sábado, 22 de março de 2025

No viajar

 Por Ronaldo Faria

 


-- A parada foi para mijar. Fosse no Pravda, seria manchete vulgar...
Clemente, comunista de carteirinha, mesmo que essa esteja amarelada e cheia de datas passadas, no passadio entre a loucura e a euforia tardia, acende mais um cigarro. Logo virá o catarro que povoa os pulmões no eterno instante. Cantante no cantar sem semblante, entorna outro copo de cerveja. Que Deus (ateu que é) não o veja. Seu paraíso ainda é Leningrado.
-- Você sabe quantos companheiros tombaram num sonho? É medonho descobrir que vidas que sonhavam um novo país justo tombaram em cubículos extremos, poças de sangue vazias e marés de mares que mais não se vê.
Do outro lado da mesa, no boteco incrustrado no subúrbio escuro, o amigo ouve a olvidar que o passado possa retornar e salvar as vidas decantadas e contadas em emoções mil. Que Maria viva e povoe o mundo de mais mil Marias que lutem libertárias e vivas. Que José traga o verso da revolução à realidade e a iniquidade e miséria sejam verbos do passado. Nas mesas que povoam a sequência estapafúrdia da geometria do bar que tenta faturar mais em menor espaço, outras conversas praguejam. Num ou noutro momento, um beijo. Logo mais, quem sabe, um sexo.
-- Você já pensou que não estaríamos aqui hoje se não fosse a coragem daqueles que tombaram em prantos?
Não. O ouvinte não havia pensado nisso. Submisso, omisso e constrito, não tinha atentado para os atentados políticos do passado. Talvez cansado de locupletar, prefira apenas ouvir e tomar. Na árvore perto, uma pomba perde as últimas penas. Logo vai morrer.
-- Você sabe o que é ultimar a vida a saber que seu desejo de juventude foi extirpado e arrancado por seres vis que sequer mereciam o nome de seres humanos?
-- Garçom, traz outra vodca!
Afonso, ser limítrofe e etéreo, prefere se embriagar e “viajar” de vez do que ouvir Clemente em seu verbo histórico e estoico. Ser etílico, profilático e tardio, vive a vaticinar seu destino sem tino ou desatino. Não quer ser nada além do que já é. Afinal, sabe que logo nada será. Todos, indistintamente, o serão: pó e solidão fechada no afã que nunca existirá. À exaustão de querer ser feliz, na infausta sodomia tardia, quer apenas ter um fim, pagar a conta e sair para o seu quarto e sala. Viver seu ínfimo fim.
-- Clemente, já estou bêbado. Preciso agora só de um Uber e, quem sabe, beber em cassa minhas tragédias pessoais e casuais. Pede a conta!
Companheiro acima de tudo, ligado umbilicalmente a seus pares, Clemente levanta a mão e faz o sinal de fechou. A literatura comunista pode esperar o ouvinte voltar à normalidade. A cidade, catastrófica e utópica, claustrofóbica a jorrar nas vazias carótidas, dorme sob as luzes ergofóbicas. O garçom, expropriado e crente de que é assalariado naquilo que faz, agradece os dez por cento. Na televisão passa o tento que o goleador do time adversário faz. No fim do mês, o salário estratosférico do jogador paga centilhões de caipirinhas que o garçom nordestino de nascença deixa às mesas todo dia.
-- Já está pago, companheiro. Que a vida nos possa prover de algo mais...

(A ouvir Zeca Baleiro e outros mais)

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