terça-feira, 9 de setembro de 2025

Gil e Milton, juntos, misturados e geniais *

Por Edmilson Siqueira



Apesar de lançado há um quarto de século, o álbum Gil e Milton, continua atual e representa um daqueles momentos raros em que dois grandes artistas, cada qual com sua trajetória já consolidada, unem forças para criar uma obra que sintetiza décadas de história da música popular brasileira. Gilberto Gil e Milton Nascimento, nomes que dispensam apresentações, se encontraram em estúdio para celebrar a amizade, a admiração mútua e o compromisso com a arte. O resultado foi um disco sofisticado, plural e, ao mesmo tempo, profundamente enraizado na essência da MPB. 
A ideia de juntar os dois não surgiu de repente. Ambos já tinham cruzado caminhos em festivais, shows e colaborações esporádicas, sempre alimentando uma relação de respeito e proximidade. No entanto, foi apenas no início do novo milênio que essa parceria ganhou forma em um projeto robusto. O disco traz arranjos refinados, produção cuidadosa e, sobretudo, um repertório que transita entre clássicos revisitados e composições inéditas, confirmando a vitalidade criativa de Gil e Milton. 
Logo na abertura, a atmosfera é marcada por uma comunhão de vozes que se complementam. Gil, com sua cadência nordestina, e Milton, com seu timbre inconfundível, estabelecem um diálogo que parece natural, como se as músicas sempre tivessem sido pensadas para eles dois. O álbum passeia por gêneros diversos: samba, baião, baladas e canções que carregam a tradição mineira e baiana, espelhando a diversidade cultural do Brasil. 
Um dos grandes destaques do disco é justamente essa confluência de estilos. Gilberto Gil traz a força da herança afrobaiana, marcada pelo ritmo, pela batida do violão e pela capacidade de incorporar elementos modernos à tradição. Já Milton Nascimento oferece sua assinatura melódica única, com harmonias complexas, lirismo poético e um canto que sempre parece apontar para algo transcendental. O encontro desses universos cria uma sonoridade que é, ao mesmo tempo, singular e universal. 
O repertório contempla faixas que falam de amor, espiritualidade e da própria experiência de viver no Brasil. É impossível não perceber no álbum o tom de celebração da amizade, não apenas entre os dois músicos, mas também como um valor coletivo.  
Musicalmente, o disco também revela a maturidade dos dois artistas. Longe da necessidade de provar algo ao público, Gil e Milton se permitem experimentar, brincar com arranjos e explorar interpretações. Há momentos em que a simplicidade domina, com violões e vozes em primeiro plano, e outros em que a riqueza instrumental se expande em arranjos elaborados, lembrando a grandiosidade das produções orquestrais.  
Em termos de recepção, Gil e Milton foi muito bem acolhido pela crítica e pelo público. Muitos viram no disco não apenas uma obra musical, mas um documento cultural, a própria memoria da MPB sendo preservada. 



Mas não pense que o disco é uma visita nostálgica ao passado. "Gil e Milton" aponta para o futuro ao mostrar como a música pode permanecer relevante ao se reinventar sem perder suas raízes. Ao invés de simplesmente repetir fórmulas, os dois buscaram criar algo, que refletisse suas experiências acumuladas e ao mesmo tempo se conectasse com o espírito contemporâneo. 
Pode dizer que, no disco, o acarajé da Bahia ensolarada de Gil encontra o pão de queijo da Minas montanhosas de Milton, e o resultado é uma paisagem sonora que traduz a riqueza e a pluralidade do Brasil. O disco permanece como um marco na discografia de ambos e como uma referência obrigatória para quem deseja compreender a trajetória da MPB no final do século XX e início do XXI. 
A abertura já dá o tom do disco: "Sebastian", uma canção inédita, composta por Gil, em homenagem a São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro, ganhou letra de Milton que mistura religiosidade e lirismo urbano, enquanto os arranjos evocam tanto o sagrado quanto o popular.  
Ao longo de suas 15 faixas, Gil e Milton se mostra como um trabalho de síntese: junta raízes populares, espiritualidade, lirismo poético e experimentação rítmica. Cada faixa tem sua singularidade, mas todas se unem sob a ideia de diálogo — entre vozes, estilos e histórias pessoais. 
Mais de duas décadas após o lançamento, Gil e Milton continua, repito, atual, não apenas pela qualidade musical, mas também pela mensagem que passa. É um álbum que ultrapassa o momento histórico em que foi criado, permanecendo como documento fundamental da MPB e como registro do encontro de duas forças criativas que marcaram gerações. 
Além de Sebastian (Gil e Milton) o disco é composto pelas seguintes músicas: 
Duas Sanfonas (Gil e Milton) com a participação especial de Sandy e Júnior 
Ponta de Areia (Milton e Fernando Brant) 
Bom dia (Gil e Nana Caymmi) 
Trovoada (Parte A Gil - Parte B Milton) 
Something (George Harrison) 
Maria (Ary Barroso e Luiz Peixoto) 
Lar Hospitalar (Milton e Gil) 
Yo Vengo a Ofrecer mi Corazón (Fito Paez) 
Dora (Dorival Caymmi) 
Xica da Silva (Jorge Ben) 
Canção do Sal (Milton Nascimento) 
Dinamarca (Milton e Gil) 
Palco (Gil) 
Baião da Garoa (Luiz Gonzaga e Hervé Cordovil) 
O disco está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=QNKw76aODpU&list=OLAK5uy_l_fX4-zougLR4KReyQhitrsZVWM8rWoOY&index=2

*(A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT)

