Por Ronaldo Faria
O lampião aceso, com odor de
percevejo queimado pela luz, ilumina a cena da praça e do coreto. Valfrido,
mítico tocador de violão, chora quieto. Seu choro sai baixinho, com direito a se
escutar os relâmpagos que surgem no negror. Nalguma tipografia clandestina a
hipocrisia da Corte está sendo descrita. Se tal escrita chegará em pasquim aos
raros leitores alfabetizados, saber-se-á. Do alto de um sobrado, Faustina espera
o pai ir dormir para a seresta que o seu amado lhe prometeu. “Mesmo com esse
tempo a prometer chuva e lamaçal no seu chegar, ele virá” – pensa a jovem no
seu virginal penhoar. Mas o seu consorte, infausto ser que se perde nas
tabernas entre as pernas das moçoilas que se vendem a vinténs, está largado a
ver lágrimas baterem nos degraus do coreto. Agora, nem um minueto o fará lembrar
da promessa. Certamente, insone e descrente defronte da rua encharcada de tudo que
desceu morro abaixo, Faustina será apenas uma donzela frágil, sem rima.
Um pouco distante, no
matadouro do lugarejo, um porco dá seu último respiro de dor. Suas tripas caem
na gamela. Seu sangue deixa retinto o chão de tijolos queimados. Um pouco mais
de tempo e estará na venda ou na feira antes de ferver nas panelas de barro.
Seu novo cheiro, cercado de temperos e esmero da mucama, irá se sobrepujar ao
da lenha que chora num crepitar de cor brilhante e pujante. Chegará à mesa dos
comensais com a destreza da receita para ninguém reclamar da falta de sais. Irá
forrar estômagos e, nas sobras, aliviará a fome daqueles serviçais que não têm
com o que sonhar. Seus ossos, atirados ao léu, irão virar manjar aos cães das
ruas. E seu destino estará feito. Com rabo, orelha e focinho...
Mas e Valfrido e sua Faustina?
Que infausto destino o mundo lhes dará? Na pequena igrejinha (na redundância de
sua pequenez), o sacerdote conta o dote que o barão, morto e enterrado, deixou
à irmandade. “Devia ter buscado servir a Deus numa melhor cidade”, pensa o enviado de Deus. Com as
portas abertas, aos poucos velhas beatas, com seus véus sujos e encardidos de promessas
vãs, se sentam para ouvir as palavras divinas. A maioria, já surda pela
idade, se satisfará em comer a hóstia. E todas voltarão para suas casas irmanadas
como filhas de Maria. Menos Isaltina. Essa tentará mais uma vez, em vão, sentir
o padre fungando no seu cangote. Ele, porém, tem mais o que fazer na sacristia.
A balançar o incenso está Desidério, o coroinha. Assim, na ignóbil fé das
verdades que permeiam livros sagrados, o ágrafo parágrafo que diz que a verdade
é coisa de cada um no seu quadrado.
Mas e Valfrido e sua Faustina? Que infausto destino o mundo lhes dará? Devagar, o sol surgiu ensimesmado e redondo para expulsar as poucas nuvens negras que teimavam em lavar o chão encharcado e enxaguado. No aguardo inútil e fútil, a formosa dama, ainda virgem e carente, dorme num sono que não há gente que a desperte. Já seu poeta e esteta, depois de encher de tristeza a escadaria sombria do coreto, decide ir para baixo da janela da petiz já mulher. Mas, para azar o seu, Major Clemêncio, já desperto e com seu revolver à mão, sem clemência o expulsou a tiros do local. “Se voltar aqui eu prometo te acertar e, depois de catar o seu corpo morto, arrancar os bagos e dar para o bicho que quiser comê-los!” Passada a cena, a jovem apaixonada, agora acordada, teve a notícia de que estava prometida a Galhardo, filho de um conde de título comprado mas que tinha a galhardia de um nunca bastardo. Sem poder sequer contestar, calou-se e foi para seu quarto chorar. Já o antigo e nunca apaixonado no aguardo, que fugiu dos tiros como um tornado, desagua a certeza de estar vivo na casa de Filomena, a amena dona do bordel fatal. No derredor, há quem diga que tudo está melhor...
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