, segue o poeta, profeta de sua própria insanidade na letargia. A futura orgia fica para quando o destino juntar renúncias, prenúncios mil ou calafrios de quem sua pingos de calor nas madrugadas frias. Nas montanhas tacanhas que teimam em não se dobrar ao destino que percorre o desatino do luar, passos passam no lumiar que a saudade traz como alvorecer. No descrente e ausente gerar de amores e corações à espera de se aninharem num galho qualquer, estão o homem e a mulher. Colados de perto no mapa do mundo, múltiplos e raros, talvez saudosos das ressacas do dia de depois, são apenas uma pena que não precisa de tinteiro para escrever.
No quadrado mágico e atávico que a lucidez desfaz e dá, saudade e insanidade se dobram e se dão. E reverberam longínquas e inúteis lembranças, andanças e críveis nuances que brotam a cada aborto que corre do rio para algum mar. E minutos, segundos, milésimos e o que mais tiver de ser, passam retóricos e meteóricos, apócrifos ao tempo que o próprio tempo se dá em desvão. No disforme tocar da boca no copo que serve de servidão à poesia que quer surgir, versos se fazem emergir. Quem sabe, em algum lugar desse mundão de um Deus infiel, não surja outro candidato a poeta a copiar para si as loucuras do escriba que aqui nos relata e faz. Afinal, se o peixe do almoço teima em ainda chegar na garganta, quem sabe uma infanta a querer seu príncipe encantado não se faça de fugitiva e companheira do fim de uma trama no  drama, sem transa a rolar. Senão, como diz a Cambada Mineira, é demais... O que tiver de ser já me apraz.

Na brincadeira de festa junina, dessa que se gesta no coração à espera de alguém para dividir, José e Maria, ou será Maria e José, pulam a fogueira metafísica que separa corpos e paixões. Une frágeis vidas...

sábado, 9 de agosto de 2025

Acasalado no passado

 Por Ronaldo Faria



O casal estava no emaranhado de braços e lábios, afagos e tesões que só quem ama sabe o que é. Ao fundo cantava Nana Caymmi. O lugar, na sua penumbra fecunda, era um bar de subúrbio, desses em que gim com tônica e cuba libre lembram o passado de século retinto e passado. Nos alforjes fecundos e etéreos, recôndito do amor, como bom prosador romântico diria, a saudade arde e se pergunta se seria igual, nos tempos idos, não tivesse feito maremoto de um simples temporal. Atemporal, o homem não sabe responder. Longe das terras de asfalto em que 50 graus são o normal, ele apenas perpetra solitário a sua própria festa. Em simetria que qualquer orgia definha de incertezas sombrias, alhures sejam os amores às dores que se anteveem, o casal viceja somente ter a si mesmo nos sonhos e pesadelos que invadem a noite fatídica e fugaz.
Mais um gole tragado e outro lábio embriagado a se tornar um domar e tomar de emoções, unções, certidões de bem-querer, plácidas e lívidas ausências amiúde ter que esquecer. Nas carícias e sevícias tresloucadas sem chegar e se aconchegar na cama desforrada de malícia, os dois se tocam, riem, falam besteiras que apenas aqueles que são jovens e apaixonados sabem dizer. Falam de um futuro nunca soturno e repetem que o importante é estar ao lado, colados feito cola feita de arroz, a trocarem mil juras de amor eterno e, até quem sabe, quiçá, verem a prole parida e futura a correr nas ruas sem amanhecer. No bar o garçom pergunta se pode repetir as doses. “Claro, com certeza, por favor, até fechar o lugar se faça afim”. Longe dos bairros onde o tintilar de moedas apregoa a opulência que qualquer flatulência faz ficar, o casal viaja seus minutos rotundos e noturnos de um simplório amor.
Logo o bar irá descerrar sua porta que dá à avenida aonde fuscas e kombis, opalas e brasílias dividem o espaço com transeuntes travestidos de gente e ônibus cheios de cansados e naufragados seres que esperam ao menos o derradeiro louvor. Na estação ferroviária, logo ali defronte, as últimas composições despejam corpos que, insones, se preparam para logo voltar a transitar entre o destino e o fim escondido num paredão que chamam de descanso final, no fundão do campo santo que ninguém quer se enterrar. Mas, absorto na sorte de quem um dia pôde se amar, o casal enternecido troca olhares sobre a vela que queima cúmplice da saudade futura, noturna, que talvez um só ainda queira ou consiga lembrar.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Dois estradeiros