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Volta no volteio

Por Ronaldo Faria



Volta à vida que quase se foi, enfastiada, tragada de performances sem nuances de epopeia e odisseias que possam se contar. Talvez um ou outro encontro ou desencontro, mil contos que foram contados e outros tantos milhares que nunca se contarão. Afinal, essa é vida: sopro fustigado de cataclismos e versos mudos e surdos em entrevero do último suspiro, o derradeiro.
Quiçá surgirá a inaudita canção que se descobre na ilusão do sempre virá, no ungir de talismãs impregnados de vozes em surdina e afagos. Em lânguidas lambidas no ventre da amada, gotas de saliva a salivarem nos lábios quentes e retintos de sangue e unções do amor que foge em cada gemido nunca soado. No dito e por não dito, no desdito do mentiroso cioso, a sentença do estradeiro.
Na estrada à frente, cheia de pedriscos e gente, o unguento que urge no lamento do boiadeiro no esmero de chegar. Afinal, ao final da trilha, está Maria, seja qual for seu prenome, a lhe esperar. No debulhar do milho verde dependurado no roçado, xaxado se mistura ao fado. A partir daí, qualquer ato tresloucado se torna comédia ou drama inacabado. Feito passarinho no seu revoar.
E no final, voltar é repetir o deixar e seguir estradão sem momento ou retidão. É fazer nova trilha aonde os pés já cansaram de brincar de pisar. Retomar a rotina nas crinas do cavalo que corre e escorre sob o céu que brinca de imensidão. Cravar pesadelos mil, loucuras de roteirista da vida. Paródias que nem o mais sagaz roteirista saberia criar ou decifrar quando deveríamos apenas sonhar.
Voltar. Pisar ainda em ossos que logo irão virar pó. Na prosopopeia da epopeia que não vale sequer uma ilíada, continuamos a respirar, fazer de translúcidas imagens o sarcasmo de não desejar e esperar. Esperar e respirar, esperar e ingerir ar, esperar e aspirar. Em volta, nas voltas da vida, um som de chegança e rimar. Falácias mil e o correr de imagens e desejos a proliferar.

(Com Renato Teixeira)

sábado, 6 de setembro de 2025

Enluarada na claridade infinda

 Por Ronaldo Faria



Lua luzidia e frígida, vulgar no céu. A se mostrar inteira e nua de branco na espera do casório com o sol. A brincar com a cabeça dos loucos e se redescobrir acima de todos, dormindo no sono insone que cobre de beijos quem tem saudade sem fim. Cheia de mistérios etéreos que nem a sonda lunar saberá desvendar. Inquieta e largada em qualquer quintal ou lugar. A iluminar beijos de amantes relutantes e roupas que quaram à espera da brancura final.
Lua na perfídia da antítese proibida e restante no tanto que não sabe se morre ou se brilha. Se vai se jogar no asfalto como o bêbado que despenca na derrocada do fim ou percorre lençóis catatônicos e atônitos por servirem de ninho de amor a dois corpos que nada têm de asas para voar. Galopante em cada rompante que se esmera por um lugar pra derrear e chegar onde as chagas da vida se esquecem que o tempo cura as feridas e as lágrimas.
Lua incandescente e cercada de cinzas lunares como fogueiras que se queimam em esteiras forjadas de restos de capins e plantios mortos de secar sem rio ou chuva de sertão. Poesia sem rima ou rumo, plantio abortado sem semente e mão para jogá-la no chão. Cria de cada um de nós entre paixões, versos malfadados, fadas desnudas a voar. Canções ultramarinas e cheiros de rosas a entrarem nas narinas que desvendam risos e corpos em cópulas no fim.
Lua que corre nas trilhas de terra batida e encardida de pés sujos que não têm o que calçar. Que ilumina tanto o rico que dorme entre notas e pepitas de ouro e o pobre que se faz andarilho na busca de ao menos saber o que é viver e estar. Unidade que delimita olhares apaixonados e ilusões do nunca amar. Casa dos poetas e falsos profetas, ascetas de tanto pelejar chegar, grudados no rincão, no mar que desemboca além do além-mar.
Lua que se torna cigana e se entorna fatal sobre o corpo desnudo da amante que se desdobra ao som de um bandolim e do homem que pensa ser a hóstia que oscula os seios entumecidos e voláteis a se enrolarem na cama proibida de ser o fim de tudo. Sobretudo, restam a calma do derradeiro amor, o ardor que só quem sabe o que é a dor haverá de ter e o insólito praguejo que surge em soluços e gargarejos para amenizar a brincadeira do senão.
 
(Com Xangai a cantar e catar restos de luar)

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Distanciamento e quatro finais

