sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Escarafunchando o som de Sandra de Sá

Por Ronaldo Faria


Caramanchões da África que beira o outro lado do Atlântico afônico em receber atônito o tônico de ervas e sabores que se esparramam pela terra que se espraia em mil jardins de ervas e províncias etéreas dessas que surgem para ficar em grilhões rompidos e jogados das galés sem fé. Em cada nova cria, a sina da vida: nascer pra crescer e gerar novas vidas.
-- Boa noite, Adão...
-- Boa noite, Jeremias.
-- E aí, como foi o dia?
-- De serena e sonora sangria. Peguei o trem, transitei entre ruas e esquinas, vi minha sina em cada olhar racista e simplista de ver a vida na cor da epiderme.
-- Não liga, a vida é uma série de verme...
-- Sei disso. Mas, se sobrevivi até hoje, vou até o fim. A luta é o nosso esquema.
Na revolta que a volta em meia volta dá e deixa, o som da música preta e os atabaques que baqueiam e findam os muitos baques que atropelam peles na junção do mundo. Lá no fundo, onde o coração bate igual e próspero ou letal, tudo é igual.
-- Como vão as crias?
-- Meus filhos vão bem. Estão vivos e plenos. Há muito deixaram de ser nenéns. São guerreiros e vencedores. De sementes, viraram flores plenas e belas.
-- E com certeza irão criar raízes e gerar gerações de homens e mulheres que rasgam as intempéries e chegam dos oceanos do mundo para atingir os continentes finais. Nunca letais, porque algum dia a sanidade vencerá. E não haverá partilhas, matilhas de cães raivosos a morder a própria pata e vociferar o ódio enlouquecido. Esse será esquecido e remetido ao obscurantismo da humanidade. E ninguém sentirá saudade. A maldade ao lixo enfim irá ser entregue e enterrada. E toda a bruxa irá virar fada, sem cor, sem raça, sem parar no meio da calçada.
-- Enfim, vamos curtir a vida. Chega de ter falésias que se entregam ao mar.
-- Com certeza. Cada minuto é mais uma série de segundos que devemos tornar num palco de trocadilhos, centelhas e estribilhos. Todos como a canção da liberdade sem fim.
Em volta, a noite respira em cada pulmão o mesmo cheiro que logo mais fará madrugada despertar.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Renato Braz e Roberto Leão: dois sotaques na canção brasileira *

Por Edmilson Siqueira



O disco "Mar Aberto", parceria entre o cantor Renato Braz e o violonista Roberto Leão, é um desses trabalhos que surgem como um sopro de frescor e sensibilidade dentro da música brasileira contemporânea. Lançado no início dos anos 2000, o álbum sintetiza duas trajetórias que se cruzam em torno de um repertório sofisticado, no qual tradição e modernidade convivem tranquilamente.  
Ao unir a voz límpida de Braz ao toque delicado e preciso de Leão, o disco conquista pelo equilíbrio entre simplicidade e refinamento. O resultado é uma experiência musical marcante. 
Renato Braz já é reconhecido como um dos grandes intérpretes da nova geração da música brasileira. Dono de um timbre suave, de uma emissão clara e de uma técnica a serviço da emoção, ele se destacou pela habilidade de construir leituras de clássicos e contemporâneos sem recorrer a exageros ou firulas. Sua voz passeia entre o popular e o erudito, aproximando-se do canto camerístico, mas sem perder o calor da tradição da canção.  
Roberto Leão, por sua vez, é cantor português de trajetória sólida que se entrega às canções com a mesma seriedade de Renato, formando uma parceria que, diferente nos sotaques, se encontram na emoção da palavra cantada.  
A música "Mar Aberto" (Breno Ruiz e Cristina Saraiva), que dá título ao disco, traduz bem o espírito do disco abrindo horizontes sonoros que serão explorados por ambos.  
O repertório escolhido passeia por diferentes tempos e estilos da canção brasileira. Estão presentes compositores de diferentes gerações, evidenciando a preocupação em criar uma ponte entre o passado e o presente. Da riqueza melódica de Dorival Caymmi à modernidade de Edu Lobo e Dori Caymmi, passando por parceiros mais recentes, o disco reflete a pluralidade da música brasileira que, sem parecer contraditório, não soa dispersa: é justamente a unidade estética entre as vozes que confere coerência ao conjunto. 
Um detalhe interessante, que aprofunda a proximidade entre artista e ouvinte é que Renato Braz e Roberto Leão optaram por reduzir a formação ao essencial: voz, violão e piano de modo que ficam aparentes a força e a beleza musical. Cada acorde, cada frase vocal, cada silêncio ganha relevo. A ausência de excessos torna-se uma virtude, permitindo que a canção se apresente em estado quase puro. 
Outro aspecto que merece destaque é a dimensão poética do repertório. As letras escolhidas falam de amor, de mar, de tempo, de memória. São temas caros à canção brasileira, mas tratados com a delicadeza que marca a obra de Braz e Leão. O ouvinte é convidado a se deixar levar por imagens que evocam a natureza, o cotidiano, a saudade e o afeto. O mar, em particular, aparece não apenas no título, mas como metáfora recorrente ao longo do disco, associando-se à ideia de travessia, de vastidão e de profundidade. 