 Por Ronaldo Faria



-- Zé Militão, tem muita ruma ainda procê tomar?
-- Como, Bastião da Crisma? Se ainda vou engolir muito pó na estrada?
-- Pode ser, pode ser...
-- Falta ainda umas três vilas pra rodear, mas no meu destino vou chegar.
-- Assim espero, porque esperança muita pode cegar.
-- Eu sei. Sei até demais, mas pra quem vive de crer não tem mais o que fazer.
Os amigos, nascidos numa igual esteira de casa de pau a pique, com as mães a cortarem em canivete o cordão de umbilical simetria, seguiam seus destinos feito meninos que correm entre as cinzas da roça queimada e calcinada para voltar a dar vida. Vez ou outra bebiam juntos uma pinga que o alambique do fazendeiro da região lhes deixava sorver. Senão, se engajavam nas coxas das meninas que respiravam o cheiro de querosene dos lampiões cobertos de plástico vermelho num canto de Catolé.
Zé e Bastião, boiadeiros e estradeiros, acostumados ao tropel de cavalos cansados e encarquilhados, a seguirem a direção que os urubus, a comerem as reses mortas em podridão, davam como certeza de civilização: “Se tem carcaça, tem a casa do dono que a perdeu para algum carcará.” E era ao menos um canto onde pedir um pouco de água de moringa, encher a cabaça de líquido e deixar o cavalo, suado, quase esquelético, descansar o fardo de transportar quem sequer lhe dá atenção. Se sorte tivessem, até um canto de casebre lhes restaria para pernoitar. A feira da cidade maior mais próxima era o destino final, onde venderiam os poucos sacos ensacados do milharal.
-- E aí, Zé, conseguiu colheita boa?
-- Como, se a chuva esqueceu de cair por aqui...
-- Estou quase igual. A sorte é que também plantei feijão. Deu umas duas sacas. Consegui ao menos carne seca e um corte de pano pra Joaninha.
-- Sorte sua. Ainda vou ter muito que suar na próxima roça pro prejuízo recuperar.
Se despedem e seguem seus rumos diferentes, referentes a ir ou voltar. Se despem de emoções e viajam a sertões singrar. No meio do caminho, a capelinha de Santo Antônio, um atônito padroeiro de quem acredita poder ser feliz num matrimônio, os espera para rezar. Afinal, é o único prazenteiro lugar. Bastião para seu cavalo que arfa as últimas gotas de saliva que ainda conseguem brotar, se ajoelha diante da construção diminuta erguida apenas para agradecer alguma finda labuta. E clama e ora e pede aos céus chegar tão longe onde qualquer planta nova possa plantar, seja no sertão ou no Canadá. Pois, para quem poucos sonhos tem, basta esperar que a ilusão mais próxima vire a certeza da ilusão. Na curva logo depois do estradão, um urubu saliva ao ver o cavalo de Bastião. No céu, a graúna foge do carcará.

(Com Zeza Baleiro e Chico César)