Por Ronaldo Faria


 
A arcada dói. E bate em pontadas que parecem querer rasgar a cabeça. Sob os Arcos da Lapa, arqueado pelo tempo, Josué espera as horas passarem para ir para casa. Segurança de uma boate e bar, morador de São Gonçalo, ele percorre 72 quilômetros todos os dias para e ir e voltar e descobrir que entre a distância há ânsia de vida e consonância com mundos apócrifos e traçados na métrica da vida costumeira de se virar.
No bar/boate toca Timeless, de Sérgio Mendes. O som brasileiro/norte-americano faz a cabeça de gringos e descolados do Rio que só querem beber, amar, viver os trópicos que dólares e benesses dão. Um calor noturno e madrigal veste de suor os copos de chope e as camisas de algodão dos homens. A pouca brisa que perpassa o lugar ainda traz um pouco de cheiro do mar. A cidade, maravilhosa, se traveste de claro luar.
Mas, para Josué, o olhar não é para as pernas de moças, prostitutas ou travestis, devoradas por cada mesa de conquistadores baratos ou não. Está longe. Em algum bairro a 36 quilômetros dali. Está nos braços apaixonados de Valéria, melhor que a xará da Globeleza. Está nos seus lábios, seus afagos, no doce balbuciar que entrega ao mundo quando se juntam na cama depois de um churrasquinho no trailer da esquina.
Ao seu redor, em passos de horas para cada segundo traçado, a vida tem dó de girar em torno de si numa rotação milenar. Nos rostos e corpos que se encontram, se falam, se despedem ou se despem, gostos de drinques e batatas fritas a óleos quase queimados se transmutam em selfies, solicitudes ou servidões de depois. Para alguns terá valido passar o cartão de débito a um crédito de alegria. A outros restará a solidão vazia.
Nova pontada que o faz parar até de pensar. “Por que essa dor?” A pergunta fica sem resposta posta. O jeito é forçar os ossos da face, passar a língua entre os espaços que um dia tiveram dentes e rezar. Algum santo ou orixá dele irá se apiedar. Um garçom o chama para resolver a questão com um cliente que não quer pagar a conta. É hora de esquecer dor e expor os músculos conquistados com muito ferro e esteroides.
·         Final um: Josué para na frente do “caloteiro” e pede, gentilmente, que ele pague direitinho e tudo ficará bem. Todo mundo sairá de lá feliz e cheio de amor para dar e receber. O rapaz, já calibrado e a mil, se nega e o manda para a puta que pariu. Josué lembra da sua mãe – Dolores – senhora que o criou e a mais seis filhos sem marido do lado e aí não aguenta outra pontada. Dá dois diretos na cara do camarada e outro na boca do estômago, para não perder a referência da face. Com sangue exangue, o rapaz enfim saca a carteira e deixa cada centavo arrematado. E ainda dá gorjeta.
·         Final dois: Josué para na frente do “caloteiro” e pede, gentilmente, que ele pague direitinho e tudo ficará bem. Todo mundo sairá de lá feliz e cheio de amor para dar e receber. O rapaz, já calibrado e a mil, se nega e o manda para a puta que pariu. Josué pensa em descontar no valentão todas as horas gastas de busão e sem os olhos de Valéria. Mas segura a onda, segura o caloteiro numa gravata e pede para o garçom ligar para a 5ª DP. Não dá dez minutos e os meganhas prendem o rapaz que irá dormir no xadrez e ser enquadrado no total rigor da lei vigente e ciente.
·         Final três: Josué para na frente do “caloteiro” e pede, gentilmente, que ele pague direitinho e tudo ficará bem. Todo mundo sairá de lá feliz e cheio de amor para dar e receber. O rapaz, já calibrado e a mil, se nega e o manda para a puta que pariu. Josué pensa em reagir e deixar o valentão com a mesma dor que o acomete no maxilar, mas não tem tempo, O dito cujo estava armado com uma pistola 7.65 com o número de registro raspado. Não dá sequer tempo de reação: são cinco tiros no peito de Josué. Lavado de sangue e da cerveja que caiu junto com a mesa onde ainda tentou se apoiar, ele tomba morto. O caloteiro, porém, é linchado pelos frequentadores do lugar e outros tantos que chegaram para bater e matar.
·         Final quatro: o garçom faz um sinal para Josué de que não é mais necessário o seu préstimo de boxeador e faixa roxa de MMA. O rapaz, ao vê-lo de longe ajeitando a camiseta nos bíceps, decide que era melhor pagar aquilo que consumiu, comeu e bebeu. O bar e boate começa a fechar. Josué ajuda a descer a porta de ferro e se dirige ao ponto de ônibus. Daqui a algumas horas irá abrir o portão da casinha de quatro cômodos e se acomodar na cama ao lado da amada. Se ela acordar, de repente rola trepada. Se não, um beijo gostoso misturado de café logo de manhã já estará de bom tamanho. No ponto do BRT um fanho tenta cantar Mas Que Nada, mas trava no “sai da minha frente que eu quero passar”. Josué ri e pela primeira vez a cabeça parece não doer e latejar. Os últimos casais que conseguiram se acasalar seguem entre afagos e tragos para outro renascer.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Indagações com Itamar Assumpção

 Por Ronaldo Faria



-- Felizardo, você é bacharel em quê?
-- Comunicação.
-- E pra isso precisa ser formado? Não basta estar antenado?
-- Pode ser, nunca havia pensado nisso.
-- Comunicar até o paraíba (não há aqui, como filho de nordestinos, nenhum demérito)  de porta de loja faz.
-- Tem razão. Não tinha pensado nisso. E agora, com a tal de internet, todos são comunicólogos. Ou seja, fiz faculdade nada por nada e me fodi.
 
II
 
-- Carmelo, você é formado em quê?
-- Filosofia.
-- E isso serve hoje pra quê?
-- Para questionar razão, ideologia e até a fumaça de um beck.
-- Mas para se ficar doidão não basta puxar, segurar o máximo e soltar?
-- Mais ou menos. Ou sim. Tem razão. Doidão é meio filosofia...
 
III
 
-- Luzia, luz da minha vida, você é o que na vida?
--  Sexóloga e influencer digital e coisa e tal.
-- Mas para se fazer sexo não basta se querer e pra influenciar não ter que algo dizer?
-- Acho que sim.
-- E sexo não é além da tela? É pele com pele na peleja.  E influência não é fluência na essência daquilo que se faz?
-- Sei lá. Você quer foder com o meu ganha-pão?
-- Não. Só entender.
 
IV
 
-- Gastão, o que você faz da sua vida?
-- Vivo.
-- Só isso: gasta seu tempo assim?
-- Acho que sim. Vivo num ritmo próprio e abstrato. Me trato e me destrato. Nasço e morro hoje e antes. Sou tragicomédia e teatro. Íntegro no corpo que integro e envelhece em intempérie nos pés que ressurgem descalços em tamancos.
-- E os mil solavancos que a realidade dá, como tratar?
-- Nesses eu nem quero poder pensar. Já que não posso mudá-los, que se fodam em fornalhas benfazejas e sonantes. E queimem rápidas em pães sovados e constantes.
 
V
 
-- Kátia, onde você cata as suas premeditadas nuances em tantas vidas tântricas?
-- Nunca pensei. Talvez eu tive medo antecipado por todos meus dias. Empedernidos e vívidos em loucuras vividas e sufocantes. No meio de uma mata claustrofóbica feito manta de samba.
-- Eólica que a vida é, já que se perde em ventos nos invólucros dos solilóquios de cada um de nós, não te basta parar na chuva fina e madrigal que cai nos ínfimos grãos de areia que a onda rola de repente?
-- Para, não vou responder. Um livro que divulguei à mulher que passava já valeu a beleza da vida...
-- Concordo, como amante, poeta e investigador da dor que a saudade nos traz. Afinal, sumir de tudo que se tem no mundo que essa tal de internet criou, tem que ser motivo de virar madrugada no lugar que o Tom fez surgir em consolo.
 
