Saudade santificada e
apoteótica, aquela que nenhum olho nem na melhor ótica nenhum óculos irá
encontrar. Porque ela está além das lentes que acolhem a vida. Saudade
profética e estética, estática no tempo como se esse quisesse somente parar sem
sair do lugar. Coisa de semente que não brota a lembrar e relembrar, se
descascar feito laranja largada no pé, solitária à espera de um bico de pássaro
para comê-la.
Saudade que a gente guarda em
si e resguarda cada momento pleno de lembranças anchas num lumiar que escurece
a cada dia. Coisa pequena e gigantesca, como os lábios ou as tetas (seios) da
amada. Provérbio de verbos mil, tresloucados e resguardados, guardados em
flores que cobrem os galhos secos da poesia nunca escrita. Inaudita, segue no retinto
entre o coração, o peito vazio e a incerteza do próprio senão.
Saudade proscrita nos introitos
tortos e performáticos que as frases ao léu levam além do fel que escorre das
bocas sem os lábios outros a se esconderem na prosaica lucidez que já não há. Sanha
de sobreviver com o corpo se tornando um nada banal na frieza frágil que se cristaliza
além da estrada que termina no nunca e jamais. Acalanto à busca de um canto ou
um cântico onde possa deitar no colo da saudade para reviver a canção.
II
-- E aí, você acha que estamos
indo embora?
-- Acho. Mas, também, tanto
faz. Onde toca samba toca jazz.
-- Ou seja, nada ficará?
-- Algo irá ficar. O tempo,
porém, será ermo. Bem ao termo do sonhar.
III
A árvore defronte do morro que
não existe, antes coberta de flores de cor grená, agora está que é só galho
seco, sem uma folha sequer. Ela se rendeu à morte da beleza para sobreviver porque
sabe que logo mais irá reflorescer. Encher-se-á de verde, virar pouso de
andorinhas, pombas, bem-te-vis, pardais, graúnas e sabiás. Nos seus galhos fará
dormir os pequenos corpos cansados de tanto voar desde os primeiros raios do
sol. Irá balançar aos ventos de fim de ano e seguir seu destino sem desatino
sequer. Porque para isso ela nasceu e foi feita: seguir. A árvore, bela e
resistente num canteiro diminuto de cimento, há anos se transmuta e muda de
acordo com as estações atabalhoadas dos anos. Esperemos ser iguais nesse pouco
tempo que restar...
IV
-- E aí, Renato, vamos pro
centro saravar?
-- Vou pensar. Mas até deu
vontade de bater um atabaque.
-- Vamos lá. Quem sabe não é a
hora de rever e ver o que nunca virá, mas que a gente teima em acreditar...
Amigos de tempo remotos e
tortos, Renato e Humberto, desses que não se sabe se estão juntos por caminhos
tortos ou certos, brindavam no boteco mais um dia passado. Frágeis, fortes,
dicotômicos e atônitos por tudo que já passaram e viveram, agora estão entregues
aos tragos que descem garganta a dentro. São apenas lembranças paradoxais de
uma trança do cabelo de Maria ou das pernas de Zélia a subir no ônibus
circular. Culpados por padecerem no mundo e parecerem normais em toda loucura
viva, são dois num só em pálidos segundos doloridos que se transformam em urdidos
acordares quando o mundo ainda respira o negror de ver o tempo passar.
-- Quer saber, vamos sim. É
hora dos santos agradecer e reverenciar.
Pagam a conta, que remonta
três dígitos, entram no Uber mais perto e descem diante do centro onde a
umbanda é a banda do bem. Dão cinco estrelas para o motorista que ficou calado
todo o percurso, seguem o curso da vida, sentam na plateia (porque bêbado não
dá para na gira entrar), cantam aos santos, recebem os passes de Vovó Maria Conga,
Pai Manoel e Nanã Buruquê. Saem refeitos e quase perfeitos do lugar sagrado e
cheio de milagres.
-- Porra, estou me sentindo bem
pra caralho! Vamos tomar a saideira?
Param no boteco que teimava em
estar aberto na área de conflito entre duas facções e são baleados sem nada ter
a ver com a briga da comunidade que habita a cidade distante e inaudita. Viram
pé de página no jornal que registra a sina. Ao menos o baluarte da imprensa
livre (mesmo no extrato dobrar e jorrar sangue) deixa claro que ambos eram
ficha limpa.
V
Cândido e Candinho eram amigos
desde os Anos de Chumbo. Lutaram juntos contra a ditadura, foram torturados, seguiram
ao exílio e sonharam a hora de voltar. Foram recebidos no retorno aos gritos de
“Anistia” e “O povo unido jamais será vencido”. O aeroporto era o porto que se
abria mesmo longe do mar. Voltaram para ouvir, como diziam poetas, os cantos do
sabiá. Seguiram juntos e unidos. Unha e carne. Na cantoria que existe entre o
oceano e o sertão. Viajaram quilômetros em milhares de estradas da felicidade e
da agonia na verborragia que lhes restava ainda. Pregaram a reconciliação, a
ação que dá uma sobrevida à vida, mostraram que o perdão leva a algum lugar,
seja esse qual for. Foram arauto e silêncio na querência que a sequência da história
fez-se de sentença e glória. Meio sentença e outro tanto sinal. Pregaram,
diriam os incautos e profanos, em vão. Morreram quase no mesmo dia, não lhes
separasse meses de remissão. Enterrados em lápides diferentes, como toda a
gente que lhes foi o súbito e maior altar, dizem que se encontram num céu
desses que ninguém jura de pés e mãos juntos que há.