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Na discussão

 Por Ronaldo Faria


A discussão tinha surgido sem antes e nem também porém, de repente, como rompante desses que surge e urge quando um vento bate rápido na orelha e não dá tempo de segurar nem a saia que voa ou o cabelo que despenteia. Feito folha de planta nova, dessas que não se aguenta em pé nem com restinho de brisa. E foi palavrão pra cá, xingamento pra lá, um tal de crescer pra cima e pra baixo que nem lutador de MMA saberia definir. Capoeira era pouca pra tanta poeira. Ambos os dois, como diria o incauto no português régio e correto, se estranharam por causa das curvas de Esmeralda. Afinal, ela tinha ancas de parideira ou bunda de fechar comércio? Um defendia que ela era pra casar, o outro queria ter com ela apenas um almoço, onde o filé já estava garantido. Machistas? Talvez. Ou apenas dois a ficarem babando por Esmeralda e sua beleza de musa e mulher. Só se soube no entrevero que logo juntou a turma do “deixa disso” e os outros que queriam ver sangue de graça no final da tarde.
-- E aí, vai sair porrada ou não?
-- Tenham calma, isso é discussão besta! Ela é gostosa e ponto final!
-- Nem fodendo, vocês são homens ou não? Mete a mão ou a faca logo na cara!
-- Porra, vocês estavam bebendo de boa até Esmeralda aparecer!
-- Pega logo a garrafa vazia e quebra na cabeça dele!
-- Mulher é pra se admirar, não é para se matar!
E tantas frases mais ditas por apaziguadores e detratores. Malditas ou benditas frases. Tudo para que os amigos de bar virassem a mesa num trocar de socos e pontapés ou que voltassem a beber voláteis e unidos, em risos.
-- Se o cacete rolar geral, vou chamar a polícia! – gritou detrás do balcão o dono da birosca, Manoel do Benfica.
Acima da cena a lua surgia despretensiosa no céu e ciosa de que talvez visse seu prateado iluminar o vermelho de sangue a se esvair morro abaixo. Uma pomba trepava com outra à espera de um ninho de ovos a brotar. O cachorro da Dona Clemência latia desesperado com o gato do Seu Vicente que subiu no muro só pra sacanear. João Pires da Gama, que não era vascaíno, chegava do trabalho, cansado, e só queria tomar uma dose para relaxar. Lucrécia, sempre com raiva dos pais pelo nome infausto, seguia para a vendinha onde iria comprar o feijão da mistura noturna (se é que o resto do botijão ia conseguir cozinhar). Gastão, motorista do lotação, enxugava o suor de chofer a passar pelo local na direção da garagem do circular. Valtinho da Pindura, cujo nome já falava tudo, implorava outra pra pagar depois, quando a vida melhorasse. Assim, com a vida a seguir sua sentença e retidão, foi preciso que Esmeralda, vendo a cena que causara sem querer, resolvesse voltar e gritar alto, do alto da maior formosura do lugar.
-- Seus dois bostas, ouçam bem: sou pra casar, sim, quando eu assim decidir e quiser, e também pra ficar de bunda ao ar livre quando desejar. Mas isso porque eu decido o que quiser. Mas, pra vocês dois, bundas moles ao contrário da minha, não tem nem casamento e nem rola-rola na rola. Se eu precisasse de merda iria para o banheiro cagar! Tomem tento e jeito, arremedos de algo...
Dita a sentença, linda no seu requebrar natural que tanto chamara a atenção do mundo inteiro, ela voltou para casa, onde tinha muito mais o que fazer. Estarrecidos, macambúzios e sorumbáticos, perplexos e sem ação, os dois antes beligerantes voltam a se sentar nas cadeiras que serviriam de armas letais. Com riso amarelo nas bocas quase desdentadas, se olham e falam, quase uníssonos: “Seu Manoel, desce outra pra comemorar!” Na biqueira próxima o vapor desce com duas gramas que o bacana, que riu da cena, quer comprar. Do alto, a lua respira feliz por apenas servir de sentença para os poetas.