VI
 
Que terno seria ser apenas um pouquinho filho da puta, como diria Itamar Assumpção. Ao menos teria em mim a minha última unção.

domingo, 31 de agosto de 2025

Art Blakey e a tradição dos Jazz Messengers *

Por Edmilson Siqueira


Sentir a sensação de um grupo de jazz formado só por cobras é, para o amante do gênero, algo indescritível. Como é impossível que todos os fãs estejam presentes, a gravação de um disco ao vivo foi a fórmula encontrada pelos artistas - e, claro, não só de jazz - de levarem aos seus respectivos públicos a arte e o clima da apresentação. 
Só que no caso de jazz e suas vertentes, sempre há algo mais: o entusiasmo da plateia - geralmente pequena - se manifesta ao fim de qualquer solo ou improviso mais caprichado. É o que acontece nesse "Art Blakey and the Jazz Messengers Live at Kimball's".  
A sensação é tão prazerosa que o editor e publisher do guia de jazz de Nova York "Hot House", Gene Kalbacher, escreveu, logo nas primeiras linhas do encarte que acompanha o disco o seguinte: "Nada supera a euforia de estar lá. Pessoalmente, a experiência é sempre mais pessoal, primordial e memorável. E, com a sua presença, você contribui e compartilha essa glória." 
“Live at Kimball’s”, gravado ao vivo em 13 de abril de 1985 - lá se vão 40 anos - no clube Kimball’s, em São Francisco, e lançado no mesmo ano pela Concord Jazz, é um testemunho eloquente da energia arrebatadora e da vitalidade do hard bop, encabeçado pelo lendário baterista Art Blakey e sua talentosa formação dos Jazz Messengers.  
Eu perguntei à IA como ela definiria "hard bop". A resposta: "Hard bop é um subgênero do jazz que surgiu como uma evolução do bebop, incorporando influências do rhythm and blues, gospel e blues, especialmente nos instrumentos de saxofone e piano. Desenvolvido durante as décadas de 1950 e 1960, o hard bop se destaca por sua intensidade rítmica, similar ao bebop, mas com melodias e harmonias mais acessíveis, e um forte apelo emocional." 
A resposta é mais que correta e eu diria "ufa! Finalmente alguém fez do barulho do bebop algo harmonioso e altamente palatável aos sentidos." Sim, eu sempre torci o nariz para os malabarismos do bepop que para mim soa tão ruim quanto o heavy metal que, dizem por aí, é rock. 
A banda Jazz Messengers é praticamente uma instituição jazzística norte-americana. Teve, entre 1953, ano em que foi criada por Art Blakey e Horace Silver (que saiu em 1956) nada menos que 28 integrantes até 1990 quando encerou suas atividades com a morte de Blakey aos 71 anos.  
Para se ter uma ideia da importância do grupo no jazz, o texto do folheto cita, ao comparar o público do som ao vivo com os que preferem ouvir um disco, alguns de seus integrantes ao longo dos anos, todos eles tendo como líder o baterista Art Blakey: "Os fãs de jazz presentes no Birdland em 1954 (para o quinteto pré-Jazz Messengers com Cliford Brown e Lou Donaldson na linha de frente), no Cafe Bohemia em 1955 (para os Messengers com Kenny Dorhan e Hank Mobley), no Village Gate em 1961 (para o sexteto Messengers com Waine Shorter, Fredie Hubbard e Curtis Fuller) e no Keystone Korner em 1982 (para os Messengers com Branford e Wynton Marsalis) têm mais interesse nesses eventos históricos do que aqueles que curtem a música em disco." 


Art Blakey foi uma figura emblemática do hard bop liderando os Jazz Messengers desde meados da década de 1950. A banda funcionava também como um berço para novos talentos, tendo revelado nomes como Lee Morgan, Wayne Shorter, Freddie Hubbard, Wynton Marsalis, entre muitos outros.  
Na gravação de "Live at Kimball’s", a banda reunia músicos notáveis: Terence Blanchard (trompete), Donald Harrison (sax alto), Jean Toussaint (sax tenor), Mulgrew Miller (piano). Os 47 minutos e 35 segundo do disco estão espalhados por sete faixas que aliam composições originais e standards do jazz:  
1 - "Second Thoughts" (Mulgrew Miller) 2 - "I Love You" (Cole Porter) 3 -"Jody" (Walter Davis Jr. e Wynton Marsalis) 4 - "Old Folks" (Dedette Lee Hill e Willard Robison) 5 - "You and the Night and the Music" (Howard Dietz, Arthur Schwartz) 6 - "Polka Dots and Moonbeams" (Johnny Burke e Jimmy van Heusen) 7 - "Dr. Jackie" (Jackie McLean) 
O crítico Scott Yanow, da AllMusic, afirmou que o grupo era “particularmente talentoso” e que “todas as suas sessões valem a pena para amantes do moderno hard bop”. Para ouvintes que desejam ir além dos clássicos iniciais dos Messengers, este álbum oferece uma ponte ideal entre o passado lendário e as evoluções contemporâneas do estilo. É uma experiência intensa, cheia de ritmo, alma e o inconfundível balanço que só Art Blakey e sua energia contagiante sabem imprimir. 
O disco está à venda nos bons sites do ramo e algumas de suas músicas podem ser ouvidas no Youtube. 

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.



sexta-feira, 29 de agosto de 2025

João e sua Quitéria

 Por Ronaldo Faria


 

João amava Quitéria na quietude promíscua que um batuque intermitente soava do alto do morro. E a amava tanto e em tanto amor que parecia o garoto que rodava no chão seu primeiro pião. No passado, comiserado e atávico, mal gasto e malfadado, no desgosto sem gosto feito feijoada na falta de rabo de porco, João sobrevivia e antevia seu fim. Fidalgo da avenida São João na vendeta tardia, pandeirista primaz, desfilava na passarela dos tempos como ser temporão. Vilão das veleidades da vida era comediante que segue adiante sem ver a verdade ou sequer a velocidade que o tempo traz. É somente João, semente à espera do fruto que Quitéria lhe proverá. Entre uma saudade e outra, rezava sua ave-maria.
João idolatrava Quitéria, quimera dessas que se esconde na janela a ver beijos de arlequins e colombinas sem multidão. Sonhador, ser solitário de solilóquios efêmeros, catatônico entre um pesadelo e outro, atônito, transitivo sem trânsito, muitas vezes afônico, nos perjúrios da vida a desandar, João ouvia Zé Kéti a dizer que é triste a gente morrer. E pensava que talvez o poeta da caixinha de fósforo não tivesse pensado que triste é se morrer sem viver. Contudo à todavia do entretanto, eis que surge Itamar Assumpção, gênio que a genialidade levou cedo para compor músicas com um Deus qualquer, seja ele negro ou de solidéu.
Agora com as Orquídeas do Brasil a soltarem sua voz será que João deixou de amar Quitéria? Mera quimera. Quem dera. Parece ser despacho feito debaixo do capacho que dorme sujo na soleira da porta torta. Não há como esquecê-la. E nem deixar que ela seja, benfazeja, criatura de hotel com primo na primazia de um jornal pirado perto do parque prosaico onde ela nunca some no sumidouro que a mente da gente tenta recriar. No lugar da saudade, casamata que se desmonta à primeira bomba tonta. No recôncavo das orações verbais que o verbo destrói à primeira verdade, a incongruente ausência na efeméride da fugaz saudade.
João, anunciação do Itamar, singelo ser de somente ser, sem sequer querer ter, somente se questiona na tônica da crônica mal escrita se a desdita faz sentido. Maltrapilho a se ajoelhar em milhares de grãos de milho, sente no sangue que corre no chão o gosto do amido. É apenas um pedaço de pena imune ao voar do pássaro que cambaleia no asfalto infausto cheio de buracos que se rompem na noite como a mais linda meretriz. Na sandice que a crendice de algo surja, a suja bazófia de falar inglês feito matuto do mais recôndito sertão. Afinal, no final de tudo desse submundo, João vira Clarismundo do negror da solícita solidão.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Protético do estético malversado