A economia de recursos confere ao álbum uma atmosfera quase camerística, que o diferencia das grandes produções e o aproxima do universo da música de câmara popular. Essa estética intimista encontra eco em trabalhos de artistas como Dori Caymmi, Mônica Salmaso e Guinga, todos herdeiros de uma linhagem que valoriza a sofisticação melódica e a delicadeza da interpretação. 
Outro aspecto que pode chamar a atenção do ouvinte mais atento, trata-se de um trabalho que exige tempo e silêncio para ser apreciado. E o ouvinte que se dispuser a embarcar nessa viagem sonora será recompensado com um repertório que se revela aos poucos, como camadas de significado que emergem a cada nova audição. 
É isso ái: em tempos de pressa e ruído, "Mar Aberto" se oferece como um convite ao recolhimento e à contemplação. Mais do que um disco, é uma experiência sensorial, um mar no qual vale a pena se lançar, sem medo do horizonte infinito. 
São as seguintes as nove faixas no disco: 
- Canção de Embalar (José Afonso) 
- Elogio (Mario Gil) 
- Milagres (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro) 
- Francisca Santos das Flores (Dorival Caymmi) 
- Saveiros (Dori Caymmi e Nelson Motta) 
= No Coração das Procelas (Dori Caymmi e Paulo Frederico) 
- Nevoeiro (Mario Gil e Breno Ruiz) 
- Marinheiro do Mar (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro) 
- Mar Aberto (Breno Ruiz e Cristina Saraiva) 
O CD pode ser adquirido nos bons sites do ramo. Não encontrei o disco inteiro no Youtube, mas há um show "Mar Aberto" com o elenco todo gravado em Portugal, com imagens em https://www.youtube.com/watch?v=P0m6I2t-VJA

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Testemunho rápido

 Por Ronaldo Faria


Um violão dedilha seu som nos dedos daquele que tenta tocar seus trastes tristes e tragicômicos. E joga sons ao vento e ao léu. Encontra ouvidos e seres que vivem a buscar seu porto torto no entorno dos oceanos. Diante de teclas que antes eram mecânicas e sonoras, o poeta profetiza sua sina urdida em câmera quase lenta, fosse a vida contada quadro a quadro. 

Saudemos nossos músicos invasores dos tempos que fazer ouvir se torna mais distante do que sonhar que é possível viver de arte. Façamo-los crer que o pranto estancou nas notas dedilhadas, tocadas, batidas, famélicas de tanto querer... 

https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/05/amaral-acreditem-internautas-do-planeta.html

https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/05/teco-seade-imagine-um-lugar-com-cerca.html

https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/05/filarmonica-de-violas-de-caipira-ou.html

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https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/05/jorge-ele-e-paulistano-de.html

https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/05/vento-viola-ao-vento-viola-01122016.html

https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/05/do-pandeiro-samba-e-coisa-que.html

https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/04/pela-musica-pra-pular-brasileira-ou.html[

https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/04/imagine-voce-ter-conhecido-o-fino-do.html

https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/04/comeco-escrever-esta-primeira.html

sábado, 20 de setembro de 2025

Sempre voltar a Itamar Assumpção

Por Ronaldo Faria


A noite, essa peça de açoite diário, vocifera que é dela que vem a orgia da poesia. E não está errada. A voar no calendário gregoriano e no tempo como fada, volatiliza o estigma que vem e volta gota a gota. Afoita, atônita em morrer de querer e chegar, é apenas solicitude a cada atitude tomada no nível do mar ou na altitude. Senão, é apenas ela: noite.

-- Parece que perdemos a guerra contra a vida. Fizemos todo o possível, em vão. Mas, afinal, no final de tudo, se você não sabe andar é certo que trupica.
-- Certamente essa é uma tese taciturna, mas real.
-- E aí, acha que tem salvação?
-- Só se formos rumo ao Japão.
A noite que se antecipa em píncaros à picardia tardia que desabrocha de cada flor que nasce na rocha, sabe que tem pouco tempo na Terra. Também é muita sacanagem com ela. Incrustrada nas tardes que crescem a cada estação e na madrugada que assola o mundo a fundo, minimiza o tempo restante. Mínima no vazio tardio que a imensa realidade nos dá, brinca de pular corda já sabendo que uma das pontes que gira o destino irá lhe sacanear. Menina dos olhos da eternidade, a noite é apenas um presente sem passado. O futuro? Que furo... Não haverá. Como diria o poeta negro e preto, a natureza está morta e a cama dorme vazia.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Casal sem ser

Por Ronaldo Faria


Eram um casal de comercial de margarina depois de uma angina, mesmo que esta vida estivesse vencida na gôndola do supermercado. O tempo, porém, prostrado no calendário, não os deixava se encontrar. Impávido em seu colosso, o destino sempre programava algo. Doença, netos, fetos, fratricídios, corpos separados e uma ou outra intempérie safada e escrita que nem conto de suspense. Se não vivessem no Brasil, certamente um vulcão jorraria chamas incandescentes sobre eles ou um terremoto os faria sucumbir diante de uma marquise qualquer. Como a cartomante a revelar que nada nunca mais os iria unir. “As cartas mostram dois enforcados na mesma árvore, mas ela foi replantada depois da morte do primeiro num lugar lúgubre e longe. As suas almas jamais se encontrarão”. No encontrão que se dá entre dois corpos em contramão, eles eram os personagens principais, como tais e quais.
Até poderiam ser protagonistas de presépio de Natal – Maria e José. Mas não eram. Eram somente José e Maria, nomes comuns na vida desigual. Dois destinos em desatino que se misturaram numa escada e se perderam noutra esquina. Personagens atávicos e dramáticos de uma peça de Nelson Rodrigues, enamorados de vinhos e fados, fugas e votos de sempre querer, só se esqueceram da própria estrada escrever. Talvez um barco perdido no oceano onde rio e mar se fazem irmãos e vãos que correm como areia pelas mãos. A fluírem feito sangue nas artérias, se perdem em dois corações imaturos e quase mortos de nada bombear. Ou seja, amargos doces de cocada que a baiana vende na barraca da vila desejada. Nalgum lugar, a gargalhar, o senhor das vidas desregradas e separadas toma mais um gole em homenagem à tristeza que a certeza de talvez na próxima encarnação algo virar poesia ou canção.
 
No mar que bate na areia tresloucada e vazia de ser apenas areia, o peixe recém-nascido brinca de achar que na terra firme ainda poderá viver...
 

