quarta-feira, 4 de junho de 2025

Vai só um, por favor

 Por Ronaldo Faria


Sono no interregno da sobriedade e da costumeira loucura que há muito habita o corpo entre a noite e o novo lumiar. “Dormir pra quê? Para descobrir qual pesadelo vai aportar com seus enredos e degredos no escuro do sono de pipocar feito milho na panela?” Bernardo, fardo de si mesmo, simplório no inglório desanuviar, rio que emerge do mar, estava prostrado diante do espelho, nu em pelo, a apelar aos santos que podem de algum lugar ainda brotar. Na floreira da sacada, rosas esperam para florir e se deixarem cheirar.
Andares abaixo, corpos andam num périplo fugaz. Entreolham-se, passam perto uns dos outros, até sentem o cheiro dos perfumes caros ou baratos, enxergam as gotas de suor que se despejam dos poros, até pensam em se cumprimentar. “Oxalá possamos todos dessa pantomima acreditar que esse mundo pode ainda ser um lar”, pensou Bernardo. Na criação do Criador, talvez ele tivesse esquecido de que o mundo é um efêmero local de esperanças cegas, realidades entregues, regado em pedaços entre outros regatos de dor.
Mas na sala que se espreme na cozinha, quarto e banheiro diminutos, desses que se gasta um minuto pra se ver e cagar, Bernardo se bronzeia de lâmpadas de LED na escuridão que o universo dá. O verso agora diz da brevidade do tempo a passar sem perdão. Os olhares, alhures tenham existido, são de desejo e remissão. O som que perpassa ouvido e tímpanos é somente um torpor que espera pelo mínimo de gratidão. “Ao menos podia ter dito algo como beleza ou força aí.” Mas, qual que nada. Só ser ouvida quer ser a amada.
Uma ambulância reverbera sonora os gemidos que alguém, deitado na sua maca, solta em ganidos. O cheiro de mato a queimar adentra os poucos metros de planta de concreto e ferro. Nas paredes nuas pintadas de branco fosco e tosco, quadros amarelados em descalabro dão o tom. Na frigideira, um ovo está a frigir no óleo de milho. Nos olhos do filho nunca tido, a espera da fera que logo chegará. A olhar o mar de prédios em tédio e escondidos pelo luar, Bernardo espera a hora do ansiolítico tomar. No apartamento ao lado a vizinha resolve ligar a tevê e ouvir que o melhor da vida é viajar. Na mesa de centro descansa a propaganda que promete um resort esotérico no Iraque.
 
(A ouvir Ângela Ro Ro)

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