  Por Ronaldo Faria


-- E então, vai enfim fechar a fachada da boca na parte de cima?
-- Vou!
-- Puta que pariu, se deu bem!
-- Sei lá. Saiu até barato para aquilo que eu acreditava. Tomara somente que não seja dentista paraguaio...
-- Tá com medo de levar gato por lebre?
-- Eu não. O que vier agora é lucro.
-- Então manda ver!
Silva, como todos os milhões de Silvas do mundo, conseguiria agora comer dos dois lados, beijar sem medo de meter a língua na boca da cabrocha, sorrir mesmo sem saber sorrir de sorriso aberto e feliz, sorridente da orgia. Por fim, sobraria algum na conta corrente que é que nem de bicicleta a soltar direto e derrubar o coitado que senta no selim. Despedido do emprego de miserável do INSS, ludibriado pelas mentiras que lhe são impingidas, Silva achou um tio que um irmão do primo do cunhado, casado com a irmã gêmea da quadrigêmea da vizinha da moradora do número 30453 da Rua Belavista Prevista, tinha lhe deixado uma grana torta enterrada no quintal embaixo da única roseira em sobrevida. Esperto, ele pegou a enxada e suou até chegar na bendita. Depois de cavar meio quarteirão e nem sequer ter ido na orgia, descobriu um pote de porcelana chinesa que escapou da taxação das blusinhas e estava lá. Era a grana para garantir três dentes dos quatro do predestinado balbuciar que nem paga IPTU.
-- Parcelei em um ano. Parcelas que devem ser procelas ou porcelanas da sorte. Senão, quando eu for para terra de pés juntos, o que parece ser logo mais, sem prólogo ou gol que te torna imortal, ao menos São José não vai dizer, “pode sair parceiro, aqui só quem tem ao menos os dentes nascentes decentes”.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Seiscentos mil réis

 Por Ronaldo Faria


 
-- Zé Ruela, e aí? Tudo nos trinques?
-- Agora está, Valêncio. Hoje fui recebido com tapete vermelho no banco. Senta aí e vamos encher a cara!
-- Foi lá pra lavar o salão?
-- Que nada. Fui depositar seiscentos mil contos de réis que ganhei na milhar do leão.
-- Como assim? Ganhou na banca do Pirizonha?
-- Ganhei. Lembra que eu sonhei com a jararaca da minha sogra? Como leoa não tem, fui no macho em questão. Deu na cabeça a milhar!
-- E o banco?
-- Pois é. Lembra que o vigilante não deixava nem eu amarrar o sapato defronte?
-- Lembro. Ele logo te mandava circular...
-- Pois então. Cheguei na porta e ele veio logo querer bronquear, mas aí eu abri a sacola de feira e mandei ele se quisesse até contar. Precisava ver os olhos dele arregalados e esbugalhados. Não só abriu a porta como chamou o estafeta pra me servir um café passado na hora.
-- Porra, Zé Ruela, tratamento vip.
-- Daí veio um tal de consultor de investimentos e um gerente de beca passada com louvor e dependurada em cabide há tempos.
-- Caralho, tudo nos conformes desejados?
-- Mais do que isso. Mandaram comprar empada de camarão e até uma cervejinha gelada, enquanto contavam nota por nota dos seiscentos mil réis. E foi um tal de senhor pra lá, senhor pra cá, deseja algo mais. Eu fiquei até acabrunhado. E olha que eu sou malaco criado.
-- E aí, aplicou toda essa grana em quê?
-- Sei lá. O tal do consultor propôs até uma viagem à Nova Iorque pra eu conhecer a tal de bolsa dos gringos. Mas como eu mal sei falar português, disse que não. Melhor ficar aqui pela Lapa. E bolsa é coisa de mulher...
-- Fez bem. Confiar em gringo é coisa de otário. Mas, afinal, deu tudo no quê?
-- Deu que eu virei cliente de um pintor maluco da Holanda que cortou a própria orelha.
-- Cacete, cortou seco com navalha?
-- Sei lá. Pintura de tela é coisa que só vale se for daquelas gostosas peladas. Museu pra mim é coisa de passado. E eu quero é borboletar enquanto durar.
-- Mas e aí, então virou marajá?
-- Claro que não, mas agora virei cliente nota dez. O vigilante inclusive me convidou para ir jantar na casa dele, com direito a uma branquinha de alambique. Quer dizer, o dinheiro com certeza pode não trazer felicidade, mas faz algumas pessoas passarem a ver você e te darem atenção.
-- É mesmo, como arrastar o cu na brita!
-- Mas deixa pra lá. Seu José, desce mais umas duas Brahmas que hoje o milionário da milhar está com tudo pra pagar! E uma porção da boa antes de passar a garoa. Mal sei assinar, mas me deram um tal de talão de cheques  que não precisa sequer de checagem! E depois nós é que somos a tal de malandragem...
Sorrindo, o gajo do Alentejo e dono da birosca levou logo um engradado com direito a filé de gato temperado e bem passado no alho.
 