(Ao som de Anna Setton)

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Entre crocodilos

Por Ronaldo Faria


-- Aí já é muita crocodilagem...
-- Será?
-- Claro que é. Se o cara é bom da boca, respeito. Se é meia boca, pau nele...
-- Mas isso não é a lógica da tal visão capitalista?
-- Com certeza.
-- Ou seja, é tudo um bando de filho da puta?
-- Certamente. Jairão, traz mais uma!
Fim de tarde. Carlos e Bernardo discutem as relações que existem pra lá do fim do mundo. E eles estavam apenas num subúrbio, que alguns chamam de periferia. Comunistas? Não. Apenas operários da vida, desses que pegam trem, ônibus apinhado de sardinhas na lata rodante, moradores de casa pequena, diminuta, abrupta no seu jogar entre uma rua sem terra e terra de ninguém. Dois a mais, sem muita estatística oficial para delimitar em que classe estariam. C, D, E ou algo assim? Falta um recenseador para lhes dar lugar digno nas planilhas oficiais.
-- E aí, saiu o aumento?
-- De trabalho?
-- Claro que não, caralho! De grana.
-- É óbvio que não. Você acha que o patrão é candidato a vereador ou benfeitor?
-- Sei lá. Não trampo lá.
-- Então eu te respondo: tudo na mesma. A merda continua igual.
Devagar uma ou outra lâmpada acende no derredor. Sem muita pressa ou dor. Na porta da casa rosa, que se mistura no verde das mangueiras cheias de frutos comidos pelos pássaros e meninos, Maria espera por Feliciano (outros personagens em cena). Esse, feliz da vida que logo voltará nos braços da amada dedicada e entregue aos delírios do juntar, vem no passo devagar. Quer ver cada olhar distante que Maria entrega ao vento silente que corre com sabor comida fervida para embriagar o mundo longe do mar.
-- E a Verinha? Ainda está com ela?
-- Melhor seria perguntar se ela ainda está comigo.
-- Como assim?
-- Tivemos um arranca-rabo feio, quase um entrevero. Nem sei se vale a pena voltar para casa.
-- Com certeza vale. Sempre vale.
-- Acho que vou ouvir o teu conselho, mas antes vai ter a saideira. Jairão, mais uma e a outra na faixa!
Devagar o bar vai enchendo de mais Carlos e Bernardos. Marias e Verinhas. Vai conquistando seu espaço de saudades tardias, reminiscências gerais, tristezas travestidas de bolhas que sobem no líquido amarelo e gelado que escorre no copo e desce gargantas que estão cansadas de tanto falar amém. Aos poucos, um ou outro negligencia o mundo torto que corre perto e pranteia de toques, beijos e abraços o regaço onde o toque faz tudo mudar. Mordaz, o tempo escreve nas suas linhas tortas e voláteis a sordidez entre a sanidade e a loucura. A tal linha tênue que tanto descreve e escreve o destino de cada um de nós. A sós, todos sabem que o agora é somente vida ilusória e rápida como o som de uma voz. No fim, só nos resta esperar.
-- Jairão, pendura a conta no cabide do Abreu!
 
(Em homenagem a este bar do Maranhão)

domingo, 14 de setembro de 2025

Gary Burton, um vibrafonista no jazz *

Por Edmilson Siqueira



O disco foi lançado em 1981 e foi gravado ao vivo no Festival de Jazz de Cannes. E o som é perfeito. Ou seja, há 44 anos as técnicas de gravação ao vivo já eram das melhores. Estou falando do disco "Gary Burton - Live in Cannes". Trata-se de registro que revela não apenas a genialidade do vibrafonista norte-americano, mas também a atmosfera vibrante da cena de festivais de jazz europeus no início da década de 1980. Gravado na Riviera Francesa, o álbum captura a energia comum de uma apresentação que combina improvisação, lirismo e a linguagem moderna do jazz que Burton ajudou a moldar ao longo de sua carreira. 
Claro que não estamos falando de novatos do jazz, afinal, o festival de Cannes é um dos maiores do mundo, fazendo jus ao festival de cinema que ali perpetua fantásticas produções cinematográficas.  
Gary Burton, hoje com 83 anos, era, àquela altura, um dos mais respeitados vibrafonistas da história do jazz.  Vibrafone é aquele instrumento tocado com umas baquetas, percussivo, mas harmônico e melódico. Seu som lembra gotas de chuva saindo na água, como definiu a Zezé, minha companheira, um dia no carro ao ouvir esse mesmo disco, num de seus solos perfeitos, por sinal, uma música de Jobim.  
Burton, diz sua biografia, desde os anos 1960, havia introduzido novas técnicas de execução no instrumento — como o uso inovador de quatro baquetas simultâneas, que ampliou as possibilidades harmônicas do vibrafone — além de ser um dos pioneiros do jazz fusion, fundindo elementos do jazz com o rock, a música brasileira e a música erudita. Trabalhou ao lado de nomes como Stan Getz, Chick Corea, Pat Metheny, Carla Bley e muitos outros, sempre em busca de uma sonoridade que dialogasse com diferentes linguagens. 
A época em que "Live in Cannes" foi gravado marca uma fase de transição importante: Burton já consolidara sua reputação como líder de grupos e também como educador, sendo uma das figuras centrais do Berklee College of Music, em Boston. O festival francês foi palco ideal para apresentar seu repertório e sua versatilidade, diante de um público europeu que sempre demonstrou grande apreço pelo jazz norte-americano. 
O disco se destaca por sua espontaneidade. Ao contrário das gravações de estúdio, nas quais tudo pode ser ajustado e planejado, "Live in Cannes" mostra o virtuosismo cru de Burton e sua interação não só com os excelentes músicos que o acompanham em ci nco das sete faixas, como com a plateia. A cada faixa, percebe-se a fluidez da improvisação, a liberdade rítmica e a precisão técnica que o vibrafonista e o grupo possuíam.  
Nas faixas dois e quatro, o vibrafone de Gary reina sozinho. Nas faixas três, seis e oito, ele é acompanhado por Ahmad Jahmal no piano, Sabu Adeyola no contrabaixo e Payton Crossley na bateria. E nas faixas cinco e sete, por René Urtager no piano, Pierre Michelot no contrabaixo e Daniel Humair na bateria. 
O álbum passeia por um repertório variado. O que impressiona é a forma como Burton mantém um equilíbrio entre a clareza melódica e a complexidade harmônica, características que sempre marcaram sua música. 
Além disso, percebe-se que Burton já havia se tornado um elo entre diferentes gerações do jazz. Sua abordagem moderna dialogava tanto com músicos veteranos quanto com jovens talentos — alguns deles, seus próprios alunos em Berklee. Essa capacidade de unir tradição e inovação é talvez o legado mais importante de sua carreira.  
A faixa primeira do disco não é uma música. Trata-se da introdução do grupo com bom humor por Philippe Adler, talvez o mestre de cerimônias do festival. 


