segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Com João Gilberto e Stan Getz

 Por Ronaldo Faria

 

Devagar, quase a parar, o Oldsmobile trafega na Avenida Atlântica. Na areia logo do lado, a mulher de biquíni de duas peças deixa o seu corpo a brilhar nas ondas do mar. No bar perto um garçom deixa o gim com tônica para a turista atônita diante de tanta beleza tropical. Já a madame de várias décadas de Copacabana, desde a época em que ambas eram meninas, passeia com seu pequinês quase cego e idoso. Uma lotação percorre nas fumaças em negror o Túnel Velho que separa o paraíso da vida real. O desavisado senhor quase é atropelado pela Vespa que um playboy qualquer conduz de forma tresloucada e o músico, que deixou sua poesia harmônica na boate que acabou de fechar, decide fazer uma pausa no calçadão para ver a manhã se espalhar e espelhar entre pernas, bocas e olhares à mansidão de se crer. Na imensidão da vida, qualquer coisa no fundo é bem vinda.
-- Sabe, hoje descobri meio abobalhado e a falar sozinho na rua que, se estamos vivos, foda-se o resto. No final, lá no finalzinho mesmo, quando um caixão apertado será a última morada e a derradeira namorada, o que sobrar vai soçobrar queira você ou não. Logo, que possamos viver e ver a beleza que cada renascer nos dá.
Uma pomba desavisada e desqualificada de teorias existenciais, resolve por fim aos devaneios de verão e se alivia desanuviada na cabeça do sonhador.
-- Puta que pariu, com tanto lugar pra cagar foi logo me escolher?
Dedução e revolta inoperantes diante do voo do pássaro que resolve agora repor o espaço no estômago vazio.
Mas no asfalto que segue paralelo ao mar ninguém quer saber de pombas, devaneios ou histórias que se perderão no próximo luar. O lugar é de apenas crer que ainda vale, por hora, cada respirar. Mães pungentes passeiam com seus bebês de colo, colírios se espalham nos olhos vermelhos de sono e ressaca dos boêmios, coliformes disputam com os peixes as redes dos pescadores da colônia do Posto 6. A babá, vestida no seu branco indefectível à espera da golfada do rebento da patroa, flerta com o vendedor de picolé. O novo prédio que sobe onde antes era uma residência mostra que a excrecência da vida está nas contas bancárias que separam os operários esquálidos dos futuros moradores refratários da beira-mar. Numa rua próxima a igreja gótica diz que é o momento propício do pecador se confessar. No estrupício sem senso ou lógica, o cliente num inglês abrasileirado pede outra dose de vodca, com gelo e limão. Afinal, de verdinha em verdinha se conquista a sofreguidão.
-- Ô Valdemar, manda outra caipirinha sem pinga pro gringo da mesa quatro que logo vai estar de quatro!
Descido da Ladeira dos Tabajaras, o menino empina a sua pipa em gestos de maestria sensorial. E o Rio, no seu balanço natural, segue à espera da vida.

sábado, 18 de outubro de 2025

Na bazófia, seja isso o que tiver de ser

Por Ronaldo Faria


Lavar os restos prestos de caminhos retos e banhados de assombrações e sujeira na pia entre louças e poucas certezas e tantas incertezas? Mário, o telúrico, na lucidez inexistente e premente de destrinchar o poema da vida e a vida da solidão, estava numa trincheira da bazófia, seja lá o que isso tiver de ser. Saravá agora e pra onde tiver de ter. Os santos tântricos que se guardem no aguardo.
Nas paulistanas e inconstantes noites e madrugadas (já que traulitantes parece não existir no dicionário) os corpos e copos encorpados nos corredores de sangue e volúpias se dilaceram e se esmeram de cinzas e fumaças mil. No calor do inverno que a quirógrafa escreveu, eu, ateu, até tento crer em Deus.
Catatônico, harmônico, afônico e atônito, a puxar o último grau, o perdulário de emoções se faz maestro nos vórtices que a vida dá. E caminha entre rios poluídos, ouvidos doidos e doídos, avenidas cambaleantes de agora até ontem. Às feridas geridas em cada dor transversa e expressa na falta de pressa que a madrugada traz, há um pouco e tanto, entretanto, de silêncio e solidão. Assim, escancaremos dois  à cara limpa que a vida finge resguardar. No lugar em que a tragédia e a comédia se misturam cresce um pé de antúrios. Nas Astúrias um conde qualquer tenta beijar a nova mulher. No albergue social o morador das ruas tenta sobreviver a comer o que lhe dão com a plástica colher. O que irá colher no seu quintal ínfimo já é outra leitura vespertina. Resposta não há.
-- Ainda é esse o sabor de veneno? Que coisa mais cretina. Preferia estar diante de uma cafetina ou de um copo de cafeína.
Nas caixas acústicas e lúdicas surge uma frase: “Olha o breque, Biafra...”
 
(Num boa noite com Arrigo Barnabé)

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Papo etílico e líquido

 Por Ronaldo Faria

 

-- Você já foi atrás da cerveja errada, comprou e vira essa que se se esquece na geladeira e só dá ressaca?
-- Infelizmente, sim...
-- E o que fazemos? Jogamos fora?
-- Nem fodendo. Um dia far-se-á néctar da embriaguez.
José e Ronaldo, dois seres diferentes, divergentes e carentes de decilitros, mililitros ou algo que não cheire a perfume, ao menos numa coisa concordavam: lúpulo e cevada têm que casar feito Deus e Satanás. Têm que ser arroz e feijão, ovo e omelete, onda e mar. Se tiverem algo que os separe, saibam que nem nas cercanias do inferno da mente irão se encontrar. Serão coisa modorrenta e nada mais. Afinal, beber não é só se embriagar...
-- Cerveja é que nem barbeiro? Cola num até ele morrer?
-- Com toda a certeza.
-- Cabelo e cerveja são coisas unidas?
-- Mais ou menos. Talvez como o escrever e o verso. Os dois são dor, crescem e dão sorte e azar, ou são somente novo amanhecer.
Viventes prementes e ausentes do que pode ser aqui ou sei lá, do lado daqui e de acolá, certamente os dois não cantarão a essência do sonhar no blues que virá.
-- E aí, vale viver e seguir coisas perpetradas no bem-será?
-- Se não valer e seguir, aí fodeu geral...
No mundo externo e terno que se abarca lá fora, copos se levantam e se postam nas mesas, beijos e fodas se abrem em pernas e bocas, loucos e loucas se fundem e se entregam nas falsas tréguas que a insensatez dá. Aqui ou no Afeganistão alguém estará a frigir os ovos e óvulos com tesão.
-- Há explicação para se viver aqui ou em Berlim?
-- Sei lá. Nalgum lugar haverá uma colombina na busca de um arlequim. E vice-versa. Quer dizer, é tudo uma mesma merda. Só muda o palavreado e o fim.
 