(Ao som de Moreira da Silva, ou Kid Morengueira)

domingo, 24 de agosto de 2025

Diana Krall canta o Natal *

Por Edmilson Siqueira


Claro que o Natal ainda está longe, mas boa música, mesmo que os temas sejam natalinos, não tem tempo certo para ouvir.  
No Brasil não chega a ser uma tradição, mesmo porque há poucos (e boas, por sinal) músicas que versam sobre uma data específica. Duas se destacam por aqui, embora pudesse haver muito mais músicas sobre eles: são as músicas de Natal e das festa juninas. Se houvesse mais, talvez tivéssemos mais cantores se entusiasmado e gravado discos específicos com esses temas. 
Já nos Estados Unidos é uma tradição. Quase todos grandes intérpretes fazem, no meio ou no fim da carreira, um disco de Natal. De Sinatra a Bruce Springsteen, muitos não deixaram a tradição passar em branco. 
E um dos discos mais belos só com temas natalinos é da grande pianista e cantora  Diana Krall. Seu disco comemorativo tem o título tradicional, que muitos artistas usaram: "Christmas Songs". 
Lançado em 2005, o disco marca a primeira incursão de Diana Krall em um álbum inteiramente dedicado ao repertório natalino, pois ela já havia incluído canções de Natal em projetos anteriores, mas nunca havia se debruçado sobre um conjunto completo de standards festivos. Aqui, ela abraça o espírito natalino com a mesma atenção ao detalhe, sensibilidade e swing que caracterizam toda a sua discografia. 
E pra deixar a coisa melhor ainda, o álbum conta com o suporte da The Clayton/Hamilton Jazz Orchestra, um dos mais respeitados grupos de big band da cena contemporânea. A presença dessa formação confere ao disco um ar clássico, remetendo à tradição dos registros natalinos de cantores como Frank Sinatra, Ella Fitzgerald e Nat King Cole. Ao mesmo tempo, o trabalho mantém a assinatura pessoal de Krall, com arranjos refinados e interpretações que equilibram calor, sofisticação e um toque de intimidade. 
O repertório é composto por 12 faixas, todas retiradas do cancioneiro natalino norte-americano, com direito a momentos de puro swing, baladas românticas e passagens que evocam o espírito caloroso das festas. 
A produção do disco é assinada por Tommy LiPuma, colaborador frequente de Krall, que mantém o equilíbrio perfeito entre a grandiosidade do big band e a clareza da voz. A qualidade sonora é impecável, captando tanto o calor dos metais quanto as nuances mais sutis do piano e da interpretação vocal. Não há excessos: cada instrumento ocupa seu espaço, e a mixagem favorece a fluidez e a coesão do conjunto. 
Um elemento que torna Christmas Songs especial é a forma como ele une a tradição e a personalidade artística. Ao mesmo tempo em que respeita as versões consagradas das canções, Krall imprime sua marca: um fraseado levemente atrasado em relação à batida, a escolha de tempos mais relaxados e a sutileza interpretativa que a diferencia. Não é apenas um disco para embalar ceias e reuniões familiares; é também um trabalho de jazz sólido, que, com certeza, pode ser apreciado em qualquer época do ano. 
E essa união da atmosfera natalina com a qualidade musical de alto nível motivou muitas críticas positivas ao disco que, como era de se esperar, foi muito bem sucedido comercialmente, alcançando destaque nas paradas de jazz e vendendo bem durante vários anos consecutivos nas festas de fim de ano.  
"Jingle Bells" (James Pierpont), que abre o disco, ganha uma interpretação vibrante e cheia de swing. O arranjo de Mandel traz sopros bem definidos, um ritmo contagiante e a voz de Krall brincando com o tempo.  
"Let It Snow" (Jule Styne e Sammy Cahn), a segunda faixa, mantém a energia e o clima de festa. Diana Krall parece se divertir, usando pequenas pausas e variações rítmicas para dar frescor a um clássico tantas vezes regravado. 
"The Christmas Song" (Meo Tormé e Robert Wells) é o momento mais aconchegante do álbum. A interpretação é intimista, quase como um sussurro, lembrando as gravações de Nat King Cole (a quem ela já homenageou num disco sensacional), mas com um toque pessoal: um fraseado levemente atrasado e acordes no piano que aquecem a música. 
Na quarta faixa, "Winter Wonderland" (Felix Bernard e Richard B. Smith) Diana Krall acelera o passo, explorando o swing do big band. Os sopros brilham mais e há um diálogo divertido entre a voz e a seção rítmica. É uma faixa que mostra sua habilidade de se integrar à orquestra sem perder protagonismo. 
"I’ll Be Home for Christmas" (Kim Gannon, Walter Kent e Buck Ram) a quinta faixa, marca uma das interpretações mais emotivas do disco. O andamento lento e os arranjos minimalistas valorizam a melodia e a letra, evocando a saudade e o aconchego das festas passadas em família. 
"Christmas Time Is Here" (Vince Guarakdi e Lee Mendelson), a sexta faixa, é a canção imortalizada pelo especial de TV "A Charlie Brown Christmas" e aqui ganha um tratamento jazzístico refinado. Krall mantém o ar melancólico da melodia, mas acrescenta acordes ricos no piano, dando um sabor único à despedida. 



A faixa número sete, "Santa Claus Is Coming to Town" (J. Fred Coots e Haven Gillespie) é um dos pontos altos em termos de energia. A bateria de Jeff Hamilton dá o impulso certo, enquanto os metais acentuam cada frase. Krall canta com malícia e humor, transformando a canção em um número de jazz cheio de personalidade. 
A seguir temos "Have Yourself a Merry Little Christmas" (Ralph Blane e Hugh Martin). É uma das interpretações mais tocantes do álbum. O fraseado é introspectivo, e o arranjo, sutil, deixando cada palavra respirar.  
A nona faixa é preenchida por uma música digamos, obrigatória em álbuns natalinos. Trata-se da clássica "White Christmas" (Irving Berlin) que  recebeu uma leitura límpida, com atenção ao texto e melodia. Krall opta por um clima de respeito, com timbres de sopros reminiscentes das big bands dos anos 40. 
"What Are You Doing New Year’s Eve?" (Frank Loesser), um tema que se refere à virada do ano e é celebrada em tom romântico e sonhador. Diana Krall mantém o ouvinte próximo, quase em confidência, enquanto o piano e a orquestra se entrelaçam em harmonia perfeita. 
"Sleigh Ride" (Leroy Anderson e Mitchel Parish) é uma música divertida e ritmada, evocando  imagens cinematográficas de passeios na neve. O arranjo permite que o piano de Krall apareça mais, com frases rápidas que lembram o ragtime. 
O disco se encerra com "Count Your Blessings Instead of Sheep" (Irving Berlin), que é uma balada delicada, que foge do óbvio repertório natalino e que Krall interpreta com sensibilidade, sustentada por arranjo suave e espaçado. 
Se algum fã de jazz torce o nariz quando ouve falar de disco com canções natalinas, esse álbum desmistifica esse comportamento. Trata-se de um grande disco, com produção impecável, repertório selecionado e que nada fica devendo a outros grandes discos de jazz.  
O CD está à venda nos bons sites do ramos e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=QcGW4aQNA9k&list=PL2bmVPQajM7bWYRz5a6NHq1ZxJbpn7_ij . 