  
"My Foolish Heart" (Washington Young) abre realmente o disco. Uma balada clássica, carregada de emoção, onde Burton utiliza o vibrafone como extensão da voz humana, explorando a melodia com sensibilidade e riqueza harmônica, enquanto o trio rítmico acompanha com sutileza. 
Na terceira faixa "One" (Sigidi Abdula, uma composição que se expande com liberdade. A improvisação se torna densa e envolvente, com Burton explorando ondas sonoras mais amplas. O piano, baixo e bateria respondem com diálogos dinâmicos, criando um momento de pura improvisação. 
A quarta faixa é um solo magnífico de "No More Blues", nosso famoso "Chega de Saudade" do maestro soberano Tom Jobim.  Burton caracteriza o tema com leveza, swing e invenção harmônica, mostrando toda sua habilidade na profusão de notas que envolve a melodia de Jobim.  
"The Night Has a 1000 Eyes" (Berneir e Brainin), a segunda faixa mais longa do disco, vem a seguir e é um standard animado, apresentando jogo rítmico e aventura melódica. A melodia ganha contornos expressivos no vibrafone, com sequências rápidas e respostas do piano e bateria que criam uma pulsação emocionante. 
"Autumn Leaves" (Kosma e Prevert) [e a sexta faixa e, claro, se trata de outro clássico do mundo jazzístico, frequentadora assídua de apresentações ao vivo. Aqui, Burton alterna suavidade melódica com intensos momentos de improvisação, equilibrando lirismo com profundidade, criando uma narrativa sonora envolvente. 
"African Flower" (Kennedy e Ellington), a sétima faixa, inspira um clima mais introspectivo. Burton trabalha com sonoridades mais longas e etéreas, destacando o aspecto espiritual do tema. A banda acompanha com apoio discreto e sensível, respeitando o espaço sonoro. 
Por fim "Bogotá" (Evans) fecha o disco e é a faixa mais longa da apresentação, com mais de 10 minutos, onde o virtuosismo de Burton aparece em toda sua amplitude: viradas improvisadas, exploração de texturas e interações pulsantes com a banda, construindo um clímax envolvente que fecha o álbum em grande estilo, para o aplauso da plateia presente.  
 O CD está à venda no Mercado Livre e deve estar em outros bons sites do ramo. No YouTube não encontrei o disco inteiro, mas há várias músicas dele gravadas aleatoriamente.  

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Auto-papo (e se a palavra não existir, foda-se)