(Com Itamar Assumpção)

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Com o sempre Itamar Assumpção

 Por Ronaldo Faria


Cláudio e Cláudia, duas canduras de pessoas, amantes desde a primeira hora que se viram, se beijavam em mais uma inúmera vez das tantas milhares e vezes atrás. E trançavam salivas, altaneiras e ativas, molhadas e ardidas da pimenta da paixão. Se tocavam de forma feérica, se lambuzavam de suores deixados à madrugada de amassos e desgarradas orgias, se faziam piqueniques que nunca comeriam ou veriam sequer as formigas. Mas, qual, de que vale mesmo a vida?
-- Você será sempre meu?
-- E você será sempre minha?
As perguntas, como diria o poeta preto e negro, feito mel, laranja e manjericão, foram respondidas com urdidas transas trançadas de pernas, braços e mãos. Poemas escritos e proscritos, coisa de solicitude. A palavra era o que menos interessava, num quarto diminuto ou em Java. Havia mais emoções a viver.
-- Foi legal acordar do nada e trepar com você. Jogar a cama tresloucada no virar do quarto. Parar na chegada da sala.
-- Com certeza. Faço das suas palavras e lavras as minhas...
No aninho que o descaminho dá desde que Caminha escreveu a carta para o Rei de Portugal, ambos esquecem o que é falar e se calam nos augúrios telúricos que dois corpos sabem quando querem se entortar. Afinal, disse o poeta preto e negro, a natureza está morta e decora a noite torta.
-- Ficaremos pra sempre?
-- Com certeza. Até que o destino ou um Alzheimer nos dê o final de tudo.
Para eles, rima ou faça-se lá o que tiver de rever, a terna eternidade de nada ter, se bastou na lambuzada de nunca ser.
-- Quando poderemos reviver?
-- Que pergunta mais difícil que não sei responder...
Muitos e poucos  metros abaixo e acima, vizinhas velhas e decrépitas, dessas que reclamam ao mais silencioso gozar, ligam no interfone para fazer tudo encerrar. O mundo, doentio e frígido, sem sofreguidão do amar, longe do mar, se transforma em simplório colocar de um frango, charuto e marafo no despacho da esquina mais próxima e próspera.
-- Mandamos todos tomarem no meio do cu agora ou depois?
-- Vamos esperar o sol chegar. Deixemos eles sofrerem com o tesão que não têm mais...

domingo, 12 de outubro de 2025

Paul Desmond & Gerry Mulligan: um delicado duelo de sax*

Por Edmilson Siqueira



Entre as diversas parcerias que o jazz gerou ao longo do século XX, poucas conseguiram unir sofisticação, lirismo e inventividade de maneira tão natural quanto a de Paul Desmond e Gerry Mulligan. O álbum "Two of a Mind", gravado em junho de 1962, em Nova York, é um exemplo raro de diálogo musical entre dois gigantes do cool jazz, que dispensam piano, recorrem a arranjos enxutos e fazem da interação o verdadeiro centro da obra. 

Paul Desmond, que nos deixou em 1977, aos 53 anos, quando gravou esse disco com Gerry Mulligan, já tinha gravado, três anos antes, nada menos que o disco "Time Out", com o grupo de Dave Brubeck, onde uma composição sua, "Take Five, faria sucesso mundialmente, tornando-se um clássico absoluto. Sua sonoridade suave, quase etérea, era marcada por uma fluidez que parecia escapar de qualquer esforço técnico.  
Gerry Mulligan, por sua vez, havia construído uma reputação sólida com seu sax barítono e também como arranjador e líder de grupos que desafiavam convenções, inclusive no formato sem piano que consagrou no famoso quarteto com Chet Baker nos anos 50. E participou, entre 1968 e 1972, do Dave Brubeck Quartet. 
O conceito de "Two of a Mind" partia justamente do espírito de conversação. Não há aqui disputas de ego ou demonstrações de virtuosismo em excesso. Ou seja, o "duelo" que cito no título é, claro, em sentido figurado, pois Mulligan e Desmond se encontram no meio do caminho: o sax baixo aveludado, mas cheio de corpo, e o alto cristalino, quase vocal, entrelaçam-se como dois contadores da mesma história, mas sob perspectivas diferentes. A ausência de piano abre espaço para que a textura dos sopros ganhe ainda mais destaque. As linhas se completam, criam contrapontos e se sustentam sobre bases de baixo e bateria discretas, mas essenciais. 
A faixa-título, “Two of a Mind” (Paul Desmond) que fecha o lado A do LP e que, no CD é a terceira faixa, já deixa claro o espírito do álbum. O tema é simples, mas sua execução se desdobra em improvisos que parecem compassos de uma conversa espirituosa. Dá a sensação de estar diante de um diálogo íntimo.  
Esse clima também está presente em “All the Things You Are” (Jerome Kern e Oscar Hammerstein II) que é a música que abre o disco e é um dos standards mais revisitados da tradição jazzística. Mulligan e Desmond exploram a harmonia conhecida de forma criativa, reinventando o tema sem jamais perder a leveza. 
A segunda música é o clássico "Stardust" (Hoagy Carmichael e Motchel Parish) que, com seus 8 minutos e 20 segundos, é a faixa mais longa do disco. Nela, o diálogo entre os dois saxofonistas se estende maneira harmoniosa, com os papéis de solista passeando entre os dois, acompanhados de uma bateria discreta e um contrabaixo esperto, carregado de ritmo e harmonia. 
Outro destaque é “Blight of the Fumble Bee” (Gerry Mulligan), a quarta faixa. É uma peça espirituosa, cheia de humor, em que a destreza técnica aparece sempre a serviço da musicalidade, nunca como exibição gratuita.  