(Ao som do Zeca Baleiro)

domingo, 3 de agosto de 2025

Um gigante do jazz que viveu só 30 anos *

Por Edmilson Siqueira


"A vida de Chick Webb foi em parte tragédia, em parte triunfo e cheia de ironia. Nascido aleijado, Webb se destacou no mais físico dos instrumentos, a bateria. Junto com Jo Jones (que ele precedeu), Webb foi o mais influente baterista da era do swing, mais até que Gene Krupa (que o idolatrava) que ganhou mais publicidade e fama. Webb tinha uma das maiores big bands de jazz dos anos de 1930, embora hoje seja mais conhecida por lançar Ella Fitzgerald, uma cantora a quem Webb foi, inicialmente, relutante em admitir, mas que foi posteriormente celebrada como sua grande descoberta." 
O texto acim é parte do que escreve Scott Yanow, crítico e historiador de jazz norte-americano, no encarte que acompanha a coletânea "Standing Tall", de Chick Webb & His Orchestra, com algumas participações de Ella Fitzgerald.  
A cantora, que ganhou grande e merecida fama depois, nem é a atração principal do disco. Além do supremo baterista, são destaques na capa do CD, Taft Jordan, Bobby Starkm Dick Vance e Teddy McRae, grandes instrumentistas que ajudavam a manter a fama de uma das melhores orquestras dos anos 1930 nos EUA. 
Essa coletânea, da Alamac Records, lançada em 1996, busca resgatar e preservar o legado do jazz dos anos 1930. E esse CD é uma prova sonora da genialidade de um dos maiores bateristas e líderes de banda do swing. Embora Webb tenha vivido apenas até os 30 anos, sua influência foi gigantesca — e, como o título do álbum sugere, ele permanece "de pé" na história da música, como um gigante que moldou o curso do jazz. 
Chick Webb, nasceu em 1905, em Baltimore, e enfrentou desde cedo sérios problemas de saúde. Sofria de tuberculose espinhal (conhecida como mal de Pott), o que comprometeu seu crescimento físico e o deixou com graves limitações. Mas ao invés de ceder, ele encontrou na bateria uma forma de expressão poderosa e libertadora. Seu estilo era explosivo, preciso, energético — um verdadeiro motor rítmico para a big band que liderava com mão firme no Savoy Ballroom, no Harlem, em Nova York. 
O CD também serve como um testemunho do início da carreira da grande Ella Fitzgerald. Quando Webb a descobriu, ela era uma adolescente desajeitada, tímida e com pouca experiência. Mas, depois de uma rejeição inicial, o líder da banda viu potencial. Com sua voz cristalina e swing natural, Ella logo se tornaria a estrela do grupo.  


Além de Fitzgerald, a orquestra de Webb abrigou músicos de alto nível como o saxofonista Chauncey Haughton, o trompetista Taft Jordan e o arranjador Edgar Sampson, responsável por clássicos como "Stompin’ at the Savoy". A interação entre esses músicos, sob a batuta vigorosa de Webb, fazia da banda uma verdadeira máquina de swing — talvez a mais afiada da época, rivalizando com as de Benny Goodman e Count Basie. 
Scott Yanow assim finaliza seu artigo no encarte da coletânea:  
"Chick Webb morreu de tuberculose em 16 de junho de 1939. Ella Fitzgerald ainda ficou na banda por mais dois anos. E, nas décadas seguintes, Gene Krupa, Buddy Rich e Louie Bellson, mantiveram vivo o nome de Chick Webb, louvando constantemente seu swing, sua técnica e seu modo de dirigir a orquestra. Agora, nesse disco, os ouvintes de hoje podem conhecer o legado musical do imortal Chick Webb." 
A coletânea é composta por 12 faixas: 
1 - Blue Room (Rodgers e Hart) 2 - Deep In A Dream (Von Heusen e DeLonge) 3 - Breakin' Em Down 4 - Sugar Blues (Willians e Fletcher) 5 - Tain't What You Do (S.Oliver) 6 - One O'Clock Jump (C. BAsier) 7 - Stars & Stripes Forever (J. P. Souse) 8 - I Never Knew Heaven Could Speak (Gordon e Revel) 9 - Poor Little Rich Girl (N. Coward) 10 - It I Didn't Care (J. Lawrence) 11 - My Wild Irish Rose (Scott e Chauncey) 12 - Chew, Chew, Chew (Fitzgerald, Web e Ram) 
O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?zSBdl0vaAoA&list=PLj0znMzyCQIBO_Gic5qKDGPtTRdKMU_kx 