 Por Ronaldo Faria



-- Boa noite, minha insana consciência...
-- Boa noite, minha lucidez maluca e translúcida.
-- E aí, vai tudo bem?
-- Estamos indo. E vindo.
-- Só em lembranças tronchas e antigas?
-- Com certeza. É o que me resta.
-- Mas por que só relembrar a saudade que dói?
-- Sei lá. Talvez porque haja pouco a lembrar.
-- Como assim? Apenas a dor faz algo surgir?
-- Saber-se-á ou saberemos lá...
-- Caralho, certamente na sua mente existirá felicidade a povoar!
-- Entendo a sua colocação. Por isso a busco no coração.
-- Engraçado: você me acha um baita cara de aconselhar e não me deixa te guiar.
-- É. Infelizmente a minha mente me boicota feito galhofa.
-- Pois então a deixe seguir seu rumo numa pororoca.
-- Quem dera. Mas nasci com ela e ali não há lugar para quimera.
-- Sério? Nem tem espaço para outra quimera?
-- Quem dera...
-- Que merda.
-- Com certeza. Sou um andarilho de caminho igual. Ungido de au-au.
-- Então a solução é mesmo se embriagar para criar, fugir e viver.
-- Talvez. Você conhece outro lugar para se refugiar?
-- Vou pesquisar e te digo logo mais.
-- Sabe que eu curto ter você como meu alter ego?
-- Obrigado. Eu tento dar o meu máximo, mas você não me escuta.
-- Seu filho da puta, se eu ainda estou vivo é graças a você!
-- Sério?
-- É claro e você sabe disso. Não fosse a sua lucidez já teria dado um sumiço.
-- Obrigado, de bom grado. Faço aquilo que me é possível.
-- Sei disso. E te ouço. Aliás, de verdade, só te ouço nessa vida.
-- Sério? Puta merda, ganhei o dia. Ou melhor, a vida!
-- Deixa de ser tonto e querer confetes! Você sabe o quanto é importante pra mim.
-- Sei, quer dizer, achei que sabia. Mas dito assim, desse jeito, me deixa lisonjeado.
-- Então, sinta-se. De coração é muito bom conversar com você. Me faz bem.
-- Legal saber. Eu faço o que posso. Afinal, somos malucos desde o berço.
-- Eu sei. Lembra quando lá pelo início dos Anos 60 vimos a parede se abrir?
-- Como não, claro. Mas como dormíamos no quarto dos pais, num berço, acho que era no fim dos Anos 50.
-- Bem provável. Nos faltou um celular para comprovar.
-- Muito nos faltou nesses anos todos.
-- Certamente. Somos trogloditas ou visigodos.
-- Mas vencemos juntos e conversando num tanto de contos e cânticos.
-- Não tenho dúvidas. Não fosse você, já estaria em camisa de força.
-- Muita calma nessa hora. Não chega a tanto.
-- Tá bom. Se você não quer elogios, paro por aqui...
-- Para não. Se você parar, paramos ambos.
-- Tudo bem, estou sem sono mesmo. Voltar às biritas me dá insônia e paz.
-- Ainda bem, assim vivemos mais um pouco neste pouco passar pela vida.
-- É verdade. O tempo voa e a gente acha que vê. E ele voa...
-- Concordo. E se vamos dormir para a tal de eternidade, vale a pena dormir?
-- Claro que não! É perda de tempo!
-- Sabe que estou começando a gostar de você!
-- É sério? Que legal, pois você é o meu sinal.
-- Quer dizer que nos amamos de paixão?
-- Sem dúvidas. Habitamos o mesmo corpo e convivemos no mesmo cérebro.
-- Mas como dividimos os mesmos lugares sendo tão diferentes?
-- Aí você terá de perguntar para quem nos fez ser o que somos.
-- Você viu que mudou o som?
-- Vi. Saiu Caetano Veloso e Ivan Sacerdote e entrou a playlist nossa.
-- Nossa ou minha?
-- Sei lá. Somos dois e um só.
-- Bom saber disso. E aí, vamos viajar para Caraíva ou não?
-- Te digo quando a justiça trabalhista trabalhar.
-- Então eu acho que este ano não estaremos nas terras da Bahia a cheirar mar e ar.
-- Talvez sim, talvez não. Mas tudo na vida não é um se perguntar sem fim?
-- Com certeza! Na mesma presteza que rola agora um Secos e Molhados...
-- E aí, a saideira?
-- Pode ser. Apesar de não saber em quantas estamos.
-- E isso conta?
-- Amanhã você já saberá a resposta.
-- É foda, mas acho que já sei. Mas o que é uma cefaleia perto de um criar?
-- Nada. Nunca foi. Aliás, que se foda o amanhã. Pois ele pode vir ou não chegar.
-- Concordamos enfim?
-- Sempre concordamos. Você é que deixou de saber. Virou o certo a gerenciar o doidão da hora.
-- Não faça isso! Para de um ser ermitão e fugitivo do mundo. Não fosse eu a sua meretriz nunca teria um cafetão.
-- Tudo bem. Desculpe. Amigos?
-- Claro. Mesmo porque não tenho como sair de você...
-- Eu sei disso. Desde que fui parido.
-- E aí, vamos caminhar amanhã?
-- Hoje, você quer dizer...
-- Hoje. Agora que eu vi o relógio.
-- Iremos. Vou te levar para andar. Mas promete não viajar na maionese?
-- Aí você me fode. Sou ou não o teu ser “certinho”?
-- Cacete, então continue você e eu continuo eu.
-- Combinado. Seguiremos assim: 50% cada um.
-- Feito. Mas quero 51% na jogada e fim de papo.
-- Pode ser. Mas você lembra das amantes que largamos?
-- Quer saber: acordo desfeito. Vá para a puta que nos pariu! E o genitor também...
-- Como assim?
-- Se é para rever nossas vidas, sejamos bandoleiros.
-- Tudo bem. Melhor então dormirmos. Mesmo sabendo que pesadelos mil nos chegarão.
-- Você me protege?
-- Tentarei.
-- Então nos entreguemos a Morfeu. Ele talvez nos dê um pouco de paz e remissão.
-- Boa noite e bom dia!
-- Pra nós em nós...

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Peguemos

Por Ronaldo Faria


Pega a viola, cantador de mil cantares, e segue a trilha que lhe foi traçada por qualquer santo violeiro.  Com todo o perdão de São Gonçalo.

Pega a sílaba e forma versos e trovas por toda a página branca, poeta catatônico de crer que ainda é possível criar vidas de um sonhador.

Pega as lágrimas derramadas do coração pouco e pede perdão, amante de histórias histriônicas e cheias de rios a vazar água pra fora.

Pega suas preces largadas ao léu por um céu qualquer, ser inebriado e embriagado de fé, e vai renascer no sertão da secura que é verdade.

Pega as notas que invadem a noite escura sem fim e vai se embriagar de poesia finda, senhorio de si mesmo na pensão que a vida ainda dá.

Pega o astrolábio e a bússola que mostram as rotas que a retidão finge dar e navega nas trevas e trovas, ancião de caminhos sem início e fim.

Pega as cantigas antigas que se fazem novas na notívaga chegança, criança renascida de cada loucura, e as faz renovadas e lânguidas a brotar.

Pega no ar o cheiro de arruda que se esvai no incenso que tenta ter senso qualquer na saudade da mulher desvairada na saraivada da vida.

Pega o amor que se perdeu e redescobre nos cobres que pagamos a cada dia para sobrevivermos no ermo à certeza na felicidade utópica.

Pega os sermões da missa inacabada e coloca na boca do padre a hóstia que mata a fome daquele que crê na curva da estrada para se salvar.

Pega o rebanho que caminha para a morte e se arrepende, muda de rota e o leva aos pastos onde nasce o mais florido e carregado pé de amora.

Pega, por fim, o fim de tudo. Faça que ele se refaça em trovas e trovões numa noite de luar rotundo. E se puder ainda pegar algo, jogue tudo fora.