Já em “The Way You Look Tonight” (Dorothy Fields e Jerome Ker), a quinta faixa, os dois saxofonistas exploram a melodia de Jerome Kern com elegância, valorizando o lirismo do tema e permitindo que o ouvinte perceba a profunda sintonia que compartilhavam. 

Por fim, "Out of Nowhere" (Eddie Heyman e Johnny Green), encerra o álbum de forma positiva, "pra cima", já que se trata de música onde bateria e contrabaixo formam base sólida e contínua para que os dois solistas mostrem toda a capacidade de sonoridade e improviso.  
As sessões que originaram Two of a Mind foram feitas com formações variadas, incluindo músicos como Jim Hall na guitarra, John Beal e Joe Benjamin no contrabaixo, além de bateristas como Connie Kay e Mel Lewis. Cada combinação trouxe uma nuance diferente ao som do disco, mas a identidade central permaneceu: o encontro entre o saxofone alto e o barítono, dois instrumentos contrastantes que aqui se mostram complementares. 
Vale lembrar também que "Two of a Mind", o disco, também é herdeiro direto do cool jazz, movimento que teve Mulligan como um de seus principais arquitetos desde os anos 50. A estética da suavidade, do balanço contido e da clareza melódica encontram em Desmond um intérprete natural e se harmoniza harmoniza-se com a capacidade de Mulligan de explorar contrapontos e improvisos.  
Lançado originalmente pela RCA Victor, o álbum recebeu elogios da crítica e tornou-se um clássico cultuado por apreciadores do jazz mais contemplativo e sofisticado. 
O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=LDjTc8GzstQ&list=PLvxWibFr0wiJmG_PfoH_rWJrssctL7MOL . 
*A pesquisa para este artigo teve o auxílio da IA do ChatGPT.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

No corte da epistemologia da noite noir

 Por Ronaldo Faria


Sobremaneira, a noite traz consigo cheiros e esmeros mil. Versos também traz e apraz. E brinca de correr nos neurônios que se tornam antônimos de si mesmos, a esmo. Muitos deles irão morrer para nunca mais voltar. Mas, alcoolizados, poetas e filhos de um santo qualquer, serão felizes por fim como finda sua missão na Terra. E brindarão ser aprendizes. Na verdade, alguns deles, sobreviventes nas poucas sinapses, irão rir das tantas mulheres que já amou. Outros irão penar nas penas que nunca tiveram para voar e terá também até aqueles que, na encolha, escolherão somente dormir. No porvir, daquilo que ainda há por vir, a antecipação do próximo verão.
-- E aí, Antenor, como vai a dor?
-- Igual, como sempre. Na verdade, estou ausente.
-- Como assim?
-- Todo o dia acordo como estivesse de ressaca, mesmo sem beber.
-- Que foda. E isso não te incomoda?
-- Já mais não. A repetição um dia se torna rotina regada à morfina.
Os dois amigos, transeuntes de alegrias e choros, fortuitos ausentes da imensidão de um mar revolto ou de paz, apenas bebem e enxergam nas pernas das mulheres que passam a sonora poesia de mais um dia qualquer. Sonham com seus dentes inteiros, línguas invasivas e fortuitas, furtivas. Pedem que a morte lhes seja boa ao menos no fim. Sem dor demais, sem choros  e lembranças desprovidos de emoção, sem novos amigos tardios e amantes efêmeras, fêmeas de um tempo jamais. Para eles, partícipes de um tempo obscuro e escuro, tragédias de cantos e sambas que nenhum enredo soube escrever, o momento é de lamento e sorrir. Na loucura resoluta que a luta de todo o dia traz, são apenas dois pingos nos is.
-- E a vida?
-- Está aí, por um triz.
-- E isso te faz infeliz?
-- Não. Estou igual a uma meretriz a buscar seu amor. Ou um homem famélico dessa mesma mulher que se dá sem querer se entregar.
Na esquina da cidade onde a sina assimila a alegria e o sofrer, muitos passam na faixa pintada no asfalto rumo a um lugar envolto em fábulas e solidão. Sinais ao carioca e semáforos para os paulistas se pintam de cores e pedem para os carros pararem para dar passagem àqueles que caminham sem afinco para o fim. Um ou outro apartamento pisca num ligar e desligar de luzes que acendem e apagam para o cheiro da noite. Como açoite, no sertão distante um homem guarda a foice que esfolou a terra para que a roça nasça. Dela virá a fava que trará nos pratos nunca fartos a sofreguidão da esperança ancha.
-- E aí, vai mais uma ou para por aqui?
-- Acho que já deu. Vamos parar. Talvez a nossa amizade tenha, igual a tudo no mundo, um prazo de validade. Coisa de idade, leviandade, tramas que tenham se escrito sem respostas do além. Mas valeu enquanto existiu.
A madrugada, tardia e milimétrica, nunca tétrica, diz que a hora é chegada. Tragada, vadia e vazia em si, sabe que a vida é um intermeio de medos e perdas sem fim. Mãe de todos e tantos lamentos, senhora das feridas e unguentos, logo irá receitar goles e letras para tudo amenizar. Escondido nas cortinas do teatro do tempo incólume e real, o sol ainda sem sequer escovar os dentes reverencia mais uma apresentação da vida. Na plateia, meia dúzia de gente, feito alcateia, aplaude o alaúde que toca feito música ser.
 