*A pesquisa para este artigo teve o auxílio da IA do ChatGPT.

sábado, 23 de agosto de 2025

Dando o que tiver de sê-lo ou dá-lo

  Por Ronaldo Faria


-- Dar-te-á?
-- Dar-te-ei.
-- Deveras assim será?
-- Com a certeza do meu sim.
Ensandecidos, enlouquecidos pelo novo porvir, Benjamin e Consuelo trocam beijos e carícias sem fim. Encontraram-se há pouco mais de três dias, mas já trocavam juras e picardias. Nus, com suas peles a pelejarem descobertas em cada centímetro do quadrado corporal recém conquistado, emitiam palavras nas lavras que se espelhavam pelo quarto. No espelho de parede, quieto no seu canto, o encanto de anuviamento melancólico. Por sorte Consuelo não estava com cólicas. Eólicas, as emoções de ambos se espalham e se esvanecem nas preces de quem conhece a solidão.
-- Faremos tudo?
-- Como turbilhão?
-- Não, apenas como amantes.
-- Doravante, sim.
Suados, amassados feito lençol de cetim, cansados de tanto ir e voltar, descer e subir, penetrar e sair, Benjamin e Consuelo apenas se olham com juras de amor. Nas cortinas que descortinam a janela esquecida na praça da cidade que se desmancha em quirelas, o reflexo do sexo que se faz magia e procela. Escancarado no telhado, tendo de fundo um fado enfastiado, o resto de sol espera bater o cartão para o luar que deve ter se perdido no trânsito da constelação. No meio de tudo, taciturno, existe um imenso coração em solidão. Na amplitude de toda a atitude resta a tardia e decrépita ilusão.
 
(Ao som da Casa Ramil)

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Fogueira a arder

Por Ronaldo Faria

 

O chamego do casal no calor das chamas da fogueira intermedia algo que transpira amor e paixão. Traz novas lágrimas aos olhos translúcidos e aflitos que se entregam ao tempo frio. Atemporais, déspotas do mundo que os rodeia e os une nas pernas e braços como fossem animais, homem e mulher dão os braços na dança que serpenteia a saudade. Ao tempo que se esvai e vai sabe-se lá para que lugar, as labaredas ardem etéreas a cobrir a terra orvalhada do chão. Na dança a levantar pó e poeira que vagueiam sem eira e bem beira, um copo pinga a gota quente da mais leviana aguardente. No cérebro que espirra seu torpor gripal, falácias doidivanas e vãs tentam se achegar. Tiritante no vento que se refaz feminino na saia rendada da prenda, o casal viaja mil caminhos na metáfora de ser feliz. Bravo com tanto barulho, o pássaro aquietado no galho seco caga na cabeça do padre contrito a fingir que sabe rezar.

(Ao som de Vitor Ramil)

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Carinho de dedo (como diz o Pedro Salomão)

 Por Ronaldo Faria


 
Eles acordam sempre na madrugada para se amarem e se amarrarem. Parecem mares nas marés que se jogam nas pedras de um cais qualquer e brincam de rolar conchas côncavas ou convexas à areia de minúsculas pedras que piscam na lua ou no sol.
Eles despertam doidivanas em chamas requentadas que não há bombeiro que apague e se atiram aos tiros da pólvora seca que sombreia a cotovia a gorjear no sarau. Sabem que pouco têm além de algum vintém, mas não ligam para nada além de si.
Eles apenas voam sem ter penas. Vagueiam nas dunas que as turmas das loucuras benfazejas constroem com seus próprios pés e voltam antes das portas das camas desforradas pelo amor se fecharem aos sonhos bisonhos que estão sempre sob o nariz.
Eles sonham sonhos tresloucados e tragados de dias repetitivos e restritivos à felicidade, mas não desistem de andar. Sobreviventes e viventes sabem nadar até o porvir. E da boleia de onde se vê a terra prometida apenas gritam que há bem-querer.
Eles transitam entre a loucura e a picardia. Valsam em salões inexistentes, são seres urgentes e prementes de si mesmos. Oram aos loucos e carentes de cafuné, apesar de não terem fé. Mas riem nas lamúrias urdidas que o tempo entrega e sempre traz.
Eles, malucos feito mamelucos que nem sabem o que são, transitam voláteis e frágeis pelos impropérios que o mundo dá. Como um só, solitários e donos de um palanque em que pregam a picardia de gostar, brincam de casal efêmero e contumaz.
Eles, que tanto caminharam em terras de sol e solstícios de muitos verões, se tocam e se trocam nos cantos da cama que o trocar de corpos traz. Sabem que nunca será a hora de parar. Da maternidade à sepultura muita sutura de coração far-se-á.
Eles, por fim, na performance que nem os mais profanos e performáticos artistas de um circo sem nome podem fazer ou criar, apenas querem ser. E assim, na imensidão etérea que a Terra dá e traz, ficam à espera de um dia as vidas, feito as cores de um camaleão, juntar.

