terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Circo sem sol ao léu

 Por Ronaldo Faria

 


-- Senhoras e senhores, hoje tem grande show da mulher tatuada e imponderada, do homem pinguço, da sogra caridosa, do cunhado cordato sem pegar a última gelada da geladeira! Venham todos ver o mundo se reconhecer sem gênero obrigatório, poder ilusório, corruptos chafurdando na própria lama, tiros e sangue a romperem corpos e asfaltos em assaltos! Sem sobressaltos, olhem hoje e só hoje o quanto e tanto é possível sonhar e acreditar que amanhã será melhor. Que poderemos descobrir uma palavra consternada chamada amor, a sabermos que cada palavra será lavrada em terreno fértil que brotará sementes de árvores que sairão de um pé de feijão. E nele todos nós subiremos além das nuvens e nos fartaremos de esperanças plenas, plantios de poesias e músicas, letras e notas, acordes e pensamentos que não usarão mais a palavra lamento. Senhoras e senhores, todes, não percam este espetáculo que nenhum tabernáculo detalhou. Ele será único e sem direito a bis. Nenhum segundo antes, nenhum minuto depois. Mas celulares estão liberados e lembranças boas e livres estão igualmente liberadas. Sejam elas no nosso picadeiro, em Havana, nas cascatas de um Iguaçu ou vindas do vocabulário de um falastrão. Pouco importa. Para nós artistas dessa trupe mambembe, tanto faz! Estamos aqui, nesse ínterim entre nascer e morrer apenas para fazermos a cortina abrir e se fechar. Seja em qualquer lugar. A nós o importante não é vosso vil e raro quinhão de metal, plástico ou papel. É apenas que cada um de vós não tenha pena de nós. Nossa voz, nessa cena curta e mordaz, quer somente ser porta-voz de um planeta sem mares, sem terras, sem montanhas, sem artimanhas. Com manhãs límpidas, tardes brejeiras, noites reconfortantes. Todas como um instante. Afinal, a vida é apenas um instante a cobrir de páginas e dramas, comédias e tramas a significação de não existir significado. Portanto, venham assistir nosso epitáfio e nosso primeiro chorar ou grunhir assim que somos arrancados do ventre materno. Sejamos, nem que seja por um mero momento, eternos e ternos. Prometo desde já que se não gostarem daquilo que irão ver, devolveremos os ingressos com nossos maiores perdões por tão ínfimos préstimos. Mas, desde agora posso dizer, que nos apresentamos para públicos mais exigentes e púbicos. Estivemos no inferno e sob chamas e labaredas ganhamos do próprio Satanás a medalha de honra por serviços prestados. No céu, Deus decidiu acordar de seu sono eterno desde que o mundo criou e fez uma pausa para sentar na primeira fileira. No fim nos aplaudiu e pediu bis. Como dito antes, bis não fazemos. Fomos quase excomungados e deserdados do paraíso que nunca vem depois, mas ele também nos perdoou e desejou sorte eterna. Estivemos ainda no limbo e no purgatório. Mas nesses não vendemos um ingresso sequer. Quem lá está nem sabe o que fez enquanto habitou a Terra. Foi um fracasso cheio de sucesso para nossa trupe. Enfim, venham todos e todes! Prometemos mostrar e escancarar a vida de cada um, com palhaços, cães adestrados, elefantes e leões, trapezistas e dançarinas seminuas que irão lhes tirar da prostração que a vida nos dá. Temos até o homem atirado de um canhão. Mas este, como o espetáculo, não poderá repetir o feito. Seu féretro desde então está aberto a todos e todes que quiserem acompanhar. Mas, por fim, já que me alonguei quase tanto quanto o tempo de picadeiro, garanto a cada um de vós que comprar o ingresso com um sorriso verdadeiro ou um abraço apertado, que o mundo pessoal e íntimo logo depois estará revirado. Dessa forma, quem tiver vindo pela esquerda volte pela direita e aos outros vice e versa. Mas no fim, todavia e entretanto, por enquanto, todas as vias irão dar no mesmo lugar. Só que nosso desejo derradeiro, com todo o ensejo, é que não nos vaiem ou atirem objetos no palco de mentira. Nossos sentimentos, em tormentos, agradecem... E que assim seja vagamente real.
 
(Sob o som ainda de Arpi Alto)

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