(Ainda com Paulinho Pedra Azul)

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Com Paulinho Pedra Azul

 Por Ronaldo Faria


 
A tarde tardeia ao longe a solidão da vida, como uma coisa que escorrega pelo riacho rumo ao nada. E passa por galhos mortos, corpos desnudos, olhares perdidos e ouvidos surdos. Vai brincando de serpentear nuvens, fazer dormir pássaros e sumir o sol. Este, já no fim da quentura diária, quer apenas fechar tal claridade e sorrir ao ver a nuvem em prata passar.
A tarde, que tantos alguéns já juntou e deles se desfez, dá um até logo ao bêbado da esquina, ao prólogo do amor, ao surgir que urge cheio de esperança no primeiro beijo. Diz aos descrentes dementes da ilusão dessa tal felicidade que voltará renovada quando o bem-te-vi retornar às flores e as abelhas perderem o medo de morrer. Simplória, faz história de si mesma.
À tarde cantam os poetas que pouco a viram, aqueles que se chamam Porfírio, os estetas das cores do quase anoitecer, estafetas da fé. Choram amantes errantes, as crianças sem parque, o baque de mais um dia se perder. Proseiam os velhos nos bancos de praças, gorjeiam os que sabem gorjear e esquentam seus futuros jantares os solitários de noites sem promiscuidades.
À tarde também se entregam sem tréguas a nova amante que se atira na noite chegada com as chagas nunca fechadas, as fachadas que agora se iluminarão de neons, os casais causais que se miram nos pontos de ônibus e nas mesas de bares. Na quase blasfêmia daquilo que se fez, o poeta emerge de si e se afoga na saudade do dia em que teve qualquer mero e simples prazer.
Mas a tarde, a vociferar angústia às feras que acordarão aprisionadas ao nada que a esbórnia da madrugada traz, não quer nem saber. Fez-se, veio, viu, desfez, refez e findou. Agora, como o sorvete de amora que cai no chão, apenas escorre no esgoto do tempo. Ausente de vento, morta em lamento e unguento, apenas ressonará as próximas horas a achar que viveu até demais.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Uma coletânea curiosa

Por Edmilson Siqueira



Uma revista chamada Audio News, que nem sei se ainda existe (parece que agora é só digital e se chama Audio Vídeo Magazine), costumava publicar, junto com as matérias técnicas de aparelhos de sons e congêneres e culturais de música, um CD como brinde para os leitores. Esses CDs andaram por aí, ganhando vida própria nos sebos e, apesar do indefectível aviso "exemplar promocional - venda proibida", eles eram (e são) comercializados, alguns como raridades.  
Eu tenho um desses, nem sei se é raro e devo ter comprado na Hully Gully Discos, do meu amigo Osny. 
No pequeno texto do encarte que acompanha o CD, a promotora escreveu que a seleção era uma junção do que já era clássico com artistas contemporâneos. E que o disco veio pronto da série especial da Movie Play "Remember CD Collection".  
O disco se chama "The Best - Música Americana" e a primeira faixa é "Kiss" (Gillespie e Newman) cantada por... Marilyn Monroe, que, evidentemente não poderia entrar numa lista de "the best" das vozes da música norte-americana. Talvez seja até uma brincadeira da seleção, embora ela cante direitinho essa música. O fato é que, depois dela, surgem Nat King Cole, Frank Sinatra, Fred Astaire (um grande cantor também), Al Johnson, Ray Charle e Betty Carter, Pat Boone, Sammy Davis, Jr. e Shirley Bassey entre outros. Ou seja, um time que merece estar entre os melhores mesmo. 
Há, ainda, Judy Garland e Marlene Dietrich. Ambas se notabilizaram por suas atuações nas telas muito mais que nos discos, mas, se não estão entre as melhores cantoras, não estragam a seleção.  Enfim, o disco é gostoso de ouvir, tem alguns clássicos, mas acho difícil de encontrar por aí. Se ajuda, ele fez parte da edição 55 da Audio Vídeo. 
Marilyn Monroe, na abertura do disco, aparece com sua voz quase sussurrada, cheia de "sex appeal", com um coro masculino a auxiliá-la, deixando a faixa toda muito agradável aos ouvidos.  
Nat King Cole vem a seguir, com "Sweet Lorraine" (Burwell e Parish), gravação da primeira fase do cantor, logo que ele deixou de ser apenas o condutor do seu trio de jazz e passou a usar o vozeirão e o talento para nos encantar. 
O clássico "Smile" (Chaplin, Turner e Parsons) é a terceira faixa na voz de Judy Garland, gravação ao vivo como acusam as palmas no final. A música fez parte da trilha sonora do filme "Tempos Modernos", de Charlie Chaplin, de 1936. No filme, a música que é de Chaplin e David Raksin, ainda não tinha letra, o que só aconteceu em 1954, por obra de John Turner e Geoffrey Parsons.  
A quarta faixa nos traz Frank Sinatra cantando Cole Porter: "You Do Something To Me", música feita para um musical de 1929 ("Fifty Million Frenchmen ") e que Sinatra gravou em 1961.  
Outro clássico, "Cheek to Cheek", (Irving Berlin) nos é apresentado por Fred Astaire. Detalhe: essa foi uma das muitas músicas feitas para o ator, bailarino e cantor Fred Astaire apresentar em seus filmes. Muitas hoje são clássicos da música norte-americana. "Cheek to Cheek" foi escrita por Berlin para o musical "Top Hat". Nele, Astaire canta a música para Ginger Rogers num número de dança. 
Al Johnson, que nasceu na Lituânia e se consagrou como cantor nos EUA, canta a sexta faixa, "Sonny Boy" (De Sylvia, Henderson, Browm e Jolson). Com estilo lacrimoso dos cantores dos anos 1930, Al faz bem o contraste entre o "antigo" e o "moderno" que a selação pretende.  
A sétima faixa traz de novo o som "atual" do fim dos anos 1950, com Peggy Lee cantando "Fever" (Davenport e Cooley), que foi gravada por vários cantores. Ao som de um contrabaixo, com repercussão de dedos estalando e pequenas intervenções da bateria, essa versão tornou-se a mais conhecida, com letras reescritas e um arranjo musical alterado. Foi top 5 na Inglaterra e na Austrália, além de ter ficado entre os dez primeiros nos EUA e na Holanda. 


