segunda-feira, 2 de junho de 2025

Pariu-se. E daí?

 Por Ronaldo Faria

                                         

Abestado, Januário, parido na dor da mãe Zifinha, depois de horas de placenta jogada em água amniótica na terra seca do sertão, hoje se pergunta por que nasceu. “A trepada do pai cheio de vontade de gozar valeu o intento do dia encruado e sem vento?” Na dúvida endoidada que a vida sempre dá, ele não detinha a resposta. Fosse ela posta em postas jogadas no breu da feira circunscrita aos pesadelos e desmazelos de antemão. Januário era somente um anuário no calendário de milhares de anos. Talvez um cachorro desses que se encosta e se prostra debaixo da banca de carnes pra ver se um pedaço de sebo cai. No meio de barracas e barcas atoladas na secura de até tristeza alumiar, ele brinca de poder ser feliz. E bebe, derrama goles e ouve foles de sanfona. Quem sabe nalgum canto um canto de louvor há de recebê-lo sem querer cobrar. Se assim, porém, acontecer será milagre desses que nem mesmo Jesus Cristo consegue assinar embaixo e prescrever.
Encruada na mesmice encalacrada que a vida destina e dá, Januária segue com seus terços e novenas a pisar em trilhas poeirentas e de pedras pequenas. Véu na cabeça que um dia já foi branco e vistoso, hoje escurecido pelo pó que sobe do chão, ela vai na busca dos santos que descansam no altar cagado pelos morcegos que descobriram no local o descanso dominical. Cheia de rugas que à face mostram que o tempo eterniza as veredas e sutilezas do mundo, ela busca apenas um tempo extemporâneo que nem o passado sabe ter existido. Na chuva que não bate em Sergipe e nem nas Alagoas, as lagoas jogam líquido insípido aos retirantes que passam na busca de outra vida sobreviver. Na sofrência do ultimato que dentro da gente dá que nem mato, Januária segue feito os bois que carregam o carro a ranger na servidão. Afinal, na taciturna falácia de ser feliz, vale de tudo: a mentira bendita, a certeza inaudita, a crença renhida de saber que nunca chegará.
 
(No som de Seu Luiz Gonzaga)

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