VI
O altar da pequena capela é a
cena central. Cheia de cocô de morcegos que vivem no desassossego de trocar o
dia pela noite a defecarem nas imagens dos santos restantes do lugar, como retirantes
da fé, ela está ali: entregue ao tempo que gira sem parar. A fazenda, antigo
engenho chamado Murta, é somente um espaço cheio de pedras e rezas, reses mil.
Cheio de histórias, velhas de vestido preto e um telefone de pilha e manivela
pra girar, são o restante de tempos nunca impávidos e sequer em colosso. Nele
uma menina como que esquecida da mãe e do pai cresce a incandescência do sol
que brilha claro cheio de lumiar. Entregue aos tempos antigos de juntar família
e algo qualquer que se deseja ser no ar, dá-se ao homem único e escolhido. Em
silêncio, com o pano onde irá derramar a virgindade arrancada, vê-se em véu branco
como a festa da cantilena da sereia que sabe que não existe além-mar. Feito
barca que corre um rio revolto a desaguar nas ondas que teimam em tentar dormir
na areia que há, cumprirá seus sonhos insones e largar. Longe do lar
conquistado, sem um fado sequer que valha qualquer foda tida, irá morrer numa
cama asséptica e branca de um hospital de nome de tal e tal. Na areia clara e
fina do rio que chamam de real, certamente o tempo que se esvaiu há tempos no
coronel e lembrava o nome de Jesus lhe retorna ao lar...
VII
Um grupo pra reviver 45 anos
de uma república? Casinha pequena e pétrea na parafernália da metrópole que se
fez acrópole do passado, casuística e mística, quase música e certa pichação (com
certeza hoje coberta de tinta) do poeta que chora a resposta posta para cravar
a vida da amada numa esquina que não tem o grito do Ipiranga e muito menos as
bênçãos de São João. Porém, se tudo na vida destino há, que venha tal encontro a que se destina...
VIII
Arrependimento não haverá. Não
há. Afinal, o tempo não tem como voltar. Errou-se? “Erro” se perpetuará. O que
ficou, ficará. No seu tempo proscrito na imensidão. Voltará claro e volátil de
tempos em tempos, como se quisesse se refazer. Ao saber que não poderá,
surtará. E irá bater nas efemérides e intempéries que sofrem na seca um pé de
cajá.
IX
Caralho, os numerais em algarismo
romano o tal de aprendiz de poeta ainda sabe... Revoltado e ao mesmo tempo a aceitar
o que foi e vier, José é só um pingo de cinza na humanidade que a verdade transformou
em algoritmos sistêmicos e isquêmicos. Agora, em Marte ou no quadrado esférico
e retangular do luar lá fora e aqui dentro, no aforismo quântico tudo está
igual. Saudoso desde já da vida que se esvai a cada dia naquilo que ainda virá,
o mundo cumpre seu destino interrupto e modal. Afinal, há milênios mil faz tudo
isso sempre igual. Loucos, poetas e profetas souberam vê-lo em pesadelos e
embriaguez em enlevo e zelo. Já aqueles que nunca souberam tê-lo, as telas de pequenos
buracos marcados de sangue recobrem de vida o lugar cheio de pernilongos a sugar
o sangue da gente incauta na busca do prazer.
X
De verdade, me pergunto como os
escritores e poetas antes do computador (filho de 1957 sou deles também, mas
sobrevivi para ver a tecnologia chegar) conseguiam rever e revisar seus textos sem
rasgar papéis ou laudas e dizer “caralho seria tão mais fácil se não precisasse
colar ou reescrever tudo novamente!” E tanto reescrevi, rasguei, colei e
xinguei. Nada como um dia depois do outro, como uma noite e madrugada no meio. Seja
o que isso for...
XI
Bahia, minha terra etérea e
verdadeira, com seu povo e sua linhagem, descoberta de amores (um que me livrou
da morte no Ceará com a sobrinha-neta de Lampião), louvores, raízes, cheiros,
odores, luzes, descobertas, paixões, unções, lembranças anchas, coisas que nunca
deixarão o copo torpe e repleto de lembranças que a gente nem sabe, hoje, se
realmente existiram. Bahia minha, saudade suada e calada, a gritar a cada dia
numa imensa nostalgia, deixa dormir a amada que vive sua noite sem dois em dó
apertado.
XII
Doze escritos como os mandamentos.
Tormentos, lamentos, excrementos do viver. Candelabros e descalabros a
brilharem na lua gigante e infante, arfante para muitos e tantos. E ainda bem
que nessa Terra há amantes nus e sob as mantas jogadas no chão nesse Inverno que
parece o inferno do calor seco e quente. Que os deuses da loucura e daquilo que
tiver de ser saibam ser no desmedido do que for na seca flor. E se não
acordarmos amanhã, nem aqui ou nos polos norte e sul, que a morte nos seja tão
nobre como esse escrever.
(Com Caetano e tantos outros)