Frank Sinatra volta com seu velho e bom estilo para cantar outro clássico: "Night and Day" (Cole Porter), música feita em 1932 para o musical "Gay Divorce" (gay não tinha, à época, o significado de hoje). O musical tinha Fred Astaire cantando o futuro hit. Segundo a imprensa da época, três meses depois da estreia, nada menos que 30 cantores já haviam gravado "Night and Day". 
A nona faixa traz a "cantora" Marlene Dietrich que até cantou "Luar do Sertão" no Brasil, numa visita ao Rio de Janeiro. Aqui ela canta "Lili Marlene" (Schultzel e Leip), canção alemã que se popularizou no Estados Unidos depois do filme "Julgamento de Nuremberg", onde a própria Marlene canta trechos da música ao lado de Spencer Tracy. 
A dupla Ray Charles e Betty Carter, que gravou um disco sensacional, é a responsável por outro clássico deste disco: "Ev'ry Time We Say Goodbye" (Cole Porter). A gravação, que abre o disco da dupla, foi feita em 1961.  
O cantor Pat Boone que arrastava multidões em seus shows, é o responsável pela faixa número 11 desta seleção: "April Love" (Webster e Fain). Típica balada romântica norte-americana, Pat Boone nos entrega aqui a mesma qualidade de sempre. 
Peggy Lee volta para mais um número na décima-segunda faixa: "Black Coffee" (Webster e Burke). Tíco jazz novaiorquino, Black Coffee, a música foi gravada inicialmente num LP de 10 polegadas, em 1953. Três anos depois, Peggy voltou aos estúdios e gravou mais algumas faixas para um novo disco, desta vez de 12 polegadas, tamanho que foi o consagrado na indústria fonográfica.  
A décima-terceira faixa é mais pop que jazz: "The Candy Man" (Bricuse e Newley), cantado pelo grande Sammy DAvis, Jr. A música foi feita para o filme "Willy Wonka & the Chocolate Factory", de 1971. Apesar do sucesso na voz de Sammy, ele jamais gostou dela. 
Por fim, "Send in the Clowns" (Sondhein), com a sempre ótima Shirley Bassey, encerra a coletânea. A música foi feita para o musical "A Little Night Music" em 1973.  
Ao pesquisar no Mercado Livre, descobri que este CD não é raro: há vários exemplares à venda por preços irrisórios, entre 15 e 25 reais. Não encontrei no Youtube ou em outros sites de música.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Questiúncula

 Por Ronaldo Faria


-- Não vai pedir um sanduba?
-- Pra quê?
-- Para ficar mais forte e assim poder sobreviver.
-- Quer que eu te mande ir para a puta que pariu agora ou depois?
-- Sei lá. Fica à sua vontade.
Na mesa do bar, abarrotada de cascos mil, Gabriel, que nada de anjo tem, mas chora hoje até de comédia pueril ou medalha de Olimpíada, não sabe mesmo o que responder. Logo, melhor mesmo um puta que pariu. Quem era Sandoval para lhe dar conselhos? Logo ele, um putanheiro de carteirinha.
-- De boa, prefiro outra gelada. E que chegue logo pra ser tragada.
O dia tinha sido de marasmo profícuo. Desses marasmos sem fim que ninguém quer descobrir. Talvez um crepúsculo orgástico e débil, fatalidade quântica e tântrica, o inusitado fado que percorre as terras causticantes de um Nordeste infértil. Coisa de lembrança tênue e na parcimônia que nos flagra em cada noite bêbada, boêmia e trôpega, mesmo que estejamos a meio metro da cama que acolherá o corpo do aprendiz de poeta e esteta.
O garçom, solícito e em busca dos dez por cento, traz uma daquelas de perna de servente de obra. Na verdade, de perna de velho. E logo nos lembramos da foto da mineira então casada com um mineiro e que nos fez levar ao Rio uma baiana de barro sem quebrar e sem cobrar um centavo sequer. Emoções boas não se cobra e nem se desdobra. Tudo vale por ter valido.
-- Tem certeza de que não vai comer nada?
-- Sim.
-- Mas amanhã vai ser a ressaca programática. Uma dor de cabeça e o andar maluco de não saber o porquê do barulho da noite anterior...
-- Eu encaro tudo de frente como sempre fiz. Afinal estarei aqui no amanhã?
Gabriel não deixava de ter razão. Quem lhe garantia que não morreria na noite que se antecede logo ali? Tantos assim já se foram. Até quem se enterrou com a camisa do Timão. Aos poucos o tempo se destempera e obriga o escritor a escrevinhar linhas tortas e métricas na tela branca que se forra de letras pretas. Coisa do destino, bazofia sem fim. Ou um filme que diz como era gostoso o meu francês. Aliás, foi essa língua que salvou o pobre menino no vestibular, quando ainda era possível optar.
-- É verdade que a sandália antiga hoje simplesmente se quebrou?
-- Pra você ver...
-- Então vamos nos ver nalgum tempo sem nos ver?
-- Quisera saber, quisera saber...
Na questiúncula mínima e semântica daquele que não sabe como sabe o tal português, na verdade sabe sequer como chegou aqui sem conseguir sequer digitar de forma rápida o não, ficam a loucura de achar que a vida de depois há e tudo é apenas mera ilusão. Senão, vivamos segundos sem lucidez ou retidão.
-- Quer saber, somos um 171 que se deu bem e deu certo. Mas o que é se dar bem ou certo? Se acima do chão e ainda na trilha, tanto faz...