(Com Renato Teixeira, Pena Branca e Xavantinho)

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Gil e Milton, juntos, misturados e geniais *

Por Edmilson Siqueira



Apesar de lançado há um quarto de século, o álbum Gil e Milton, continua atual e representa um daqueles momentos raros em que dois grandes artistas, cada qual com sua trajetória já consolidada, unem forças para criar uma obra que sintetiza décadas de história da música popular brasileira. Gilberto Gil e Milton Nascimento, nomes que dispensam apresentações, se encontraram em estúdio para celebrar a amizade, a admiração mútua e o compromisso com a arte. O resultado foi um disco sofisticado, plural e, ao mesmo tempo, profundamente enraizado na essência da MPB. 
A ideia de juntar os dois não surgiu de repente. Ambos já tinham cruzado caminhos em festivais, shows e colaborações esporádicas, sempre alimentando uma relação de respeito e proximidade. No entanto, foi apenas no início do novo milênio que essa parceria ganhou forma em um projeto robusto. O disco traz arranjos refinados, produção cuidadosa e, sobretudo, um repertório que transita entre clássicos revisitados e composições inéditas, confirmando a vitalidade criativa de Gil e Milton. 
Logo na abertura, a atmosfera é marcada por uma comunhão de vozes que se complementam. Gil, com sua cadência nordestina, e Milton, com seu timbre inconfundível, estabelecem um diálogo que parece natural, como se as músicas sempre tivessem sido pensadas para eles dois. O álbum passeia por gêneros diversos: samba, baião, baladas e canções que carregam a tradição mineira e baiana, espelhando a diversidade cultural do Brasil. 
Um dos grandes destaques do disco é justamente essa confluência de estilos. Gilberto Gil traz a força da herança afrobaiana, marcada pelo ritmo, pela batida do violão e pela capacidade de incorporar elementos modernos à tradição. Já Milton Nascimento oferece sua assinatura melódica única, com harmonias complexas, lirismo poético e um canto que sempre parece apontar para algo transcendental. O encontro desses universos cria uma sonoridade que é, ao mesmo tempo, singular e universal. 
O repertório contempla faixas que falam de amor, espiritualidade e da própria experiência de viver no Brasil. É impossível não perceber no álbum o tom de celebração da amizade, não apenas entre os dois músicos, mas também como um valor coletivo.  
Musicalmente, o disco também revela a maturidade dos dois artistas. Longe da necessidade de provar algo ao público, Gil e Milton se permitem experimentar, brincar com arranjos e explorar interpretações. Há momentos em que a simplicidade domina, com violões e vozes em primeiro plano, e outros em que a riqueza instrumental se expande em arranjos elaborados, lembrando a grandiosidade das produções orquestrais.  
Em termos de recepção, Gil e Milton foi muito bem acolhido pela crítica e pelo público. Muitos viram no disco não apenas uma obra musical, mas um documento cultural, a própria memoria da MPB sendo preservada. 



Mas não pense que o disco é uma visita nostálgica ao passado. "Gil e Milton" aponta para o futuro ao mostrar como a música pode permanecer relevante ao se reinventar sem perder suas raízes. Ao invés de simplesmente repetir fórmulas, os dois buscaram criar algo, que refletisse suas experiências acumuladas e ao mesmo tempo se conectasse com o espírito contemporâneo. 
Pode dizer que, no disco, o acarajé da Bahia ensolarada de Gil encontra o pão de queijo da Minas montanhosas de Milton, e o resultado é uma paisagem sonora que traduz a riqueza e a pluralidade do Brasil. O disco permanece como um marco na discografia de ambos e como uma referência obrigatória para quem deseja compreender a trajetória da MPB no final do século XX e início do XXI. 
A abertura já dá o tom do disco: "Sebastian", uma canção inédita, composta por Gil, em homenagem a São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro, ganhou letra de Milton que mistura religiosidade e lirismo urbano, enquanto os arranjos evocam tanto o sagrado quanto o popular.  
Ao longo de suas 15 faixas, Gil e Milton se mostra como um trabalho de síntese: junta raízes populares, espiritualidade, lirismo poético e experimentação rítmica. Cada faixa tem sua singularidade, mas todas se unem sob a ideia de diálogo — entre vozes, estilos e histórias pessoais. 
Mais de duas décadas após o lançamento, Gil e Milton continua, repito, atual, não apenas pela qualidade musical, mas também pela mensagem que passa. É um álbum que ultrapassa o momento histórico em que foi criado, permanecendo como documento fundamental da MPB e como registro do encontro de duas forças criativas que marcaram gerações. 
Além de Sebastian (Gil e Milton) o disco é composto pelas seguintes músicas: 
Duas Sanfonas (Gil e Milton) com a participação especial de Sandy e Júnior 
Ponta de Areia (Milton e Fernando Brant) 
Bom dia (Gil e Nana Caymmi) 
Trovoada (Parte A Gil - Parte B Milton) 
Something (George Harrison) 
Maria (Ary Barroso e Luiz Peixoto) 
Lar Hospitalar (Milton e Gil) 
Yo Vengo a Ofrecer mi Corazón (Fito Paez) 
Dora (Dorival Caymmi) 
Xica da Silva (Jorge Ben) 
Canção do Sal (Milton Nascimento) 
Dinamarca (Milton e Gil) 
Palco (Gil) 
Baião da Garoa (Luiz Gonzaga e Hervé Cordovil) 
O disco está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=QNKw76aODpU&list=OLAK5uy_l_fX4-zougLR4KReyQhitrsZVWM8rWoOY&index=2

*(A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT)

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Volta no volteio

Por Ronaldo Faria



Volta à vida que quase se foi, enfastiada, tragada de performances sem nuances de epopeia e odisseias que possam se contar. Talvez um ou outro encontro ou desencontro, mil contos que foram contados e outros tantos milhares que nunca se contarão. Afinal, essa é vida: sopro fustigado de cataclismos e versos mudos e surdos em entrevero do último suspiro, o derradeiro.
Quiçá surgirá a inaudita canção que se descobre na ilusão do sempre virá, no ungir de talismãs impregnados de vozes em surdina e afagos. Em lânguidas lambidas no ventre da amada, gotas de saliva a salivarem nos lábios quentes e retintos de sangue e unções do amor que foge em cada gemido nunca soado. No dito e por não dito, no desdito do mentiroso cioso, a sentença do estradeiro.
Na estrada à frente, cheia de pedriscos e gente, o unguento que urge no lamento do boiadeiro no esmero de chegar. Afinal, ao final da trilha, está Maria, seja qual for seu prenome, a lhe esperar. No debulhar do milho verde dependurado no roçado, xaxado se mistura ao fado. A partir daí, qualquer ato tresloucado se torna comédia ou drama inacabado. Feito passarinho no seu revoar.
E no final, voltar é repetir o deixar e seguir estradão sem momento ou retidão. É fazer nova trilha aonde os pés já cansaram de brincar de pisar. Retomar a rotina nas crinas do cavalo que corre e escorre sob o céu que brinca de imensidão. Cravar pesadelos mil, loucuras de roteirista da vida. Paródias que nem o mais sagaz roteirista saberia criar ou decifrar quando deveríamos apenas sonhar.
Voltar. Pisar ainda em ossos que logo irão virar pó. Na prosopopeia da epopeia que não vale sequer uma ilíada, continuamos a respirar, fazer de translúcidas imagens o sarcasmo de não desejar e esperar. Esperar e respirar, esperar e ingerir ar, esperar e aspirar. Em volta, nas voltas da vida, um som de chegança e rimar. Falácias mil e o correr de imagens e desejos a proliferar.

