O disco foi lançado em 1981 e foi gravado ao vivo no Festival de Jazz de Cannes. E o som é perfeito. Ou seja, há 44 anos as técnicas de gravação ao vivo já eram das melhores. Estou falando do disco "Gary Burton - Live in Cannes". Trata-se de registro que revela não apenas a genialidade do vibrafonista norte-americano, mas também a atmosfera vibrante da cena de festivais de jazz europeus no início da década de 1980. Gravado na Riviera Francesa, o álbum captura a energia comum de uma apresentação que combina improvisação, lirismo e a linguagem moderna do jazz que Burton ajudou a moldar ao longo de sua carreira.
Claro que não estamos falando de novatos do jazz, afinal, o festival de Cannes é um dos maiores do mundo, fazendo jus ao festival de cinema que ali perpetua fantásticas produções cinematográficas.
Gary Burton, hoje com 83 anos, era, àquela altura, um dos mais respeitados vibrafonistas da história do jazz. Vibrafone é aquele instrumento tocado com umas baquetas, percussivo, mas harmônico e melódico. Seu som lembra gotas de chuva saindo na água, como definiu a Zezé, minha companheira, um dia no carro ao ouvir esse mesmo disco, num de seus solos perfeitos, por sinal, uma música de Jobim.
Burton, diz sua biografia, desde os anos 1960, havia introduzido novas técnicas de execução no instrumento — como o uso inovador de quatro baquetas simultâneas, que ampliou as possibilidades harmônicas do vibrafone — além de ser um dos pioneiros do jazz fusion, fundindo elementos do jazz com o rock, a música brasileira e a música erudita. Trabalhou ao lado de nomes como Stan Getz, Chick Corea, Pat Metheny, Carla Bley e muitos outros, sempre em busca de uma sonoridade que dialogasse com diferentes linguagens.
A época em que "Live in Cannes" foi gravado marca uma fase de transição importante: Burton já consolidara sua reputação como líder de grupos e também como educador, sendo uma das figuras centrais do Berklee College of Music, em Boston. O festival francês foi palco ideal para apresentar seu repertório e sua versatilidade, diante de um público europeu que sempre demonstrou grande apreço pelo jazz norte-americano.
O disco se destaca por sua espontaneidade. Ao contrário das gravações de estúdio, nas quais tudo pode ser ajustado e planejado, "Live in Cannes" mostra o virtuosismo cru de Burton e sua interação não só com os excelentes músicos que o acompanham em ci nco das sete faixas, como com a plateia. A cada faixa, percebe-se a fluidez da improvisação, a liberdade rítmica e a precisão técnica que o vibrafonista e o grupo possuíam.
Nas faixas dois e quatro, o vibrafone de Gary reina sozinho. Nas faixas três, seis e oito, ele é acompanhado por Ahmad Jahmal no piano, Sabu Adeyola no contrabaixo e Payton Crossley na bateria. E nas faixas cinco e sete, por René Urtager no piano, Pierre Michelot no contrabaixo e Daniel Humair na bateria.
O álbum passeia por um repertório variado. O que impressiona é a forma como Burton mantém um equilíbrio entre a clareza melódica e a complexidade harmônica, características que sempre marcaram sua música.
Além disso, percebe-se que Burton já havia se tornado um elo entre diferentes gerações do jazz. Sua abordagem moderna dialogava tanto com músicos veteranos quanto com jovens talentos — alguns deles, seus próprios alunos em Berklee. Essa capacidade de unir tradição e inovação é talvez o legado mais importante de sua carreira.
A faixa primeira do disco não é uma música. Trata-se da introdução do grupo com bom humor por Philippe Adler, talvez o mestre de cerimônias do festival.
"My Foolish Heart" (Washington Young) abre realmente o disco. Uma balada clássica, carregada de emoção, onde Burton utiliza o vibrafone como extensão da voz humana, explorando a melodia com sensibilidade e riqueza harmônica, enquanto o trio rítmico acompanha com sutileza.
Na terceira faixa "One" (Sigidi Abdula, uma composição que se expande com liberdade. A improvisação se torna densa e envolvente, com Burton explorando ondas sonoras mais amplas. O piano, baixo e bateria respondem com diálogos dinâmicos, criando um momento de pura improvisação.
A quarta faixa é um solo magnífico de "No More Blues", nosso famoso "Chega de Saudade" do maestro soberano Tom Jobim. Burton caracteriza o tema com leveza, swing e invenção harmônica, mostrando toda sua habilidade na profusão de notas que envolve a melodia de Jobim.
"The Night Has a 1000 Eyes" (Berneir e Brainin), a segunda faixa mais longa do disco, vem a seguir e é um standard animado, apresentando jogo rítmico e aventura melódica. A melodia ganha contornos expressivos no vibrafone, com sequências rápidas e respostas do piano e bateria que criam uma pulsação emocionante.
"Autumn Leaves" (Kosma e Prevert) [e a sexta faixa e, claro, se trata de outro clássico do mundo jazzístico, frequentadora assídua de apresentações ao vivo. Aqui, Burton alterna suavidade melódica com intensos momentos de improvisação, equilibrando lirismo com profundidade, criando uma narrativa sonora envolvente.
"African Flower" (Kennedy e Ellington), a sétima faixa, inspira um clima mais introspectivo. Burton trabalha com sonoridades mais longas e etéreas, destacando o aspecto espiritual do tema. A banda acompanha com apoio discreto e sensível, respeitando o espaço sonoro.
Por fim "Bogotá" (Evans) fecha o disco e é a faixa mais longa da apresentação, com mais de 10 minutos, onde o virtuosismo de Burton aparece em toda sua amplitude: viradas improvisadas, exploração de texturas e interações pulsantes com a banda, construindo um clímax envolvente que fecha o álbum em grande estilo, para o aplauso da plateia presente.
O CD está à venda no Mercado Livre e deve estar em outros bons sites do ramo. No YouTube não encontrei o disco inteiro, mas há várias músicas dele gravadas aleatoriamente.