(Com Zeca Baleiro)

sábado, 4 de outubro de 2025

Previsões

Por Ronaldo Faria

 

No seu novo livro, "The Singularity is Nearer", Ray Kurzweil, diretor de engenharia da Google, reafirma a sua crença na chegada iminente da Singularidade e prevê que, até 2030, os nanorrobôs médicos e a biologia da IA ​​ revolucionarão a medicina, permitindo uma longevidade sem precedentes e até mesmo a imortalidade.
 
-- Você quer viver pra sempre, Jeremias?
-- De verdade ou só filosofia?
-- De verdade, driblar a morte ou a excrecência da senilidade.
-- Não sei. Parece ser antinatural. Fomos feitos para nascer e morrer.
-- Será?
-- Acho que sim, como numa história, há início, meio e fim.
-- Mas porque há de ser essa a história de vida de cada um de nós?
-- Sei lá, porque assim fomos criados. Ensinados.
-- Adestrados, talvez...
-- Talvez. Nunca saberemos que não e nem que sim.
-- E se chutarmos o balde e continuarmos vivos a brindar a vida?
-- Brindar o quê? Brochas, senis, com a pele encarquilhada e velha?
-- É verdade. Ser eterno já velho deve ser uma merda...
-- Portanto, melhor é seguir o ciclo vital e morrer.
-- É, acho que você tem razão. Afinal, para humanidade ainda seremos velhos a tentar ser.
-- Logo, possamos pedir mais uma e viver o tempo que nos resta nessa conversa.
-- Seu José, desce outra depressa antes que o infarto ou o câncer nos dê o fim.
 
II
 
Virgínia, virgem como a flor que desabrocha antes de nascer, sonhava com seu amado, Amaro. Amargo para muitos, um ser cheio de perfídias e rimas nos percalços da vida, ele era um mero funcionário de cartório a carimbar vidas e mortes, imbróglios e pendências de outros seres talvez tão iguais a ele na sua imensidão. Da cama vazia logo às seis da manhã para o trabalho, um almoço xoxo, um café quase frio, ônibus lotado, casa e janta tardia, mera fantasia. Nos seus pensamentos, entre sofrimento e lamentos, nem sempre a amada aparecia. A manhã fria e cinzenta, chuvosa e tardia, era o quadro ideal em pinceladas trágicas e atávicas. Na verdade, seus dias eram prazeres mínimos, milimétricos e enfadonhos. Pouco havia a prever ou rimar.
-- E aí, Amaro, vamos beber?
-- Pra quê?
-- Pra desanuviar dessa vida, falar besteira e viajar na maionese.
-- Não, obrigado. Prefiro ver a tristeza chorar de forma solitária.
Os amigos, bem poucos e desses que se conta em um dedo das mãos, já tinham esquecido dele. Por dó ou por descobrirem que não há porque buscá-lo no seu emaranhado de fugas e solidão. Na navegança de mar aberto, seja a costa longe ou perto, ele preferia estar desperto no seu mundo próprio. E se sirenas ou sereias estivessem a disputar com baleias e monstros marinhos cada légua marítima, pouco importava. Bêbado, estropiado e perdido, virava náufrago de si mesmo, a se agarrar na única boia que ainda restava na popa ou na proa do navio a submergir. Agora, só lhe restara Basílio.
-- Então, boa noite naquilo que ainda resta de noite...
-- Tudo bem e obrigado por tudo.
A caminharem em direções divergentes, lá se vão dois corpos ausentes, sementes largadas em chãos diferentes. No céu, uma ou outra estrela surge entre nuvens de chuva e frio real. Para o mundo, tanto faz como tanto fez... Na cama, com lençol de cambraia branco e cheiroso, Virgínia dorme mais uma noite vazia.
 
III
 
A tarde sem nuvens ou poentes cinematográficos se põe no horizonte. Um casal ou outro, novo como amantes ou paixão fugidia, se traveste de contos derradeiros ou sonhos a viver. Não há muito como saber. Afinal, como dizia o poeta, cada um sabe a dor e alegria de ser o que se é. Mas lá estavam eles, a se beijarem, se tocarem, se perderem num maremoto de emoções sem ser. Haverá outro encontro? Saber-se-á. O importante naquele minueto do momento era nada importar.
A tarde infinita na finitude que escapa nos grãos de areia alva, entre pés e corpos prostrados em decúbito dorsal para facilitar a penetração, se prostra famélica e tardia nas sombras que surgem detrás das montanhas que se vestem de pedra e verdes. Num ou noutro espaço, de forma branda ou enlouquecida, a perfídia carcomida que de nada vale estar morto ou vivo. Em momentos de rebentos, sedentos de algo a prever no momento do depois, ambos, homem e mulher ou sejam eles de que sexo forem, apenas esperam os escombros que as cinzas do futuro dão ou darão.
Na tarde cadavérica e feérica, meio formicida e homicida, cariocas e paulistanos se juntam feito água e óleo. E aos poucos chega a referida noite, notívaga em si mesma, cheia de dramalhões e fastios, fatal para cada negror que ilumina o restante de vida de calendário. Nunca mais será a mesma. Viverá somente na lembrança, sem semente ou drama. E irá rir ou rirá dos absurdos que apenas a incerteza da certeza inexistente dá. E tudo ficará bem. Porque não há nada mais além.
 