domingo, 17 de agosto de 2025

Uma coletânea de Chet Baker*

Por Edmilson Siqueira


Coletâneas com um dos maiore trumpetistas de todos os tempos não são raridade. Ele gravou muita coisa e copilar seus grandes momentos, embora seja um trabalho difícil (quase tudo é muito bom), foi - e continua sendo - obra das várias gravadoras pelas quais ele passou.
Chet Baker, hoje um cult mais que admirado, não teve a vida fácil que o talento e a beleza da juventude podem sugerir. Viciado em drogas, praticamente moldou sua carreira em torno delas, talvez abreviando uma vida (ele morreu aos  59 anos de forma misteriosa) que ainad tinha muito para dar.
A coletânea em questão é "White Blues" e tem uma caractarística que a diferencia das outras. Lançada em 1997 pela gravadora Camden (selo BMG) como parte da série Camden Jazz Masters, ela reúne gravações instrumentais de destaque de Chet Baker, extraídas de duas fases distintas de sua carreira: as sessões italianas da RCA Bluebird, em 1962, e gravações para a Timeless Records, realizadas em 1983 e 1986 na Holanda. 
O melhor vem agora: são onze faixas clássicas do jazz, abrangendo desde standards consagrados até composições originais contemporâneas, com duração aproximada de 72 minutos. 
Como se trata de uma compilação de momentos distintos, a variedade de temas corre solta.
A primeira faixa traz "White Blues" (Michel Graillier) composição que dá título à coletânea, com cerca de 5 minutos de duração.  
A seguir vem o clássico "Round Midnight" (Thelonious Monk e Williams) – um dos mais profundos standards do jazz, onde Chet solta sua imaginação durante mais de 10 minutospara deleite de todos nós. 
O disco segue com criteriosa seleção em termos de qualidade.
A terceira faixa é "Blues in the Closet" (Pettiford), onde o swing de Chet, coisa rara em suas gravações, sobressai, com ótimo acompanhamento de piano, bateria e contrabaixo. 
"Swift Shifting" (Danko) é a quarta faixa, um pouco mais contida que a anterior, mas sempre agradável aos ouvidos.
Outro clássico não só do jazz, mas da própria música norteamericana, vem a seguir: "Somewhere Over the Rainbow (Arlen / Harburg). Chet passeia pelas longas notas da melodia. Curiosamente, com apenas 3 minutos e 28 segundos, é a menor faixa do disco. 
"Caravelle" (Jon Burr o baixista da faixa), sexta faixa, já retorna ao jazz tradicional do quarterto de trompete, piano, baixo e bateria. 


A sétima faixa é outro clássico: "Dolphin Dance" (Herbie Hancock), uma das musicas do álbum do autor que provocou o reconhecimento dele como um grande compositor e pianista de jazz.
O disco se completa com as seguintes faixas: 
"Ellen and David" (Charlie Haden); "Star Eyes" (Raye / DePaul); "Well You Needn’t" (Monk) e 'These Foolish Things" (Maschwitz / Strachey). 
 Vale acrescentar que as gravações trazem músicos distintos conforme a origem das sessões. As sessões de 1962, da RCA, em Roma, tiveram Amadeo Thommasi (piano), Benoit Quersin (contrabaixo), "Daniel Humair" (bateria), René Thomas (guitarra) e Bobby Jaspar (sax tenor e flauta)
Já as sessões de 1983 e 1986, no Studio 44 na Holanda) tiveram Michael Graillier e Harold Danko piano), Riccardo Del Fra e John Burr (contrabaixo) e Ben Riley (bateria)
Para alguns críticos, essa coletânea serve como uma ponte entre momentos distintos de sua carreira: a década de 1960, marcada por um jazz mais introspectivo e sutil, e os anos 1980, período de renascimento criativo na Europa. Já para fãs e estudiosos, "White Blues" é um atestado da versatilidade de Baker — capaz de transitar entre introspecção e fluidez — e sua capacidade de manter a integridade musical mesmo em fases diferentes da vida.
Enfim, para ouvintes que buscam melodia, sensibilidade e história, esse disco é um ótimo convite.
O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser pouvido na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=Mcr1AtIhEgA&list=PLWvoWtBMKQZKgST69mozCnr4khF_NfMBw

*A pesquisa para este artigo fpoi feita com o auxílio da IA do ChatGPT.

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Papeando no papo

Por Ronaldo Faria

-- O copo está esvaziando cedo demais...
-- É essa secura do tempo. Não tem jeito.
-- Mas, a despeito disso, vale ao menos estar aqui.
-- Com certeza. Eu disse que, passado o drama, iríamos fazer a festa.
Eles eram um casal de mais de 40 anos de encontro casual, desses que surge de repente feito rompante ligeiro debaixo de qualquer escada. Juntos e separados num quadrilátero que imita ser uma esquina da Visconde de Pirajá, sorvem a vida estapafúrdia e etérea que se esparrama numa rama de papéis amarelados pelo tempo. E sorriem da vida, das tramas implícitas, das diuturnas leviandades a que se entregaram e com as quais dragaram horas e torras de cafés. Aos seus pés o destino desatinou de correr das ampulhetas que pensaram ter e se fez num tanto faz. No universo de qualquer verso, um brincar de se dar.
-- Por favor, mais dois.
-- E de bom, o que aconteceu?
-- Sei lá. Talvez saber que o tempo corre rápido mas deixa rejuntar.
Ao derredor, sem dor, um mundaréu de gente passa e perpassa a cena. Num galho a pomba se prepara para dormir. As crianças, porém, ainda brincam no jardim. Carros estacionam suas luzes e freiam nos meios de um fio pífio que há entre a calçada e a vida. No céu há uma lua rotunda e redonda que se espalha para o mundo abaixo espelhar de prata e luar. O primeiro bêbado deixa o lugar. Logo outro chegará. Na androginia que é a noite que se avizinha, corações acordam no acorde de apenas querer ser feliz. E almas despertam perto do cão que urina no poste, presto a buscar um pedaço de laje para dormir.
-- Tive saudade, sabe.
-- Muita?
-- Não. Imensa. Sem palavra na antropofagia.
Aos poucos, roucos, os loucos da madrugada vão se juntando num rumo débil e infértil que a madrugada antecipa no destino que dissipa o que tiver que se explicar. Na mesa, frente a frente nos corpos que se misturam e riem feito loucos aos trôpegos das outras vidas que cercam o limite limítrofe, um beijo rompe os dentes e une línguas e olhares. Alhures, um semideus desnudo que foi acordado pela emoção que se derrama dos dois senta no sofá do além para abençoar a junção que unge o casal e surge a volatizar. Olhos vermelhos e insones de quem cuida do futuro das paixões, aceita o drama de acalentar aqueles que ainda acreditam que um gemido vale mais do que a gorjeta que escorre na sarjeta do limiar. No cruzamento mais próximo, na esquina que se faz, um carro freia para a senhora cega passar.

(Ao som de Pedro Salomão)

Na viagem

Por Ronaldo Faria Viajante de suas loucuras diuturnas, quase equidistante entre a vida e a morte, Januário persegue qualquer polis que vire ...