segunda-feira, 16 de junho de 2025

Na peixaria da vida

 Por Ronaldo Faria



Barbatana de peixe carcomido, guelras sem respirar monóxido de carbono, escamas caídas em dramas nas tramas da vida. Era assim, peixe fora d’água, que Dorival se sabia e se sentia. Sem sentimento e como infausto corpo jogado no asfalto quente. Resiliente na guerra da espera utópica que a vida lhe expôs, sobrevivente da crença descrente no amanhã, ouve o assobio da ave que busca o trinado perdido ao acaso. Do lado, colocado no alto do púlpito que palpita vida, o padre profere palavras que ferem os ouvidos de quem passa. “Que nós, pecadores, possamos pescar nossas dádivas nas dívidas nunca pagas.” Nas pálpebras cansadas dos fiéis, tudo é só palavreado cantado. Na procissão que se prepara para sair, matronas e meretrizes se juntam para louvar o Senhor. Na dor, rezas e pregações viram unções às feridas em lamúrias e torpor de luz de luar.
Asas depenadas como almas que desanuviaram no céu sem cor, bicos sem minhocas espetadas na ponta do anzol, olhos que não veem mais o azul que se mistura no branco das nuvens. Desse jeito, pássaro que tem medo de alturas, Beatriz, mistura de senhora e atriz, antevia as horas futuras. Nas ranhuras dos móveis imóveis há anos na sala de cortina fechada e embolorada, transitava calada e performática. Seu gosto sempre fora a gramática. Porém, dramática, se fechara feito a cortina de veludo roxo em casa. Descasada e forçada ao autoexílio, personagem principal de uma peça nunca levada aos palcos e coisa e tal, vivia sentada na cadeira de braços longos a cerzir seu enxoval enxovalhado para o Natal. Morava num sobrado descascado na esquina das ruas Boa Morte e Descalvado. Seu número da sorte e da casa fora roubado.
No vilarejo, benfazejo no meio do mapa e paradeiro de tropeiros trôpegos, pessoas passeiam sem saber de Dorival e Beatriz. Nas efemérides próprias, muitas impróprias a se relatar, iam e vinham a circular no coreto que o correto prefeito Deodomiro inaugurou com banda de música, cantor da Capital e coral formado por meninos e meninas do abrigo municipal. O lugar, meio esquecido do mundo, perfumado de flores de laranjeiras, tinha joviais e brejeiras mulheres que sorriam aos garbosos e sebosos rapazes. Nalgum momento, dois parariam de circular e se tocariam, falariam feito matriarcas no jantar e se beijariam em loucura que só o amor dá. E o lugar seguiria seu curso, sem rumo, bússola ou porto de chegar.
Acima, de onde nem a melhor sonda espacial saberá existir, o Criador desliga a tevê e ri de tanta insensatez. “Até hoje eu não sei por que criei esse mundinho. Preciso lembrar o anjo Gabriel a não me deixar comer pimenta em excesso. A última caganeira foi demais e deu nisso.” Com um simples piscar desliga o sol e se põe a ressonar. Seu ronco faz tremer o lugar. Abaixo, tão abaixo que nem o milímetro saberia medir, o calendário embrionário diz que num ovário outro ser está por vir...
 
(Ao som de bandas rítmicas nordestinas)

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