IV
 
-- E aí, o que vai querer?
-- Cerveja, um meia-lua e poder bater um tambor com o Ding Dong  quando não houver mais ninguém aqui no Natural. Pode ser?
-- Quanto a cerveja e o meia-lua tudo bem. Já o batuque, vou ver...
Esse diálogo existiu? Certamente não ou sim. Se quem viveu não sabe cravar a veracidade, imagina quem sequer viveu um segundo do autor da lembrança da lambança. Mas que rolaram batuques com o Ding Dong, isso rolou. Em alguns dias pude ser músico (certamente horrendo no ritmo) da noite, nas noitadas que já não existem no Cambuí. Mas isso eu fui. E ninguém tira isso de mim.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Poemiseta (coisa de velho)

 Por Ronaldo Faria



Parcimônia que cheira que nem rara amônia.
Canção derramada em gotas na beira do rio.
Esperança que a mulher desperte nua para o cio.
Esperas na fera que se acalenta de quase nada.
Simbologia da orgia tardia e afugentada daqui.
Fotografia sem grafia de quem se esqueceu de grafar.
Epifania daquele que é apenas refugiado de si.
Plural em sevícias frígidas e trágicas no anoitecer.
Talvez uma tez famélica de ser tocada e beijada.
Aquela que o poeta concretiza em cada verso.
Canção perpétua e dúbia, algoritmo sem fim.
Talvez o crivo do crível descobrir no incrível desamor.
Na poesia contínua do lugar, o coração a bater no arfar.
Na saudade sem maldade, um eterno divagar.
Mas em qual lugar iremos um dia ou momento chegar?
Com certeza e experiência da ciência pessoal, nenhum.
Mas há onde o bote de naufrágios aportar o leme de chegar?
Entre segundos e fugidios minutos, o lar de Iemanjá.
Daqui, longe da Bahia, o tardio glamour de saber só ser.
No viés das ondas plurais, o mistério do entardecer.
Entre o eu mesmo e o eu de quem sabe o quê, o fim.
Erva doce a queimar no lugar e se largar no céu.
No fel de cada paixão, onde poder parar e crer?
No próximo dia, prostrado de ressaca, a cândida canção.
A esperança do ar rarefeito feito unção de torpor.
E talvez, quem sabe, no canto do sabiá entorpecerá.
Embriagado, abrigado em si, o poeta tenta se eternizar.
No vento parado no tempo, um livro de livre sexo.
E surge e urge o grito que esconde o condito urgir do mundo.
Falsas elegrias tardias e dispersas feito relicário de amor.
Como a cama que corre o quarto no frigir de gozos e odor.
Madrugadas naufragadas em elegias ternas de torpor.
Mas agora, na fauna e na flora, apenas se faz eólico fim.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Amedrontado

Por Ronaldo Faria

 

Toada tardia no fastio da saudade infausta que torna cada dia mais perto da essência finda de ser. As trilhas percorridas em corridas e passos largos para achar que se pode ser. O restante, diríamos de pulmões plenos, vá se foder!
Tempos de bares sonoros, cheios e solitários, antagonismos entre a felicidade e o fim. Lampejos de sortilégios que fogem a cada sono solitário e acordam no mundo insone para tragar em pesadelos o simples e etéreo dormir.
Brincadeiras efêmeras de macho e fêmeas, retornos etéreos entre beijos e versos, corpos transversos a roçarem o limite entre o começo e o fim. Coisa para iluminar de candelabros inexistentes os descalabros que a esperança dá.
Caminhar em ruas escuras, soturnas e tardias que a cada dia escurecem para depois se iluminar. Na cama, deitado e prostrado, o poeta venera o corpo desnudo e mudo que dorme a incerteza de que pode tudo do zero recomeçar.
Em mesas quietas e voláteis, táteis mãos não acariciam a pele ou os pelos que esperam esparramar ao derredor a dor de desejar. Na meia lua de um prato pálido, o comer fisiológico do que realmente se queria naquela noite comer.
No quarto, átimo de uma vida, a sentença crível e solitária de quem espera a amada que deixou fugir. Na rede que há muito deixou de balançar, o corpo abrupto, longe da terra natal, naturaliza o desejo de um dia ter seu bem-querer.
 
(Com o som de Beto Guedes)

domingo, 28 de setembro de 2025

O segundo disco dos Mutantes: uma revolução

Por Edmilson Siqueira


Eu já escrevi sobre eles aqui, mas nunca é demais voltar ao tema, com mais detalhes, afinal não é todo dia, nem toda década, que há uma revolução musical no Brasil. E ouvir novamente esse disco é como voltar num tempo que, apesar de uma ditadura sombria, trazia novos ares. E essa nem foi a maior revolução musical de todas, mas foi uma delícia. 
Com vocês: "Les Mutantes du Brésil: nouvelle tendances, nouvelles idées, nouvelle vie".  
A frase acima soou como um slogan na França em 1969. Era a descoberta, para o público francês do Midem (Mostra Internacional do Disco e Edições Musicais), do grupo brasileiro que estava revolucionando a MPB com sua ousadia e, claro, com novas tendências, novas ideias e nova vida.  
Eles chegaram na França logo depois de gravar o segundo disco por aqui: "Mutantes". E é esse o disco desse artigo. 
No final de 1968, ano da macabra estreia do AI-5, que apertou ainda mais os braços sangrentos da ditadura militar no Brasil, os Mutantes - Arnaldo Baptista, Sérgio Baptista e Rita Lee, mais o baterista Ronaldo Dias Leme e Claudio Baptista (irmão de Arnaldo e Sérgio e "mago em eletrônica") - estavam no estúdio, sob a batuta do também ousado maestro Rogério Duprat, gravando o que viria a ser um dos mais cultuados discos do pop-rock brasileiro de todos os tempos. 
E foi tão impactante, que Nelson Motta escreveu também no encarte: "A cada dia, nas voltas mais rápidas do mundo, mudam os conceitos, muda o sentido das coisas, muda a direção das emoções e a arte caminha cada vez mais livre, pelos mais estranhos e impossíveis caminhos. Ficou longe o dia da "Arte", e o mundo moderno decretou as inevitáveis ligações arte-consumo, arte-comunicação, arte-indústria, arte-massa, arte-utilidade: Mutantes." 
Não é pouco para um país cuja música parecia ter se "modernizado" com os novos compositores revelados e/ou consagrados nos festivais que, naquele ano de 1968 já estavam em franca decadência. Não que Chico Buarque, Edu Lobo, Vandré, Gil e Caetano tivessem sido passado para trás. É que os Mutantes, eles próprios participantes de dois festivais - um como coadjuvantes de Gilberto Gil em "Domingo no Parque" e noutro como autores de uma das músicas (que não ganhou prêmio algum), com aquele espírito anárquico-musical pareciam, a princípio, não terem lugar na "nova" MPB. 
Só que o talento foi maior que as dúvidas e suas músicas passaram a tocar nas rádios, os shows se sucederam e eles acabaram tendo grande participação no Midem da França, para onde voltaram no ano seguinte para shows e para gravar um disco - "Tecnicolor" - que por um desses mistérios insondáveis só foi lançado em 2000. Era um projeto pra internacionalizar o grupo - muita gente dizia, com certo exagero, que eles seriam nos novos Beatles. O disco tem músicas em português, inglês, francês e espanhol. Não sei por que não foi lançado à época, mas quando decidiram lançar, 30 anos depois, teve uma capa ilustrada por ninguém menos que Sean Lennon, filho de John e Yoko.  