*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Creiam na Clementina

Por Ronaldo Faria 



 

Ela, Clementina, tinha o mesmo sobrenome do marido – Silva Camões. Coisa de casal antigo, em que a mulher virava posse lavrada em cartório do marido. Na pose do tempo do porta-retratos, um possesso tormento das frágeis ilusões de cada um. A casa seria quase um casebre se levarmos em conta o jeito rotundo com que ela se espelhava diante da linha de trem que carregava as pessoas à sua tragédia, quase comédia, de viver para trabalhar e minguar. Mas nessa casa, construída nos Anos 40 do século que já se foi, Clementina era um ser clemente de vida, temente da sorte, ciente de que o ser humano é mais um mero vivente.

Seu marido era Astrogildo. Astrogildo Soares da Silva Camões, escrevente num escritório de contabilidade no Centro da cidade. Antes, na juventude, tinha sido professor de datilografia numa escola do subúrbio – Time Is Money. E anteriormente era engraxate de sapatos na Estação Leopoldina. Ali, entre cruzeiros velhos, apitos de locomotivas e fumaça de lotações com seus escapamentos cinzentos, sonhava em viajar. Conhecer o Brasil, juntar sabores e odores, sotaques e suores, olhares e toques noturnos em bares e biroscas. Mas o tempo passara e ele ficou por ali mesmo, a seguir a Avenida Brasil a torcer para fugir dos tiroteios matinais. E dizia a si mesmo: “Já está bom demais”.

Eram um casal como tantos outros milhares, feito espigas de milharal que servem de pombal aos pássaros sem lar. Há muito não faziam amor, se é que um dia o tenham feito. Afinal, amor é coisa de dois iguais, como animais. E Clementina e Astrogildo eram partes diferentes do astrolábio a indicar a direção das estelas que costumam brilhar nos céus surgidos quando as paixões urgem maiores que o destino em comum. Logo, apenas eram. Erráticos no seu dia a dia, diários na rotina redundantemente igual, díspares seres que nunca deveriam ter se juntado. Mas Astrogildo a vira numa noite já bêbado, nos raros percalços daquele jovem descalço, e Clementina, perto de ser apenas a tia preferida, achou que era a hora de sair da surdina. E se juntaram e deu no que deu: um constante adeus mesmo sob o mesmo teto.

Mas, tão abrupto como o cocô de pomba que lavou o busto do marechal, o destino resolveu a questão de forma quase informal. Foi quando um périplo de crentes, desses chatos que acham que ninguém dorme e batem palmas logo quando o dia ainda raia, chegou ao portão de Clementina e Astrogildo. “Podemos falar a palavra do Senho!” – disse o crente mais velho e fanho, sem o mínimo brilho no olhar. Clementina, que não tinha mesmo muito com quem falar, aceitou ouvir a ladainha. E se sentiu rainha por ter um bando de mequetrefes à sua frente. Ouviu com tal atenção que queimou o feijão. Enquanto isso, Astrogildo terminava outro dia de batente. Desceu as escadas do prédio de escritórios com seus notórios amigos de trabalho, todos suados porque o proprietário do lugar não tinha mandado consertar o ar-condicionado, e pegou o ônibus para voltar ao lar. Viu as mesmas ruas, a mesma avenida, o trânsito lento, o tráfego interrompido por causa do tiroteio na Maré, as orações do passageiro do lado para a bala perdida não o achar. Chegou cansado, com vontade apenas de um banho e de um prato de comida junto com uma dose de cachaça. Mas qual, Clementina tinha ido para o templo honrar a Deus, convencida pelo pastor que precisava de nova ovelha para o dízimo doar. Diante de uma panela de feijão queimado e esturricado, Astrogildo, sem entender o sentido daquilo, pôs-se apenas a chorar. Nos trilhos defronte, outra composição passa a levar vidas e ilusões.

 (No som dos Novos Baianos)

Na viagem

Por Ronaldo Faria Viajante de suas loucuras diuturnas, quase equidistante entre a vida e a morte, Januário persegue qualquer polis que vire ...