(Com Renato Teixeira)

sábado, 6 de setembro de 2025

Enluarada na claridade infinda

 Por Ronaldo Faria



Lua luzidia e frígida, vulgar no céu. A se mostrar inteira e nua de branco na espera do casório com o sol. A brincar com a cabeça dos loucos e se redescobrir acima de todos, dormindo no sono insone que cobre de beijos quem tem saudade sem fim. Cheia de mistérios etéreos que nem a sonda lunar saberá desvendar. Inquieta e largada em qualquer quintal ou lugar. A iluminar beijos de amantes relutantes e roupas que quaram à espera da brancura final.
Lua na perfídia da antítese proibida e restante no tanto que não sabe se morre ou se brilha. Se vai se jogar no asfalto como o bêbado que despenca na derrocada do fim ou percorre lençóis catatônicos e atônitos por servirem de ninho de amor a dois corpos que nada têm de asas para voar. Galopante em cada rompante que se esmera por um lugar pra derrear e chegar onde as chagas da vida se esquecem que o tempo cura as feridas e as lágrimas.
Lua incandescente e cercada de cinzas lunares como fogueiras que se queimam em esteiras forjadas de restos de capins e plantios mortos de secar sem rio ou chuva de sertão. Poesia sem rima ou rumo, plantio abortado sem semente e mão para jogá-la no chão. Cria de cada um de nós entre paixões, versos malfadados, fadas desnudas a voar. Canções ultramarinas e cheiros de rosas a entrarem nas narinas que desvendam risos e corpos em cópulas no fim.
Lua que corre nas trilhas de terra batida e encardida de pés sujos que não têm o que calçar. Que ilumina tanto o rico que dorme entre notas e pepitas de ouro e o pobre que se faz andarilho na busca de ao menos saber o que é viver e estar. Unidade que delimita olhares apaixonados e ilusões do nunca amar. Casa dos poetas e falsos profetas, ascetas de tanto pelejar chegar, grudados no rincão, no mar que desemboca além do além-mar.
Lua que se torna cigana e se entorna fatal sobre o corpo desnudo da amante que se desdobra ao som de um bandolim e do homem que pensa ser a hóstia que oscula os seios entumecidos e voláteis a se enrolarem na cama proibida de ser o fim de tudo. Sobretudo, restam a calma do derradeiro amor, o ardor que só quem sabe o que é a dor haverá de ter e o insólito praguejo que surge em soluços e gargarejos para amenizar a brincadeira do senão.
 
(Com Xangai a cantar e catar restos de luar)

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Distanciamento e quatro finais