O crítico Fábio Rodrigues comenta, no encarte do CD, lançado bem depois do LP, algumas músicas do segundo disco dos Mutantes, que tem um "caldeirão de ritmos, influências e misturas impressionantes". 
"Fanfarras épicas prenunciam a aparição de um exército medieval e apresentam um 'Sancho Quixote, mascando chiclete'. É um 'Dom Quixote' (Arnaldo Baptista e Rita Lee) brasileiro, buzinado pelo Chacrinha e fulminado pelos acordes de 'Disparada', de Geraldo Vandré e gargalhadas histéricas." 
A segunda faixa, 'Não Vá Se Perder Por Aí' (Raphael Thadeu, da Silva e Roberto Loyola) é um country com direito a rabeca e bons conselhos: 'Cuidado meu amigo, não vá se estrepar, não queira dar o passo mais largo do que as pernas podem dar'. E as mutações continuam. Em 'Dia 36' (Johnny Dandurand e Mutantes), o clima fica soturno, o vocal é distorcido - foi gravado através do canal de som de um órgão - os instrumentos estão fora de rotação como se alguém segurasse o disco no prato até pará-lo." 
Fábio Rodrigues prossegue: "As surpresas não param por aí. 'Dois mil e Um' (Rita Lee e Tom Zé) começa com uma viola, sanfona e vocal caipiras: 'Astronauta libertado, minha vida me ultrapassa em qualquer rota que eu faça. Dei um grito no escuro, sou parceiro do futuro na reluzente galáxia'. É dupla caipira, é rock pesado, é Mutantes e Tom Zé - que David Byrne descobriu mais de 20 anos depois." 
Além dessas, o disco contém: 
- "Algo Mais" (Mutantes), que foi a música que o grupo fez para um comercial da Shell. 
- "Fuga Nº 2" (Mutantes);  
-  "Banho de Lua (B. de Filipi, F. Migliacci - versão de Fred Jorge) 
- 'Rita Lee" (Mutantes) 
- "Mágica" (Mutantes) 
- "Qualquer Bobagem" (Tom Zé e Mutantes) 
- "Caminhante Noturno" (Arnaldo Baptista e Rita Lee) 
O CD é encontrado em alguns sites do ramo a preços razoáveis (100 reais no mínimo. Mas o LP já está na prateleira das raridades, com preços acima de mil reais quando em bom estado. 
No Spotify dá pra ouvir o disco inteiro em https://open.spotify.com/intl-pt/album/63cmfLGQUMuPRwgllZmz6a . No Youtube dá pra ouvir em https://www.youtube.com/watch?v=XyYAQHCnRu4&list=PL2R1HJ6BBn93Nb5ylNd9Q65fXzWV75sna

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Escarafunchando o som de Sandra de Sá

Por Ronaldo Faria


Caramanchões da África que beira o outro lado do Atlântico afônico em receber atônito o tônico de ervas e sabores que se esparramam pela terra que se espraia em mil jardins de ervas e províncias etéreas dessas que surgem para ficar em grilhões rompidos e jogados das galés sem fé. Em cada nova cria, a sina da vida: nascer pra crescer e gerar novas vidas.
-- Boa noite, Adão...
-- Boa noite, Jeremias.
-- E aí, como foi o dia?
-- De serena e sonora sangria. Peguei o trem, transitei entre ruas e esquinas, vi minha sina em cada olhar racista e simplista de ver a vida na cor da epiderme.
-- Não liga, a vida é uma série de verme...
-- Sei disso. Mas, se sobrevivi até hoje, vou até o fim. A luta é o nosso esquema.
Na revolta que a volta em meia volta dá e deixa, o som da música preta e os atabaques que baqueiam e findam os muitos baques que atropelam peles na junção do mundo. Lá no fundo, onde o coração bate igual e próspero ou letal, tudo é igual.
-- Como vão as crias?
-- Meus filhos vão bem. Estão vivos e plenos. Há muito deixaram de ser nenéns. São guerreiros e vencedores. De sementes, viraram flores plenas e belas.
-- E com certeza irão criar raízes e gerar gerações de homens e mulheres que rasgam as intempéries e chegam dos oceanos do mundo para atingir os continentes finais. Nunca letais, porque algum dia a sanidade vencerá. E não haverá partilhas, matilhas de cães raivosos a morder a própria pata e vociferar o ódio enlouquecido. Esse será esquecido e remetido ao obscurantismo da humanidade. E ninguém sentirá saudade. A maldade ao lixo enfim irá ser entregue e enterrada. E toda a bruxa irá virar fada, sem cor, sem raça, sem parar no meio da calçada.
-- Enfim, vamos curtir a vida. Chega de ter falésias que se entregam ao mar.
-- Com certeza. Cada minuto é mais uma série de segundos que devemos tornar num palco de trocadilhos, centelhas e estribilhos. Todos como a canção da liberdade sem fim.
Em volta, a noite respira em cada pulmão o mesmo cheiro que logo mais fará madrugada despertar.

Na viagem

Por Ronaldo Faria Viajante de suas loucuras diuturnas, quase equidistante entre a vida e a morte, Januário persegue qualquer polis que vire ...