Por Ronaldo Faria


 
A arcada dói. E bate em pontadas que parecem querer rasgar a cabeça. Sob os Arcos da Lapa, arqueado pelo tempo, Josué espera as horas passarem para ir para casa. Segurança de uma boate e bar, morador de São Gonçalo, ele percorre 72 quilômetros todos os dias para e ir e voltar e descobrir que entre a distância há ânsia de vida e consonância com mundos apócrifos e traçados na métrica da vida costumeira de se virar.
No bar/boate toca Timeless, de Sérgio Mendes. O som brasileiro/norte-americano faz a cabeça de gringos e descolados do Rio que só querem beber, amar, viver os trópicos que dólares e benesses dão. Um calor noturno e madrigal veste de suor os copos de chope e as camisas de algodão dos homens. A pouca brisa que perpassa o lugar ainda traz um pouco de cheiro do mar. A cidade, maravilhosa, se traveste de claro luar.
Mas, para Josué, o olhar não é para as pernas de moças, prostitutas ou travestis, devoradas por cada mesa de conquistadores baratos ou não. Está longe. Em algum bairro a 36 quilômetros dali. Está nos braços apaixonados de Valéria, melhor que a xará da Globeleza. Está nos seus lábios, seus afagos, no doce balbuciar que entrega ao mundo quando se juntam na cama depois de um churrasquinho no trailer da esquina.
Ao seu redor, em passos de horas para cada segundo traçado, a vida tem dó de girar em torno de si numa rotação milenar. Nos rostos e corpos que se encontram, se falam, se despedem ou se despem, gostos de drinques e batatas fritas a óleos quase queimados se transmutam em selfies, solicitudes ou servidões de depois. Para alguns terá valido passar o cartão de débito a um crédito de alegria. A outros restará a solidão vazia.
Nova pontada que o faz parar até de pensar. “Por que essa dor?” A pergunta fica sem resposta posta. O jeito é forçar os ossos da face, passar a língua entre os espaços que um dia tiveram dentes e rezar. Algum santo ou orixá dele irá se apiedar. Um garçom o chama para resolver a questão com um cliente que não quer pagar a conta. É hora de esquecer dor e expor os músculos conquistados com muito ferro e esteroides.
·         Final um: Josué para na frente do “caloteiro” e pede, gentilmente, que ele pague direitinho e tudo ficará bem. Todo mundo sairá de lá feliz e cheio de amor para dar e receber. O rapaz, já calibrado e a mil, se nega e o manda para a puta que pariu. Josué lembra da sua mãe – Dolores – senhora que o criou e a mais seis filhos sem marido do lado e aí não aguenta outra pontada. Dá dois diretos na cara do camarada e outro na boca do estômago, para não perder a referência da face. Com sangue exangue, o rapaz enfim saca a carteira e deixa cada centavo arrematado. E ainda dá gorjeta.
·         Final dois: Josué para na frente do “caloteiro” e pede, gentilmente, que ele pague direitinho e tudo ficará bem. Todo mundo sairá de lá feliz e cheio de amor para dar e receber. O rapaz, já calibrado e a mil, se nega e o manda para a puta que pariu. Josué pensa em descontar no valentão todas as horas gastas de busão e sem os olhos de Valéria. Mas segura a onda, segura o caloteiro numa gravata e pede para o garçom ligar para a 5ª DP. Não dá dez minutos e os meganhas prendem o rapaz que irá dormir no xadrez e ser enquadrado no total rigor da lei vigente e ciente.
·         Final três: Josué para na frente do “caloteiro” e pede, gentilmente, que ele pague direitinho e tudo ficará bem. Todo mundo sairá de lá feliz e cheio de amor para dar e receber. O rapaz, já calibrado e a mil, se nega e o manda para a puta que pariu. Josué pensa em reagir e deixar o valentão com a mesma dor que o acomete no maxilar, mas não tem tempo, O dito cujo estava armado com uma pistola 7.65 com o número de registro raspado. Não dá sequer tempo de reação: são cinco tiros no peito de Josué. Lavado de sangue e da cerveja que caiu junto com a mesa onde ainda tentou se apoiar, ele tomba morto. O caloteiro, porém, é linchado pelos frequentadores do lugar e outros tantos que chegaram para bater e matar.
·         Final quatro: o garçom faz um sinal para Josué de que não é mais necessário o seu préstimo de boxeador e faixa roxa de MMA. O rapaz, ao vê-lo de longe ajeitando a camiseta nos bíceps, decide que era melhor pagar aquilo que consumiu, comeu e bebeu. O bar e boate começa a fechar. Josué ajuda a descer a porta de ferro e se dirige ao ponto de ônibus. Daqui a algumas horas irá abrir o portão da casinha de quatro cômodos e se acomodar na cama ao lado da amada. Se ela acordar, de repente rola trepada. Se não, um beijo gostoso misturado de café logo de manhã já estará de bom tamanho. No ponto do BRT um fanho tenta cantar Mas Que Nada, mas trava no “sai da minha frente que eu quero passar”. Josué ri e pela primeira vez a cabeça parece não doer e latejar. Os últimos casais que conseguiram se acasalar seguem entre afagos e tragos para outro renascer.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Indagações com Itamar Assumpção

 Por Ronaldo Faria



-- Felizardo, você é bacharel em quê?
-- Comunicação.
-- E pra isso precisa ser formado? Não basta estar antenado?
-- Pode ser, nunca havia pensado nisso.
-- Comunicar até o paraíba (não há aqui, como filho de nordestinos, nenhum demérito)  de porta de loja faz.
-- Tem razão. Não tinha pensado nisso. E agora, com a tal de internet, todos são comunicólogos. Ou seja, fiz faculdade nada por nada e me fodi.
 
II
 
-- Carmelo, você é formado em quê?
-- Filosofia.
-- E isso serve hoje pra quê?
-- Para questionar razão, ideologia e até a fumaça de um beck.
-- Mas para se ficar doidão não basta puxar, segurar o máximo e soltar?
-- Mais ou menos. Ou sim. Tem razão. Doidão é meio filosofia...
 
III
 
-- Luzia, luz da minha vida, você é o que na vida?
--  Sexóloga e influencer digital e coisa e tal.
-- Mas para se fazer sexo não basta se querer e pra influenciar não ter que algo dizer?
-- Acho que sim.
-- E sexo não é além da tela? É pele com pele na peleja.  E influência não é fluência na essência daquilo que se faz?
-- Sei lá. Você quer foder com o meu ganha-pão?
-- Não. Só entender.
 
IV
 
-- Gastão, o que você faz da sua vida?
-- Vivo.
-- Só isso: gasta seu tempo assim?
-- Acho que sim. Vivo num ritmo próprio e abstrato. Me trato e me destrato. Nasço e morro hoje e antes. Sou tragicomédia e teatro. Íntegro no corpo que integro e envelhece em intempérie nos pés que ressurgem descalços em tamancos.
-- E os mil solavancos que a realidade dá, como tratar?
-- Nesses eu nem quero poder pensar. Já que não posso mudá-los, que se fodam em fornalhas benfazejas e sonantes. E queimem rápidas em pães sovados e constantes.
 
V
 
-- Kátia, onde você cata as suas premeditadas nuances em tantas vidas tântricas?
-- Nunca pensei. Talvez eu tive medo antecipado por todos meus dias. Empedernidos e vívidos em loucuras vividas e sufocantes. No meio de uma mata claustrofóbica feito manta de samba.
-- Eólica que a vida é, já que se perde em ventos nos invólucros dos solilóquios de cada um de nós, não te basta parar na chuva fina e madrigal que cai nos ínfimos grãos de areia que a onda rola de repente?
-- Para, não vou responder. Um livro que divulguei à mulher que passava já valeu a beleza da vida...
-- Concordo, como amante, poeta e investigador da dor que a saudade nos traz. Afinal, sumir de tudo que se tem no mundo que essa tal de internet criou, tem que ser motivo de virar madrugada no lugar que o Tom fez surgir em consolo.
 
VI
 
Que terno seria ser apenas um pouquinho filho da puta, como diria Itamar Assumpção. Ao menos teria em mim a minha última unção.

Na viagem

Por Ronaldo Faria Viajante de suas loucuras diuturnas, quase equidistante entre a vida e a morte, Januário persegue qualquer polis que vire ...